Estreada originalmente na Alemanha, onde a equipe experimentou um estágio técnico, a peça “A menina dos olhos d´água” tem direção de Camila Bauer, que participou da criação do próprio espetáculo, ao lado da atriz Liane Venturella e a colaboração da psicóloga Camila Noguez. Trata-se de um espetáculo dirigido a crianças, abordando a traumática experiência da enchente do ano passado, ocorrida no Rio Grande do Sul.
Sinteticamente, a menina vive em relativa tranquilidade em sua casa até a chegada as águas: da casa, ela é levada para um abrigo coletivo, onde descobre novas experiências e novas relações, tendo depois a oportunidade de regressar ao lar.
De maneira explícita, pretende-se discutir a experiência dramática da enchente, tentando dar-lhe compreensão em relação a uma criança em torno de seus quatro anos de idade. Construir um texto com este objetivo é extremamente desafiante e enfrenta um sem número de empecilhos, centralizados no próprio trema, mas que podem ser mais ou menos bem resolvidos a partir da linguagem escolhida.
O primeiro acerto da equipe é a opção por uma linha lírica que, sem fugir da realidade imediata – a enchente e a necessidade de abandonar a casa – optou por apresentar a narrativa através de diferentes registros, desde a boneca – um charme – a própria atriz, maquetes de elementos cênicos, como a casa, projeções videográficas, e assim por diante.
Um dos principais desafios do teatro, enquanto arte, uma arte que vive do diálogo entre personagens, é também estabelecer o diálogo com o público. Neste sentido, o roteiro de Camila Bauer e Liane Venturella está bastante equilibrado, embora eu confesse que muitas das referências trazidas pela peça, como aqueles dormitórios coletivos imensos e a imagem do cavalo Caramelo, me tenham deixado profundamente tensionado, ao recordar todo o acontecido há um ano. Não sei o quanto as crianças reagem a tais referências, por mais cuidadosas que elas tenham sido evocadas pelas narradoras: a mim, de qualquer modo, deixou-me afligido.
Um outro problema que me incomodou foi alguns vazios que ocorrem na estrutura narrativa: a menina deixa a casa e vai para o dormitório coletivo. E a mãe? Sobretudo, e o cachorrinho que estava com ela, e sobre o qual se chega a fazer alguma referência sem maior aprofundamento? Ele foi encontrado (parece que não), ele é substituído por algum outro animal? Por fim, ao voltar para casa, como este espaço é encontrado (lembrando-se que boa parte dessas residências haviam sido destruídas e uma enorme quantidade delas precisou ser inteiramente reconstruída), mas sobre isso não se fala.
Eu sei que um enredo não pode realisticamente trazer respostas a todas as questões. Chama-se de economia narrativa aqueles elementos sobre os quais se silencia ou se resolve de maneira simplificada. Mas senti falta de uma amarração mais consistente, ainda que a frase reiterada ao longo de todo o espetáculo - de que tudo vai melhorar, de que há relações humanas fundamentais, etc. – certamente ajude a ultrapassar os eventuais traumas vividos pela personagem.
Escrever para crianças – inclusive no teatro - não é fácil. O fato de se ousar fazer isso, com seriedade, deve ser profundamente respeitado e festejado. Mas é importante que se consiga avaliar objetivamente se aqueles resultados que se pretendia atingir foram, de fato, alcançados.
Acho que “A menina dos olhos d´água” é um espetáculo muito bonito, poético, que prende a atenção. Mas tenho dúvidas, sinceramente, se ele chega a todos os resultados que estava buscando. Isso não o invalida, de modo algum, mas os artistas responsáveis por este tipo de trabalho precisam refletir constantemente a respeito do que pretendiam e do que realizaram de fato. A começar pelo fato de que se deve discutir
Que as crianças não apresentam os mesmos repertórios cognitivos. Por isso, a escolha da linguagem do espetáculo é um fator fundamental.
Tais questões não pretendem invalidar a montagem de “A menina dos olhos d´água” mas, pelo contrário, aproveitar o ensejo de tal montagem para se discutir as fronteiras e os espaços que o teatro dirigido a crianças (em que faixa de idade, com que experiência teatral anterior?) precisa trabalhar.