Estabelecida em sete hectares de área verde no bairro Lami, em Porto Alegre, a aldeia Flor do Coqueiro/Tekoá Pindó Poty está vivendo sob ameaça de invasores. Há cerca de 15 dias, um loteamento ilegal foi erguido nas proximidades da zona de plantio e roça dos indígenas, avançando inclusive sobre uma área de proteção ambiental. O terreno integra parte de 100 hectares que estão submetidos a estudos da Fundação Nacional do Índio (Funai) dentro de um processo de demarcação da terra a favor da comunidade Mbyá-Guarani, que ocupa a região há mais de 40 anos. Nas laterais dos lotes, mais varas estão sendo levantadas e arames foram estendidos.
Após receber a denúncia, o Ministério Público Federal do Rio Grande do Sul (MPF/RS) informou - através de uma nota enviada pela assessoria de imprensa da instituição - que deve ajuizar ação de reintegração de posse da terra invadida. O documento, assinado pelo procurador da República Jorge Irajá Louro Sodré, afirma que já foi solicitado à divisão interna do MPF/RS uma diligência "para identificação e fotografias da quantidade de habitações construídas sem a autorização da liderança indígena" local, "bem como a qualificação dos esbulhadores".
Segundo o coordenador do Conselho Indigenista Missionário - Regional Sul (CIMI-Sul), Roberto Liebgott, também foi agendada uma reunião com representantes da aldeia no MPF/RS, prevista para acontecer na quarta-feira (28).
Enquanto isso não acontece, as oito famílias que ocupam a área ameaçada trataram de convocar reforços do povo Mbyá-Guarani para diminuir a sensação de vulnerabilidade das 30 pessoas que atualmente ocupam a Tekoá Pindó Poty. Desde o início da semana passada, dezenas de "parentes" chegaram na Capital vindos de outras aldeias - como as do Cantagalo (Viamão), Itapuã (Viamão) e Maquiné (Litoral Norte).
Os indígenas também receberam o apoio de entidades (como a Associação Amigos da Terra e a Frente Quilombola RS), de parlamentares, e de outras pessoas solidárias à causa, que prestigiaram uma série de ações culturais e religiosas da tradição Mbyá-Guarani ocorridas de quinta-feira (22) até sábado (24). Todas as apresentações ocorreram em área aberta, com os participantes utilizando máscaras. Muitos visitantes levaram doações para ajudar a sustentar a mobilização dos "parentes" dos indígenas que seguem chegando de outras aldeias do Estado. "Já somos em torno de 100 pessoas", calcula o cacique Roberto Ramires (cacique Kuaray).
Na sexta-feira (23), os Mbyá-Guarani fizeram rituais religiosos nas áreas de invasões e no centro da aldeia Flor do Coqueiro. Além de quatro barracos e uma cerca que foram instalados há duas semanas, uma intervenção semelhante, com a implementação de outros dois barracos em áreas mais afastadas, já havia ocorrido em janeiro deste ano. Na época, a Funai chegou a enviar uma placa de restrição, que foi colocada em uma área desmatada pelos invasores, provavelmente visando a implementação de novos lotes.
"Esta foi a única ação da Funai até agora", observa o cientista social e mestre em desenvolvimento rural, Guilherme Dal Sasso. Ele conta que o Grupo de Estudos (GT) da Fundação Nacional do Índio que está responsável pelo levantamento cartorial do território para dar sequencia ao procedimento de demarcação iniciado em 2012, suspendeu os trabalhos em 2020 por conta da pandemia. "A consequência disso foi que, como no restante do País (vide os casos de garimpeiros e grileiros na Amazônia), os invasores se aproveitaram da paralisia da Funai para tomar o terreno (no caso de Porto Alegre com a implementação de um loteamento)", destaca Dal Sasso.
De acordo com Liebgott, os 100 hectares reivindicados pela comunidade da Tekoá Pindó Poty são compostos de terrenos com características diferentes: desmatados, de plantio, de pasto, e de proteção ambiental (neste último caso, são áreas verdes inseridas nos 200 hectares da Reserva Biológica do Lami José Lutzenberguer, criada em 1975).
O local onde os invasores ergueram os barracos fica a alguns metros de uma outra placa, instalada pela antiga Secretaria Municipal de Meio Ambiente (Smam), que avisa sobre a irregularidade de construção de qualquer espécie justamente por conta da preservação. Segundo a assessoria de imprensa da pasta, que hoje se chama Secretaria do Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade (SMAMUS), no último dia 16 uma equipe da Coordenação de Educação Ambiental e Fiscalização do órgão da prefeitura esteve lá.
A visita dos técnicos da SMAMUS rendeu um auto de infração por construção/loteamento irregular ligado à Federação dos Trabalhadores nas Indústrias da Alimentação do Estado do Rio Grande do Sul. O terreno inclusive está cadastrado na Secretaria da Fazenda como sendo da entidade, que em 2008 entrou na Justiça pedindo reintegração de posse contra os Guaranis. "Não caracteriza invasão, só quando a Funai confirmar que é uma reserva indígena", explica a assessoria da Secretaria. "Foram autuados por execução de loteamento sem licença: são seis imóveis, um comercial em alvenaria, e outros cinco de madeira", informa a assessoria da pasta. A Federação tem 30 dias para apresentar defesa.
"Há estudos que comprovam a presença dos indígenas desde 1970 e em nossos registros temos testemunhos de idosos que afirmam que este povo está lá há mais tempo, desde 1940. É uma área de ocupação permanente dos Mbyá-Guarani", afirma o coordenador do CIMI-Sul. "Tanto a Funai quanto o MPF/RS estão tramitando para garantir este pedaço de terra aos indígenas." Liebgott comenta que desde que os indígenas iniciaram a mobilização, os invasores desapareceram de vista. "Ficaram somente os barracos e materiais de construção, como arame farpado, facões, foices, e outras ferramentas, além de umas roupas penduradas na cerca."
"Queremos que estas pessoas deixem a área que invadiram, e iremos fazer um documento para solicitar o regresso da Funai, que tem que terminar o trabalho não foi concluído: um estudo que se arrasta há anos", observa o cacique Roberto Ramires. "Sabemos que os invasores ainda estão quietos, só que não vai ser só uma casinha, estão fazendo um loteamento, por isso que estamos preocupados: estão invadindo a terra que é uma reivindicação indígena", destaca.
O coordenador do CIMI-Sul afirma que estava presente quando homens "estranhos" chegaram ao local há 15 dias. Após a construção dos barracos de tábua e da implementação de uma cerca, eles também obstruíram as entradas e acessos para dentro do mato com galhos e ramos. "Eu perguntei se estavam cientes que o território é área indígena, e eles disseram que sim. Então indaguei por que estavam invadindo e responderam que era para guardar o terreno".
Além do MPF/RS, também a Funai recebeu algumas denúncias. Antes do atual loteamento,
duas invasões foram registradas, uma em 2012 (que consta de construção de prédios de alvenaria), e outra recente, também com obras e inclusive a abertura de comércio no local. Mas até o momento, nenhuma medida concreta foi tomada, destaca Liebgott. Membro da Associação de Estudos e Projetos com Povos Indígenas e Minoritários (Aepim), Dal Sasso confirma que os barracos não estão habitados. "Aqui no Lami o que corre na boca do povo é que este é um pessoal ponta de lança, que estaria ligado à expansão imobiliária que está avançando na Zona Sul da Capital."
Dal Sasso ressalta que os guaranis vêm denunciando as invasões há dois anos. Procurada pela reportagem do Jornal do Comércio, a Funai não se pronunciou.