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reportagem cultural

- Publicada em 28 de Novembro de 2019 às 21:55

Elis Regina, a porto-alegrense que conquistou o Brasil

Anos de formação da cantora ajudaram a moldar sua personalidade musical

Anos de formação da cantora ajudaram a moldar sua personalidade musical


AG/JC
Em um dos seus versos mais famosos, o poeta norte-americano do século XIX Walt Whitman canta: "Eu me contradigo? Pois muito bem, eu me contradigo. Sou amplo, contenho multidões". Esse trecho do poema casa muito bem com a vida de Elis Regina, considerada por muitos críticos e especialistas como a melhor cantora brasileira de todos os tempos. Há multidões em Elis, porque ela viveu de uma forma intensa desde que começou a cantar, com apenas 11 anos de idade. Muitas fases de sua carreira surgiriam depois, mas os anos de formação em Porto Alegre são importantes, uma vez que ajudaram a moldar a personalidade musical e o profissionalismo que sempre marcaram a sua trajetória.
Em um dos seus versos mais famosos, o poeta norte-americano do século XIX Walt Whitman canta: "Eu me contradigo? Pois muito bem, eu me contradigo. Sou amplo, contenho multidões". Esse trecho do poema casa muito bem com a vida de Elis Regina, considerada por muitos críticos e especialistas como a melhor cantora brasileira de todos os tempos. Há multidões em Elis, porque ela viveu de uma forma intensa desde que começou a cantar, com apenas 11 anos de idade. Muitas fases de sua carreira surgiriam depois, mas os anos de formação em Porto Alegre são importantes, uma vez que ajudaram a moldar a personalidade musical e o profissionalismo que sempre marcaram a sua trajetória.
Segundo o artigo 1950-1960: um milhão de melódicos melodiosos, de Arthur de Faria, essas duas décadas são períodos de transição entre a era do rádio e o começo dos festivais universitários gaúchos. Foi durante essa fase que esteve em evidência um tipo de formação instrumental conhecido como conjunto melódico. Para ele, nenhuma outra cidade teve tantos agrupamentos de cinco a oito músicos tocando suavemente - e em diferentes combinações - acordeom, vibrafone, guitarra, piano, contrabaixo, bateria e percussão. Muitos músicos desses conjuntos também trabalhavam em programas de rádio na época.
E é nesse meio que Elis Regina aparece, quando começa a se apresentar no Clube do Guri, em 1956, da extinta Rádio Farroupilha. Faz tanto sucesso lá, que, em dezembro de 1958, acaba sendo contratada profissionalmente pelo então proprietário da Rádio Gaúcha, Maurício Sirotsky Sobrinho. Logo, foi eleita a melhor cantora do rádio gaúcho em concurso realizado pela Revista de TV, Cinema, Teatro, Televisão e Artes, com apoio da sucursal gaúcha da Revista do Rádio, com sede no Rio de Janeiro. E fez tudo isso tendo que estudar e tendo boas notas, cláusula imposta por sua mãe, Dona Ercy.
Apesar de ser ótima aula no colégio, foi na escola formada por grandes músicos dos conjuntos melódicos e das orquestras de rádio que Elis gabaritou todas notas e harmonias. Além da sua atuação no rádio, ela também cantava em boates atuando como crooner em conjuntos como o de Norberto Baldauf e o Flamboyant - este reunia um grupo de músicos adeptos aos sons mais modernos de então. Arthur informa em Elis - Uma biografia musical que o conjunto era composto por artistas como Adão Pinheiro e do baterista Mutinho, compositor e futuro parceiro de Toquinho & Vinicius. Para ele, esses primeiros anos e a experiência com os músicos dos conjuntos foram fundamentais: "Era um tipo de formação musical que praticamente só tinha no Rio Grande do Sul. Uma transição também entre os sambas dos anos 1950 e os grupos de samba jazz. E a Elis se apresentava com esses caras, ela aprendeu muito a cantar e a improvisar nesse momento". Para se ter uma ideia, muitos desses bailes duravam cerca de cinco ou seis horas, com o grupo se apresentando continuamente.
Nos anos 1960, entretanto, o contexto começava a se alterar: as mudanças culturais impostas principalmente pelo modelo de grupo popularizado pelos Beatles (guitarra, baixo e bateria) se tornava padrão, mudando a configuração dos conjuntos musicais. Somado a isso, também acontecia a popularização da televisão no Rio Grande do Sul, que, gradativamente, começava a tirar público do rádio, e levou os músicos a migrarem para o novo formato. "Em 1964, surgiu um negócio chamado videotape, que foi um dos responsáveis por acabar com as regionalidades. Se tinha um programa feito no Centro do País com todos os artistas que as pessoas conheciam dos discos ou da rádio nacional, por que se pagaria um cachê para os artistas locais quando se poderia simplesmente ter a fita?", explica Arthur.
A partir disso, muitos músicos perderam o emprego e tiveram que começar a tocar na noite, mudaram de profissão ou foram embora do Estado. É nesse contexto também que Elis Regina embarca para o Rio de Janeiro, chegando alguns dias antes de 31 de março de 1964, dia em que ocorreu o golpe militar. Já era considerada a melhor cantora do Rio Grande do Sul e, agora, conquistaria o Brasil.

Reveladora de compositores gaúchos

Nos 36 discos que a cantora gravou, há pelo menos uma canção de autores locais

Nos 36 discos que a cantora gravou, há pelo menos uma canção de autores locais


JOS/DIVULGAÇÃO/JC
Elis Regina gravou 36 discos, e em todos eles há pelo menos uma música de algum compositor que nunca tinha sido gravado ou que tinha uma produção pouco conhecida. Arthur de Faria destaca que ela gravou, no terceiro e quarto discos, muitos compositores do Rio Grande Sul. "São, inclusive, os únicos registros que se tem dos compositores dessa geração do começo dos anos 1960. O primeiro hit dela, do primeiro compacto, quando tinha apenas 15 anos, foi a música Da sorte, de um compositor gaúcho, o Eleu Salvador, que nunca tinha sido gravado. Ela sempre manteve essa tradição que começou aqui", avalia. Entre outros amigos compositores que conheceu na época dos bailes e rádio e gravou estão Sérgio Napp, João Palmeiro, Mutinho e Luiz Mauro.
O músico Raul Ellwanger relembra a gravação do dueto que realizou com Elis da sua música Pequeno exilado, em 1980. Devido à ditadura militar, Ellwanger ficou boa parte da década de 1970 exilado, vivendo em países como o Chile e a Argentina. Na época, o diretor da gravadora sugeriu convidar a cantora para participar e ela topou. "Fomos gravar em um estúdio na avenida Paulista, era de manhã. Eu cantei a minha parte e aí ela foi e cantou a dela, e, em certo trecho, ela dá um soluço, porque teve um princípio de choro, mas decidiu que isso ficasse gravado, que mostrasse a emoção dela ao falar de um dos bairros da vida dela, da cidade dela", explica. Com o fim da gravação, a ideia de Ellwanger era sair para comemorar, mas Elis tinha outro compromisso. "Ela foi para outra sala de gravação do estúdio gravar a base de Alô, alô, marciano (Rita Lee e Roberto de Carvalho). Uma música com outro estilo, alegre, brincalhona, irônica. Enquanto a minha era uma toada, bem diferente. Acho que isso diz muito do talento dela", explica. O músico ainda revela que Elis anotava as letras da música em uma espécie de caderneta. "Ela tinha uma estenografia pessoal, em que anotava as partes expressivas, as partes mais difíceis, as armadilhas. Por exemplo, na minha música tinha uma armadilha em que eu mesmo caí. Digo em um trecho "Vinte mil léguas de sonho", e que pode ser confundido com "Éguas". Eu tenho esse manuscrito dela e nessa parte tem um risquinho separando os dois eles", conta.
Elis ainda apoiou o movimento Frente Gaúcha de Música Popular, participando de um show para 5 mil pessoas no Grêmio Náutico União em 1968. "Foi um coletivo daqui muito influenciado pelos Festivais da época, como o da Excelsior, da Record, da Tupi, da Cultura. Nossos ídolos eram Edu Lobo, Sérgio Ricardo, Chico Buarque", explica Ellwanger. No grupo, havia nomes como Cláudio Levitan, Geraldo Flach, Carlinhos Hartlieb, Laís Marques e Hermes Aquino.

Lugares de memória

Artista ganhou uma estátua na orla do Guaíba, junto à Usina do Gasômetro

Artista ganhou uma estátua na orla do Guaíba, junto à Usina do Gasômetro


LUIZA PRADO/JC
Foi o mesmo compositor e amigo de Elis, Sérgio Napp, então diretor da Casa de Cultura Mario Quintana (CCMQ), que propôs a criação do Espaço Elis Regina, em 2005, a partir de uma campanha de arrecadação de itens para compor o acervo. A sala abriga materiais doados por colecionadores e algumas raridades, como o primeiro LP, Viva a brotolândia. "Como intérprete da música brasileira de grande renome, nascida em Porto Alegre, Elis Regina é homenageada em espaço nobre da CCMQ, em frente ao Quarto do Poeta, exposição que celebra o patrono da casa, Mario Quintana", diz Cássio Pires, do Núcleo de Acervo e Memória do local.
Ao contrário do poeta, porém, Elis parece não ter muitos lugares de memória em Porto Alegre. Seria a cantora pouco lembrada - e celebrada - por aqui? Para Raul Ellwanger, o problema está no tipo de memória que é valorizado. "Vai lá no Parcão para ver qual é a memória que é exibida, tem 40 toneladas de ferro enfeiando e vai ver o nome daquilo (Monumento ao marechal Castelo Branco, um dos articuladores do golpe militar de 1964 e primeiro presidente do período). Não é a memória em geral que é fraca, é a memória dos que mandam que é forte", afirma. Arthur de Faria concorda que há pouco espaço para a celebração de Elis em Porto Alegre. "Tem aquela estátua (na orla do Guaíba, junto à Usina do Gasômetro) e o teatro, que estamos esperando há um bom tempo. Tem alguma coisa de material disperso, talvez no Museu Hipólito da Costa. E tem o prédio onde ela morou que ninguém sabe exatamente onde fica. Acho que até hoje há um certo ranço gaúcho com a Elis."
Já o secretário de Cultura, Luciano Alabarse, não acredita que Elis Regina esteja esquecida em sua terra. "São inúmeros shows que a homenageiam, a estátua da Usina do Gasômetro, o Teatro Elis Regina. Mas concordo em um ponto: tudo o que podemos fazer para lembrá-la deve ser feito. Amo Elis desde sempre, minha grande referência de cantora brasileira", afirma. Aliás, o imbróglio envolvendo a revitalização do Gasômetro parece finalmente estar chegando ao fim. A última atualização até o fechamento desta reportagem é que a prefeitura assinou, no dia 22 de novembro, o contrato com o consórcio RAC/Arquibrasil, e a ordem de início dos trabalhos deve ser assinada no começo de dezembro. O projeto de revitalização foi elaborado pela empresa 3C Arquitetura e Urbanismo. Com isso, no segundo pavimento, será inaugurado o Teatro Elis Regina, em formato de arena, com capacidade para até 300 pessoas na plateia. "Esperamos inaugurá-lo em novembro de 2020", promete Alabarse.
Em 1952, Elis, então com sete anos, se mudou para a Vila do IAPI, projeto concebido pelo governo Vargas para acolher as famílias de operários - o pai da cantora, Romeu, era chefe do almoxarifado da Companhia Sul-Brasileira de Vidros. Foi nesse ambiente de cidade de interior que ela cresceu e morou até os 18 anos, quando se mudou para o Rio de Janeiro. A edificação onde residiu Elis é preservada desde 2011 por meio do Inventário do Patrimônio Cultural de Bens Imóveis de Porto Alegre.
Em frente ao prédio onde Elis cresceu há uma grande figueira que está incomodando os moradores. Devido aos galhos já apodrecidos, a árvore se inclina, e o medo é de desabamento. Também há a possibilidade de as raízes invadirem o edifício por baixo e destruírem a construção. Segundo a arquiteta Manuela Costa, ligada à Coordenação de Memória Cultural da Secretaria Municipal de Cultura, alterações internas e algumas esquadrias já não são originais. "Entendemos que a figueira, nesse caso, compõe a ambiência do local, por isso deve ser igualmente preservada", argumenta.
 

Um legado vivo e inspirador

Tributo Elis Regina - Camila e o Arrastão mantém viva a memória da cantora

Tributo Elis Regina - Camila e o Arrastão mantém viva a memória da cantora


MANDY MEDEIROS/DIVULGAÇÃO/JC
Apesar dos poucos lugares que evocam a memória de Elis em Porto Alegre, seu legado segue forte, principalmente como inspiração para muita gente fazer música. É o caso do Tributo Elis Regina - Camila e o Arrastão. Quando adolescente, Camila Lopez tinha o sonho de cantar O bêbado e a equilibrista em um palco enorme. "Seguidamente me pegava pensando nisso, então acabei trazendo este sonho para a realidade. Mas no mundo prático e já adulta, eu entendia que deveria estudar música brasileira junto com os músicos e a forma que encontramos em conjunto foi fazer o tributo", conta. Para ela, a Pimentinha levava a sério o papel da arte no mundo. "Não aceitava mediocridades. Estava sempre em busca de melhoramento, de apontar o justo, de dizer coisas legais. De alertar. Era muito lúcida", explica. Além da cantora, o tributo é formado por Alexandre Alles (teclado), Rafael Branco Müller (bateria), Mateus Albornoz (baixo), Matheus Herrmann (guitarra) e Rafael Pavão (percussão).
O Arrastão - que se apresenta neste domingo, às 21h, no Quentin's (Lima e Silva, 918) - recria a formação clássica do grupo que acompanhou Elis na década de 1970 e, com cerca de dois anos, já passou por mais de 30 teatros do Estado. Para Camila, essa experiência mudou tudo. "Foi abrindo muitas portas, colocando numa vitrine, me deu a oportunidade de entrar no mercado da música de fato. E, principalmente, foi me dando 'cancha', podendo tocar em teatro sendo praticamente uma cantora nova no pedaço. Isso é quase um milagre", conta. Ela acredita, entretanto, que o mais importante foi aprender a cantar e a tratar a arte como se deve. "A Elis me ensina todo o dia. A música me ensina todo o dia. Esse projeto ainda vai longe e dele vai nascer mais mil outras coisas."
Não é só na música, entretanto, que Elis segue inspirando. O Coletivo Elis Regina - Tribuna 77 nasceu no dia 7 de novembro 2018 com a ideia de discutir pautas no contexto de uma torcida de mulheres gremistas, feministas e antifascistas. Segundo Hayane Leotte, uma das participantes, o coletivo ganhou esse nome pois, em fevereiro de 1962, sob o número 688, Elis Regina Carvalho Costa, ainda com 17 anos, tornou-se sócia do Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense. "Em abril de 1968, Elis voltou a Porto Alegre para fazer um show, contratada pela Rádio Guaíba e pelo jornal Folha da Tarde. A direção do Grêmio aproveitou sua estadia na Capital e promoveu uma homenagem à sua sócia, que, já nessa época, havia conquistado o Brasil", conta. A figura feminista de Elis também é exaltada. Conforme Hayane, a marca da rebeldia, do discurso forte, ainda hoje é referência. "Ela sempre foi muito assertiva em defender os direitos humanos e a democracia. Elis é insurgência, é inconformidade com uma sociedade definida por papéis de gênero, sexualidade e raça muito bem marcados", reflete.

Livros resgatam trajetória

Arthur de Faria é autor de biografia a partir da visão dos músicos que tocaram com Elis

Arthur de Faria é autor de biografia a partir da visão dos músicos que tocaram com Elis


NÍCOLAS CHIDEM/JC
Entre os primeiros livros publicados sobre Elis Regina está o de Zeca Kiechaloski, dentro da coleção Esses Gaúchos. Intitulado apenas Elis Regina, é de 1984, apenas dois anos após a morte da cantora. Trata-se de um livro curto, quase uma carta de amor à trajetória da cantora.
Logo depois, foi a vez de Regina Echeverria escrever a primeira biografia de mais fôlego: em 1985, surgiu a primeira edição de Furacão Elis. A autora acompanhou a carreira de Elis, tendo feito diversas entrevistas com a cantora. "Foi através dos organizadores do espetáculo Falso brilhante que comecei a ter um contato maior com a Elis, e foi nascendo uma amizade", diz.
A biografia já teve outras edições, mas, segundo Regina, não houve muitas mudanças nas informações, mas foram sendo acrescentadas novas entrevistas. Ela recorda que Elis parecia insegura antes de subir no palco. "Mas, quando estava lá, nunca aparentava isso, dominava. É que essa espécie de insegurança é digna de quem tem muito talento", explica.
A já citada biografia do jornalista e pesquisador Arthur de Faria, intitulada Elis: Uma biografia musical, é de 2015 e narra a trajetória da artista a partir de uma visão dos profissionais que a acompanharam. "Queria saber como eles a viam como colega de trabalho e chefe. E todos eles foram unânimes em amar Elis. Pelo senso de justiça dela, por se sentir uma profissional como qualquer outra, e por eles sentirem que todos tinham a mesma importância naquele momento", conta Arthur.
Em 2016, ainda ocorreu a publicação Elis Regina - Nada será como antes, do jornalista Julio Maria. Ele procurou fazer um perfil mais humano e menos divino da cantora, em uma grande reportagem, sem nenhuma tese a defender.
Já a mais recente obra sobre a artista, lançada em outubro de 2019, é Elis & Eu, do filho primogênito de Elis, João Marcello Bôscoli. "Eu tive um gatilho inicial, que foi o fato de muitas pessoas perguntarem se eu me lembro da minha mãe. Essa foi a segunda motivação. A primeira foi para deixar alguma coisa escrita para os meus filhos, que não vão conhecer a avó fisicamente. É uma maneira de deixar um documento, um olhar de um menino de 11 anos sobre a sua avó. E o momento surgiu porque tô perto dos 50 anos, acho que a gente tem - eu, no caso - algum nível de maturidade para poder visitar essas memórias", revela.

Expressionismo televisivo

Elis com Jair Rodrigues, no programa 'O Fino da Bossa'

Elis com Jair Rodrigues, no programa 'O Fino da Bossa'


AE/JC
Professor da Faculdade de Comunicação da Ufrgs, Alexandre Rocha se debruçou em uma série de artigos a fim de pesquisar a relação de Elis Regina e a televisão. Confira entrevista a seguir:
JC Viver - Que particularidades do formato da televisão emergem em Elis? Caetano Veloso disse que ela havia sido a primeira cantora produzida especificamente pela TV.
Alexandre Rocha - Nara Leão era uma cantora de pequenos concertos; Maria Bethânia, uma intérprete de teatro. Elis desenvolve seu estilo sob as câmeras da televisão, que dava seus primeiros passos no Brasil. O alcance da TV projetou a carreira dela depois de Arrastão, música que lhe deu o prêmio de melhor intérprete no I Festival da Excelsior, mas a definição de seu estilo - movimentos corporais, inflexões musicais - deveu-se, sobretudo, à televisão. A superexposição midiática propiciada pelo programa O Fino da Bossa, na TV Record, fez o poeta Augusto de Campos, em O Balanço da Bossa e Outras Bossas, criticá-la. Dizia que os gestos fortes, a dança marcada, a necessidade de efeitos associados à sua força como intérprete produziram um exagero tal que, na perspectiva dele, prejudicaram o canto. A tese que defendo, a despeito dos juízos acerca desse canto proposto em O Fino da Bossa, foi que Elis levou às últimas consequências as potencialidades televisivas, sem a qual seu canto seria outro. Em uma era de experimentação, ela experimentou o novo meio, permitindo que ele a transformasse. Se nos anos 1960 - sobretudo em O Fino da Bossa - essa experimentação foi "sem controle", anos mais tarde, a cantora aproveita esse aprendizado, corrige o canto, sem, entretanto, perder, até o fim de sua carreira, o expressionismo que marca seu estilo.
Viver - Em que sentido e de que modo a televisão "configurou" a imagem de Elis?
Rocha - Não de maneira homogênea. Nos anos 1960, a televisão a projetou no cenário musical, transformando-a na cantora mais popular do Brasil. Foi ela quem criou a sigla MPB (Música Popular Brasileira) para abrigar todos aqueles que, como ela, depois da Bossa Nova, reinventaram a música no Brasil. Nos anos 1970, as passagens de Elis pela televisão são mais raras. Nessa época, a cantora sofistica o estilo criado nos anos 1960 e parte para uma carreira em circuitos universitários e de teatro. Há, consequentemente, um afastamento das grandes mídias. Torna-se uma cantora respeitada pelos críticos, que antes a recebiam com ressalvas, mas se afasta dos grandes públicos e da exposição televisiva. Importante observar que, mesmo afastada, o modo como inventou o canto na interface com a televisão passa a ser lapidado. Quando morre, em 19 de janeiro de 1982, Elis volta a ser popular, ela aparece aos novos públicos como uma cantora ao mesmo tempo sofisticada e popular. Elis foi muito popular nos anos 1960 e muito sofisticada nos 1970. Depois de sua morte, os dois atributos aparecem em conjunção.
 Viver - Como a participação dela em vários programas televisivos contribuiu para a construção de uma percepção da MPB?
Rocha - Elis foi a principal articuladora da Música Popular Brasileira enquanto comandou O Fino da Bossa. Por lá passaram os principais nomes tanto das gerações anteriores a ela quanto seus contemporâneos. A televisão à época apostava na música como um de seus principais produtos. Essa aposta - catalisada por Elis - criou uma aliança entre a música e a televisão, de forma semelhante aos anos 1940-1950 quando a música se aliou ao rádio. É nesse sentido que se pode falar de uma Música Televisual Brasileira. Essa música é efeito de um ambiente midiático, prolifera com ele e por ele é afetada em seu estilo, em suas composições e suas criações.

* Rafael Gloria é jornalista, mestre em Comunicação pela Ufrgs e editor fundador do Coletivo de Jornalismo Cultural Nonada – Jornalismo Travessia e sócio da agência Riobaldo