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Entrevista Especial

- Publicada em 03 de Março de 2019 às 21:44

Estado deve combater violência contra a mulher

'A violência de gênero é a origem de todas as violências, porque acontece onde se formam os cidadãos', diz Tatiana Barreira Bastos

'A violência de gênero é a origem de todas as violências, porque acontece onde se formam os cidadãos', diz Tatiana Barreira Bastos


FOTOS: MARCELO G. RIBEIRO/JC
O Rio Grande do Sul tem 22 Delegacias Especializadas no Atendimento à Mulher (Deam) mas, nos municípios que não contam com o serviço, denúncias de violência praticadas contra mulheres podem ser feitas em qualquer delegacia. A delegada Tatiana Barreira Bastos, titular da 1ª Deam de Porto Alegre, alerta para a importância de realizar a denúncia de agressão.
O Rio Grande do Sul tem 22 Delegacias Especializadas no Atendimento à Mulher (Deam) mas, nos municípios que não contam com o serviço, denúncias de violência praticadas contra mulheres podem ser feitas em qualquer delegacia. A delegada Tatiana Barreira Bastos, titular da 1ª Deam de Porto Alegre, alerta para a importância de realizar a denúncia de agressão.
"Em 72% dos feminicídios a mulher nunca havia denunciado o seu agressor", aponta. Para garantir auxílio qualificado a essa vítima, que sofre com um perfil diferente de violência que não se encerra na denúncia - a tendência, explica Tatiana, é a reconciliação com o agressor -, a Polícia Civil gaúcha capacita seus profissionais para prestar atendimento e encaminhamento diferenciado a essa mulher.
Como o objetivo é evitar que a violência, física ou psicológica, seja praticada, Tatiana alerta para o compromisso social desse enfrentamento. "A mulher está inserida em algum ciclo de convivência social, que é, muitas vezes, o primeiro lugar a ter contato com a violência (que ela sofre)". Reconhecendo a dificuldade, para a vítima, de buscar ajuda sozinha, a delegada fala sobre a importância de acabar com os julgamentos que culpabilizam a vítima. Para isso é necessário pautar um debate nacional sobre questões de gênero.
Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, a delegada Tatiana explica como a adoção do termo feminicídio para classificar o assassinato praticado com motivação de gênero auxiliou a gerar dados sobre esse crime e indicar uma repressão penal mais adequada. Ela também classifica a escolha de uma mulher - delegada Nadine Anflor - para chefiar a Polícia Civil do Estado como "um momento histórico". "É mostrar para todas as mulheres que elas podem realmente estar onde elas quiserem".
Jornal do Comércio – Como diferenciar o feminicídio de qualquer outro crime praticado contra mulheres?
Tatiana Barreira Bastos – O feminicídio, embora seja um tipo penal recente – é uma qualificadora do delito de homicídio de uma legislação de 8 de março de 2015 –, sempre existiu enquanto conduta. O feminicídio é homicídio de mulher com menosprezo à condição de mulher, ou seja, com a motivação de gênero, ou num contexto de violência doméstica ou familiar. Essa é a base conceitual da nossa legislação, que agrava e aumenta a pena do homicídio de mulheres quando ela morreu pelo simples fato de ser mulher, em decorrência de uma discriminação histórica ao gênero feminino.
JC – Quais as características desse crime?
Tatiana – O feminicídio cometido por parceiro íntimo é o mais habitual: marido, ex-marido, companheiro, ex-companheiro, namorado, ex-namorado. Esses são os grandes agressores, não só dos feminicídios, mas de toda a violência doméstica e familiar. Estudos nacionais dizem que 87% dos agressores são as relações afetivas atuais. O feminicídio é a máxima expressão da violência de gênero, decorre do sistema patriarcal, machista, misógino, que ainda coloca a mulher numa situação de desigualdade e inferioridade, principalmente nas suas relações domésticas, familiares e afetivas. É por isso que a Lei Maria da Penha, inclusive, protege e tutela as relações ocorridas nesses espaços de convivência. Ao contrário dos homens, que sofrem a maior incidência da violência urbana, temos as mulheres sofrendo a maior parte das violências dentro de casa, nas suas relações intrafamiliares. Precisamos trabalhar sobre essa ótica cultural que justifica práticas violentas. Isso é um senso coletivo que ainda coloca a mulher sendo culpabilizada pelas violências que sofre, a cultura do estupro, da lesão, do feminicídio, “o que a mulher fez para dar causa àquela violência". Olhamos muito mais para a vítima, o que a revitimiza, e muitas vezes distancia outras mulheres de procurar ajuda, porque ela também sabe que vai ser julgada. Essas estruturas precisam ser rompidas para poder de fato auxiliar essas mulheres a saírem do ciclo de violência, que é patológico e se retroalimenta. Ele se fecha na fase da reconciliação, do pseudo-arrependimento, da “lua-de-mel”, e recomeça novamente com a fase da tensão, da explosão, até chegar na “lua-de-mel” de novo. A mulher fica nesse espiral de violência e sozinha não consegue sair. Por isso é preciso da lei, de uma intervenção estatal e de políticas públicas que empoderem, auxiliem e fortaleçam essa mulher para sair daquele ciclo de violência.
JC – Como a senhora disse, o uso do termo feminicídio é recente. Antes se tratavam esses casos como “crime passional”.
Tatiana – Conceitualmente o feminicídio já existe há mais de 10 anos. Mas, ainda hoje muitas vezes se trata isso como sendo um "crime passional", o que é um grande equívoco que só contribui para reforçar essas práticas violentas. Não posso entender o feminicídio como um crime cometido por paixão ou por amor, e sim como o crime cometido por ódio, por menosprezo à condição de mulher, que é um sentimento de posse, de domínio, de poder, o exercício de uma relação vertical entre homens e mulheres no seu ambiente íntimo e afetivo.
JC – A mudança da terminologia facilitou o acompanhamento desses casos?
Tatiana – A tipificação legal é importante não só para uma repressão penal mais adequada, mas, principalmente para que se faça um debate nacional em torno do que é o feminicídio e a perversidade desse tipo de violência, que nós, mulheres, ainda sofremos cotidianamente. Essa não é uma violência isolada, ela acontece todos os dias. No Brasil, a cada 15 segundos uma mulher é espancada e 600 mulheres são vítimas de violência por dia. Precisamos falar sobre essa temática, encarar e qualificar esses dados para perceber que há múltiplas formas de violência. Quando falamos do feminicídio, da violência letal, a que mais tememos, começamos a dar forma para essa violência e a ter dados mais confiáveis, para assim traçar políticas públicas, principalmente de prevenção, mais adequadas. Com a criação do tipo penal conseguimos enxergar essa realidade. Isso sempre existiu, mas quando se diz que aumentou é porque hoje se tem dados mais próximos da realidade. Se olhar para 5 ou 10 anos atrás, tinha “homicídio de mulher”, mas não feminicídio. Precisamos ter esse dado para começar a enxergar a realidade como ela é. O feminicídio é o crime menos subnotificado, das outras violências todas, 90% são subnotificadas, principalmente crimes sexuais. Então pensem que temos dados altos e eles estão muito longe de representar o real. Mas quando se consegue tabular feminicídio com análise criminal e qualitativa de ocorrência, como fazemos no Rio Grande do Sul, a tendência é que não aumentem como evento morte, mas como tabulação correta daquelas ocorrências que antes seriam qualificadas como “homicídio doloso de mulher”.
JC – E mesmo com a notificação, a violência contra a mulher não se encerra com a denúncia.
Tatiana – Exatamente, e a tendência é a reconciliação, que essa mulher volte para o agressor, dê uma nova chance, acredite que ele possa mudar e que vai cessar aquela violência. Por isso as ocorrências podem ser denunciadas e devem, em qualquer delegacia. Em 72% dos feminicídios, é importante que se diga, a mulher nunca havia denunciado o seu agressor. Percebemos que a mulher que está mais propensa a um feminicídio tentado ou consumado é aquela que não pede ajuda. É importante que ela notifique, que não sofra calada, porque a chance dessa violência aumentar é muito maior se ela silenciar. O silêncio é o maior cúmplice da violência.
JC – Como os outros atores sociais são importantes nesse processo? Órgãos públicos, imprensa, sociedade, empresas onde essas mulheres trabalham.
Tatiana – O enfrentamento da violência contra a mulher tem que ser feito por toda a sociedade. É um compromisso social. A violência não diz respeito só àquela mulher, mas a todo o seu entorno familiar, a toda a sociedade e ao país como um todo, uma vez que hoje o Brasil investe quase 2,5% do seu PIB somente no enfrentamento da violência contra a mulher. Isso abala o nosso desenvolvimento econômico e social e é um problema de todos. A mulher está inserida em algum ciclo de convivência social, como escola, universidade, trabalho, igreja, que é, muitas vezes, o primeiro lugar a ter contato com a violência. Sabemos da dificuldade que essa mulher tem de denunciar e de sozinha procurar ajuda, romper aquele silêncio e denunciar o agressor, que é o seu marido, companheiro, filho, pai. Precisamos desse entorno para fazer com que isso chegue a conhecimento das autoridades públicas. E também para encorajar essa mulher, acolher, dizer que isso não é natural e fazer ela perceber que a violência psicológica e verbal são também muito perversas, que vão a desqualificando enquanto mulher e reduzindo a sua autoestima. Essa violência acontece em todas as esferas, com mulheres de todos os níveis socioeconômicos, muitas vezes superiores e que sustentam economicamente seus agressores, mulheres empoderadas.
JC – E essa violência atinge todas as camadas sociais...
Tatiana – Todas estão sujeitas à violência, porque fomos formadas dentro desse mesmo ambiente com crenças muito patriarcais e papeis sociais ainda muito definidos. Por mais que a mulher prospere nos ambientes de trabalho e acadêmico. As mulheres hoje, no Brasil, são mais escolarizadas que os homens, somos maioria, passamos mais em concursos públicos, mas ainda estamos relegadas aos nossos papéis domésticos e de mãe. Isso nos engessa enquanto igualdade social, de oportunidades e de direitos dentro de uma sociedade. As mulheres ainda são socialmente muito cobradas, isso gera culpa, que gera vergonha, e joga de novo para um ciclo de violência. É um compromisso de toda a sociedade do ponto de vista da reflexão, da educação, da conformação conceitual para que possamos realmente romper todos esses estereótipos e paradigmas que reforçam práticas violentas. Precisamos falar sobre essas questões, o debate sobre questões de gênero é muito salutar, porque começa a desacomodar algumas crenças, conceitos que são muito pesados para nós, mulheres.
JC – Qual a importância de se fazer o debate sobre a igualdade de gênero em meios como, por exemplo, a escola? A tentativa de inserir isso no currículo foi muito criticada e combatida. Por que esse debate gera tanto medo?
Tatiana – Todos os grandes debates referentes às questões não só de gênero, mas a todos os grupos vulneráveis, desacomodam um sistema de dominação, de poder que sempre foi detenção e privilégio de poucos. Quando se começa a trabalhar com ações afirmativas, que vão empoderar grupos historicamente vulneráveis – não são minorias, porque no Brasil mulheres e negros são maiorias, mas que ainda estão em situação desigualdade social –, começamos a enfrentar todo esse tipo de resistência. Então precisamos de legislação protetiva, de políticas de cotas, de debate nacional e de educação. Só vamos conseguir diminuir toda essa questão discriminatória e preconceituosa em relação às questões de gênero quando começarmos a falar sobre isso. O feminismo não é o contrário do machismo. O machismo é um sistema que mata, de dominação, patriarcal, em que um sexo está em situação de superioridade em detrimento de outro. O feminismo busca, historicamente, a igualdade. E hoje as pessoas não compreendem o que é feminismo, e enchem a boca para dizer “não sou feminista”, como se isso fosse uma vergonha, porque isso é um estereótipo social e dizem ser feministas as mulheres que não gostam de homens, que não se depilam, que não usam sutiã ou que o rasgam em praça pública, as mulheres radicais. Todo movimento social inicia com uma fase muito radical, porque é movimento de resistência, de luta, de temas que saem do invisível para uma pauta social, um debate que nunca se quis fazer, não porque nunca existiu, mas porque nunca foi interessante de ser debatido. Nós, mulheres, temos que ser feministas, temos que querer a igualdade, temos que ter o direito de ocupar os mesmos espaços que os homens. Isso não quer dizer que não posso optar só pela maternidade, por não trabalhar, por servir ao meu marido se essa é a minha vontade. A mulher tem que ter liberdade de escolha. Mas, se não quiser cumprir esses papeis sociais, não pode sofrer violência, desrespeito ou discriminação por isso. O que todas nós queremos é igualdade. Isso não é uma utopia.
JC – Existe algum exemplo de onde isso acontece?
Tatiana – Em vários países do mundo, como Suíça, Suécia, Dinamarca, tem igualdade de gênero há anos, e falar de legislação protetiva seria algo discriminatório aos homens. Mas no Brasil tem essa desigualdade. A violência de gênero é a origem de todas as violências, porque acontece onde se formam os cidadãos. Qual é a primeira cultura de violência ou de paz? É dentro de casa. Como criar um menino e uma menina que tenham essa consciência social se dentro de casa a violência é algo corriqueiro? A violência é transgeracional, reproduzimos não só o que aprendemos, mas principalmente o que vivenciamos.
JC – Como a senhora enxerga a importância de ter uma chefe de polícia mulher?
Tatiana – É um momento histórico. A Polícia Civil gaúcha é uma instituição de 177 anos, extremamente masculina, machista – como a grande maioria das instituições, porque todos nós somos forjados com os mesmos conceitos sociais e culturais –, em que as primeiras mulheres entraram na década de 1970, as primeiras delegadas em 1987. É algo muito novo, ainda, a mulher na instituição, e hoje temos uma chefe de polícia mulher, jovem, bonita, que fez toda a sua carreira numa delegacia especializada no atendimento à mulher. É muito importante para o crescimento institucional termos essa abertura e representatividade. O que isso representa é muito maior que ela ser competente, que o trabalho que ela sempre fez de qualificação do atendimento. É mostrar para todas as mulheres que elas podem realmente estar onde elas quiserem. A gestão da Nadine é compartilhada, equilibrada, em que não se é escolhido por ser homem ou mulher, mas por ter competência, qualificação e perfil. A questão de gênero não tem que ser a mais importante. Tudo isso é extremamente importante para desconstruir essa cultura de violência de gênero, para que possamos reconstruir um novo conceito em que as mulheres não sejam mortas só por serem mulheres, não sejam assediadas por serem mulheres. Precisamos trabalhar como uma pauta nacional de equilíbrio e igualdade para todos nós enquanto sociedade, independentemente da nossa condição.

Perfil

Tatiana Barreira Bastos é natural de Santa Vitória do Palmar e tem 40 anos. É delegada de Polícia do Estado do Rio Grande do Sul, titular da 1ª Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (Deam) de Porto Alegre e subcoordenadora das Deams do Estado. Atualmente, é, também, diretora da Divisão de Proteção e Atendimento à Mulher do Departamento Estadual de Proteção a Grupos Vulneráveis (DPGV). É pós-graduada em Direito Penal e Processual Penal pelo Instituto de Desenvolvimento Cultural (IDC) e especialista em Gestão e Monitoramento de Políticas de Segurança Pública pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs). É docente da Academia da Polícia Civil (Acadepol), do IDC e da Verbo Jurídico. Autora das obras Violência doméstica e familiar contra a mulher – Análise da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006), um diálogo entre a teoria e a prática (editora Verbo Jurídico); e Lei Maria da Penha – Comentários artigo por artigo e estudos doutrinários (editora D’Plácido).