* De Cruz Alta
Cruz Alta já foi a única cidade da Região Norte do Rio Grande do Sul. Afinal, foi dela que se emanciparam mais de 200 dos 497 municípios gaúchos. Entretanto, com o tempo, ela foi superada economicamente pelas cidades que gerou. E, hoje, figura em quarto lugar no ranking do Produto Interno Bruto (PIB) da macrorregião Norte do Estado. Mesmo assim, é um local que tem se desenvolvido — e possui potencial para isso.
Entre os diferenciais, um dos principais é a logística, conforme defende a prefeita de Cruz Alta, Paula Librelotto (MDB). Ao lado de Santa Maria, é a única cidade gaúcha que opera com rodovias, ferrovia e aeroporto. Fator, inclusive, que foi crucial na escolha pelo município do Alto Jacuí para a instalação do grande empreendimento da Soli3, uma indústria de processamento de grãos formada pela união entre as cooperativas Cotrijal, Cotripal e Cotrisal que contará com um investimento de R$ 1,25 bilhão.
A cidade é, ainda, conhecida por ser o berço do escritor Erico Verissimo e de diversas personalidades históricas. A isso, soma-se o fato de ser um importante centro cultural, com um dos maiores carnavais do Rio Grande do Sul e o festival tradicionalista Coxilha Nativista. O turismo nesse sentido tem sido estimulado pela prefeitura. Mas Paula também afirma querer atrair turistas pela religião, com a construção da maior cruz visitável do mundo.
Nesta entrevista exclusiva ao Jornal do Comércio, a prefeita de Cruz Alta avalia o desenvolvimento econômico da região em que a cidade está situada. Além disso, avalia a atração de investimentos, o estado das contas públicas municipais, o futuro dos aeroportos regionais e as mudanças demográficas da cidade.
Jornal do Comércio — Quais acredita que são as principais oportunidades de desenvolvimento econômico da Região Norte hoje?
Paula Librelotto — A questão logística é a mais promissora. Estamos em uma região com rodovias importantes, como a ERS-342 e a BR-158. Além disso, temos a ferrovia, com um grande entroncamento rodoferroviário. É uma potencialidade muito grande porque esse modal ferroviário vai até Rio Grande. Os grãos vêm para cá de rodovia e daqui embarcam no trem, o que acredito que é muito relevante do ponto de vista econômico.
JC — Qual é o papel econômico da ferrovia para Cruz Alta hoje?
Paula — 70% dos grãos do Rio Grande do Sul são embarcados aqui para irem ao porto de Rio Grande. Isso nos traz também matéria-prima. É a partir disso que acreditamos que os grandes negócios virão, para transformar esses grãos em subprodutos. Já temos uma indústria (que está se instalando aqui) que é a Soli3, das cooperativas Cotrijal, Cotripal e Cotrisal, com um investimento de R$ 1,25 bilhão em Cruz Alta. Os grãos vão chegar aqui e serão transformados em biodiesel e derivados da soja.
JC — Como está o projeto de contorno ferroviário?
Paula — Foi contratado pelo governo federal, é um projeto deles junto com o Dnit (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes) e está em fase de elaboração de projeto, com a perspectiva de ser entregue até 2027. A partir disso, a nova concessão ferroviária vai ter como determinante esse contorno, que terá duas fases. A primeira, pegará as regiões Leste e Sul da cidade, próximo à BR-158, que é o ramo que vai até Rio Grande. A outra parte pega o Leste e o Norte, com os trilhos que vão até o Rio de Janeiro.
JC — Há algum tipo de transtorno pelos trilhos passarem dentro da cidade?
Paula — Mesmo a ferrovia cruzando a cidade em dois pontos importantes, não vemos tantos acidentes. Mas é um risco, porque um dia pode acontecer, por exemplo, um descarrilamento, e causar problemas. E o trem acaba afetando diariamente a vida das pessoas na mobilidade urbana, porque tem momentos em que o tráfego fica parado de 15 a 20 minutos em certos bairros da cidade. Afeta o transporte de ambulância, passageiros, pessoas indo para as escolas etc. E há ainda um problema fundiário, com um conflito em que a Rumo (concessionária responsável pela ferrovia) moveu ações de despejo para as famílias que moram próximo aos trilhos. Quando tivermos o contorno ferroviário, isso vai ser resolvido e no local da ferrovia vamos fazer um grande parque urbano com ciclovia e caminhódromo para melhorar a qualidade de vida da população.
JC — Qual é a expectativa com a duplicação da ERS-342?
Paula — É uma obra muito esperada. Está tudo planejado para começar no primeiro semestre de 2026 as obras pela Perimetral de Cruz Alta. E todos os terrenos no entorno dela já foram comercializados. Isso deu uma aquecida na questão imobiliária, já pensando em novos negócios. Vemos até empresas se instalando nesse local no ramo agrícola e de caminhões, porque os investimentos querem estar às margens da rodovia para facilitar e dar mais visibilidade. Acreditamos que vai nos aproximar ainda mais da região, incluindo de Ijuí, que é um polo importante de educação e saúde. Isso vai, com certeza, atrair mais investimentos.
JC — Antes a senhora mencionou a Soli3. Qual é a perspectiva da prefeitura com a chegada dessa indústria?
Paula — Mudará a história de Cruz Alta no perfil de tributação. Quando estiver operante, ela vai gerar um ICMS bem relevante, em torno de R$ 20 milhões ao ano em retorno imediato. Durante a construção, são mil empregos sendo gerados e 600, entre diretos e indiretos, na operação. Isso irá gerar toda uma rede de outros serviços, como oficinas, restaurantes e postos de combustíveis. Será um fluxo de 350 caminhões por dia, em média, circulando para a Soli3. Tem outras empresas de esmagamento de soja, como a 3Tentos, que movimenta hoje em torno de 200 caminhões por dia por aqui. E a Yara Fertilizantes também movimenta, em média, 100 caminhões por dia. O fluxo vai dobrar na região, principalmente nos serviços, que representam 60% do PIB da cidade.
JC — Isso deverá contribuir no problema de armazenagem de grãos no Estado?
Paula — Hoje temos um hub logístico em Cruz Alta que só não é maior porque o Porto do Rio Grande não tem a capacidade de armazenagem que a gente precisa para a quantidade de grãos que são produzidos na nossa região. E isso vai fazer com que aumente esse fluxo de transporte de grãos, o que, para o município, é muito rentável.
JC — Qual é a importância das cooperativas na região?
Paula — Temos aqui a CCGL, que é a união central das cooperativas do Estado. Muitas delas estão ligadas à CCGL. E vemos que o cooperativismo está preocupado não apenas com a questão da renda, mas também com os seus associados. Isso fortalece as culturas e a produção do campo, assim como o espírito de cooperação dentro da cidade, até mesmo na gestão pública e nas relações institucionais. Temos, também, as cooperativas de crédito, como a Sicredi Planalto, que é uma das maiores do Brasil, com sede em Cruz Alta. Isso vai fortalecendo as parcerias. Acredito muito na maneira com que eles trabalham e no retorno que eles têm dado para o município.
JC — Cruz Alta é a terra do escritor Erico Verissimo e de diversas personalidades históricas. Também tem um carnaval forte e a Coxilha Nativista. Pensam em intensificar o turismo cultural?
Paula — Sim. Cruz Alta é um berço literário por conta do Erico e cultural por conta da Coxilha e do carnaval. A Coxilha Nativista já acontece há 45 anos ininterruptamente e temos projetos educacionais para que ela se perpetue. O carnaval é o terceiro maior do Estado, com desfile de escolas de samba e cultura brasileira relacionada aos nossos antepassados. Ainda, temos o turismo religioso, com o santuário local visitado na romaria de Nossa Senhora de Fátima por mais de 200 mil pessoas. Estamos, agora, explorando os Caminhos de Fátima e o turismo rural. E temos o projeto de fazer a maior cruz visitável do mundo que já conta com verba de emenda parlamentar. Além disso, queremos fazer o restauro da Estação Férrea, que era um prédio federal e que conseguimos trazer para o município, mas já fizemos três licitações que não tiveram empresas interessadas.
JC — As parcerias público-privadas dos aeroportos de Passo Fundo e Santo Ângelo devem trazer mais pessoas para Cruz Alta?
Paula — Sim, para a região. Estamos tentando nos conectar com o turismo das Missões Jesuíticas, que vão completar 400 anos em 2026. Acreditamos que esses aeroportos vão aproximar porque eles têm voos comerciais. Nosso aeroporto de Cruz Alta é totalmente privado, mas com capacidade para também fazer voos comerciais. Então, estamos em negociação para trazer alguma rota ou escala desses voos mais próximos em alguns dias da semana. Hoje, somos a cidade com o maior número de aviões particulares do Rio Grande do Sul.
JC — E o aeroporto daqui dá conta da demanda da cidade?
Paula — Ele é privado, mas a gente utiliza muito. Ele nos trouxe o suporte aeromédico que antes a gente não conseguia operar. Hoje, havendo necessidade, os empresários nos emprestam o terminal para essa finalidade. E o aeroporto também tem trazido muitos investidores. O fato de poder pousar aqui em um solo muito fértil nos colocou em outro patamar. Hoje, só Santa Maria e Cruz Alta têm aeroporto, ferrovia e rodovia. Mas, diferente de lá, o nosso aeroporto é muito próximo da rodovia, um do lado do outro.
JC — Embora a Região Norte tenha crescido o número de habitantes, Cruz Alta perdeu população. Como a prefeitura tem lidado com isso?
Paula — Estamos buscando fortalecer a qualidade de vida da população com investimentos em saúde, dando segurança aos moradores e pensando em estratégias da primeira infância. Também pensamos no envelhecimento da nossa população, porque vemos um aumento dos aposentados e idosos de Cruz Alta. Buscamos fortalecer a Unicruz, nossa universidade comunitária, criando com eles um programa municipal de bolsas de estudo para que os jovens permaneçam aqui estudando, e os cursos técnicos, para qualificar nossa mão de obra. Investimos, ainda, em infraestrutura de lazer não só no centro, mas por todo o município.
JC — E em relação à retenção da juventude no campo?
Paula — Temos um perfil um pouco diferente das cidades menores do nosso entorno, com só 3,5 mil pessoas morando no campo. O que temos fortalecido junto com as cooperativas, a Unicruz e o próprio Sindicato Rural é a questão da sucessão familiar. Então, estamos aproximando o agro das escolas e mostrando sua importância. Estamos fazendo capacitação de professores voltadas ao agronegócio para podermos fazer uma abordagem mais assertiva. Porque hoje temos observado que no campo as vagas de emprego estão remunerando melhor que as da cidade, mas também estão exigindo profissionais muito mais capacitados. Também estamos apostando em desenvolver as agroindústrias. Quando assumimos, eram duas legalizadas. Agora, estamos com 12.
JC — Caso a população aumente, tem estrutura habitacional?
Paula — Vemos um crescimento nessa área, com loteamentos privados que foram lançados há seis meses e já foram comercializados em quase 80%. Também temos todo um planejamento em relação a programas habitacionais, estamos com 200 unidades habitacionais em construção entre os programas Minha Casa Minha Vida, do governo federal, e do A Casa é Sua, do estadual. Temos buscado qualificar esse setor (da habitação).
JC — E na cidade, há falta de mão de obra?
Paula — Tem um cenário econômico agora no Brasil que nos assusta um pouco pelas estimativas do futuro. Vemos que temos que qualificar a nossa mão de obra, porque temos vagas disponíveis e não estamos conseguindo ocupar elas. Temos feito feirões de emprego, até para entender o perfil da pessoa que está procurando e das vagas que estão abertas. Estamos buscando trazer mais cursos técnicos para Cruz Alta, gratuitos ou pagos. Então, fortalecemos relações com instituições, como o Sesc e o Senac. Também estamos em conversa com o Senai para trazer cursos técnicos. Com o Instituto Estadual Annes Dias, conseguimos, neste ano, mais um curso em eletrotécnica, que é uma grande demanda da região, mas trabalhamos buscando com o Instituto Federal Farroupilha e com o próprio Senai focar em áreas como o biodiesel. Temos diversas universidades também e é através da educação que a gente vai conseguir gerar oportunidades, isso está muito claro para nós.
JC — Como estão as finanças do município? Estão conseguindo manter o equilíbrio fiscal?
Paula — Conseguimos organizar as finanças. Era um município extremamente endividado (quando a gestão assumiu), que não tinha capacidade de contrair financiamento e fazer convênios com o Estado e com a União. Agora, conseguimos acessar linhas de crédito para fazer investimentos. Superávit, ainda não temos por conta das dívidas do passado. Equilíbrio fiscal, sim. Cruz Alta está entre as 30 melhores cidades do Brasil na gestão e na qualidade da informação fiscal, numa avaliação do Siconfi (Sistema de Informações Contábeis e Fiscais do Setor Público Brasileiro). Estamos com nota A. Estávamos na casa dos 3.420 entre os 5.500 municípios do Brasil. E agora estamos em 28. Realmente, conseguimos organizar as finanças. Não gastamos mais do que arrecadamos. E, no futuro, com esses novos investimentos, tenho certeza que teremos superávit.
Perfil
Aos 39 anos, Paula Rubin Facco Librelotto (MDB) está na segunda gestão à frente da prefeitura de Cruz Alta. Médica infectologista de formação, mestre em Ciências da Saúde e especialista em Controle de Infecção Hospitalar, foi justamente na pandemia, em 2020, que se elegeu pela primeira vez para o Executivo. A reeleição, em 2024, foi uma das mais bem-sucedidas do Rio Grande do Sul: Paula, que também foi a primeira mulher a assumir a prefeitura cruz-altense, atingiu 88,7% dos votos válidos. Anteriormente, foi vereadora na cidade entre 2017 e 2020. Casada com o deputado estadual Rafael Braga Librelotto (MDB), possui dois filhos, Valentino e Vittório. Tem, ainda, um MBA em Administração e Gestão Pública.