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Publicada em 27 de Outubro de 2025 às 15:06

Entre o real e o imaginado, Cruz Alta preserva o legado de Erico Verissimo

Museus, praças e ruas de Cruz Alta contam, ainda hoje, a trajetória do escritor

Museus, praças e ruas de Cruz Alta contam, ainda hoje, a trajetória do escritor

TÂNIA MEINERZ/JC
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Ana Stobbe
Ana Stobbe Repórter
De Cruz Alta
De Cruz Alta
Um município agropastoril relativamente pobre, sem grandes estâncias dignas de nota, com um comércio medíocre e uma indústria pequena e sem importância. Foi assim que o escritor Erico Verissimo descreveu a Cruz Alta de 1926, sua terra natal, na autobiografia Solo de Clarineta. De lá para cá, a cidade cresceu, industrializou-se, e tornou-se a 4ª maior economia da Macrorregião Norte, que está em pleno desenvolvimento. Mas, embora o tempo tenha passado e as paisagens já não sejam as mesmas dos princípios do século XX, a cidade guarda sua memória com esmero.
A Praça da Matriz, que inspirou tantas cenas da sua obra-prima, O Tempo e o Vento, hoje leva o seu nome. Nela, uma estátua do escritor aparece sentada em um banco, feita pelo artista plástico e escultor Lucas Strey. O local é o ponto de chegada do percurso Os Caminhos de Erico em Cruz Alta, idealizado pelo historiador Rossano Viero Cavalari e que percorre locais marcantes da vida de um dos cruzaltenses mais memoráveis.
O trajeto é realizado com escolas da região e para pessoas interessadas, mediante agendamento, sempre de forma gratuita. Entretanto, é durante a Feira do Livro da cidade — que acontece, em 2025, entre 4 e 9 de novembro — que chega ao seu auge. Na ocasião, os grupos, guiados por Cavalari com o auxílio de uma sineta, são ainda maiores.
“Cruz Alta é uma cidade ancestral dentro da história do Rio Grande do Sul e, como a gente sabe, através do tropeirismo originou vários municípios do Estado (222 no total). Isso tudo se confunde com a própria história do Erico, que acabou nascendo nessa cidade em 1905 e praticamente colocou Cruz Alta no mapa do mundo. Devemos muito a ele pela sua importância e por estar presente em praticamente todas as livrarias e bibliotecas do planeta. Isso faz com que sejamos conhecidos como a terra do Erico Verissimo e temos muito orgulho disso”, pontua Cavalari.
Prédio que abrigou banco onde Erico trabalhou é um dos pontos de parada de passeio histórico | TÂNIA MEINERZ/JC
Prédio que abrigou banco onde Erico trabalhou é um dos pontos de parada de passeio histórico TÂNIA MEINERZ/JC
O caminho inicia na sua casa da infância, que atualmente está em obras para reforma, mas que abriga um museu, cujo acervo foi transferido provisoriamente a outro lugar. De lá, é possível ver o local onde ficava a antiga farmácia do pai de Erico, Sebastião Verissimo, que hoje ocupa outro estabelecimento da mesma natureza. Atrás, um dos sobrados que inspiraram o famoso lar da família Terra-Cambará na sua trilogia.
Passando pela antiga Rua do Comércio — hoje batizada Pinheiro Machado — está o banco em que o escritor trabalhou como escrivão. Ali também é possível identificar onde funcionou a farmácia da qual foi sócio, hoje substituída por um comércio. “Ele estava tentando descobrir o que fazer, do que ele gostava. Então, trabalhou com várias coisas”, avalia Emilia Nascimento Machado, que atua no museu dedicado ao escritor.
No estabelecimento, ele reconhecia “tipos” usados em seus personagens, baseando-se nos frequentadores da farmácia, conforme explica Cavalari. “Temos esse orgulho de ser a terra-mãe do escritor, mas também de ter servido de inspiração para as obras dele, com personagens nascidos aqui e tipos humanos que frequentavam a casa, a farmácia dele ou que ele conheceu aqui. E isso serviu mais tarde de inspiração para ele constituir o seu próprio roteiro através dessa cidade, que foi palco especial das suas obras”, acrescenta o historiador.
Nada distante da sua farmácia, o escritor passou a conviver com a sua futura esposa e parceira de vida, Mafalda Halfen Volpe. Afinal, do outro lado da rua, diante ao estabelecimento do qual ele foi sócio, era a casa da família dela e a loja de chapéus da futura sogra de Erico. O casal foi pai de Clarissa, nome conhecido pelos leitores do cruzaltense, e do cronista Luis Fernando Verissimo, falecido em 30 de agosto deste ano.
A cidade de Cruz Alta aparece nas histórias de Verissimo, mesmo pela ficção, como uma inspiração de alta verossimilhança. Diante de uma maquete da fictícia Santa Fé, construída com base em um desenho feito pelo próprio autor, Cavalari cita semelhanças: “A catedral é extremamente parecida com a daqui da cidade. As ruas principais têm o mesmo nome das daqui e a estrutura de duas praças também”, exemplificou o historiador.
Mapa da fictícia cidade de Santa Fé, descrita por Erico Verissimo na obra de 'O Tempo e o Vento', tem muitas semelhanças com o desenho urbano de Cruz Alta | TÂNIA MEINERZ/JC
Mapa da fictícia cidade de Santa Fé, descrita por Erico Verissimo na obra de 'O Tempo e o Vento', tem muitas semelhanças com o desenho urbano de Cruz Alta TÂNIA MEINERZ/JC
Outro ponto digno de nota é o Barro Preto, citado por Verissimo na sua famosa trilogia e presente no mapa da cidade de Santa Fé desenhado por ele. O local, hoje chamado de bairro São Miguel, era formado pela população negra e, conforme Cavalari, originado pela construção das primeiras olarias da cidade.
Não coincidentemente, é um dos berços das escolas de samba do município. “Cruz Alta tem o terceiro maior carnaval do Rio Grande do Sul, mas existiam protestos contra essa festa pelo restante da população e isso se repete até hoje, quando as elites são contra o carnaval”, avalia o historiador.
A cidade, aliás, foi um dos redutos a abolir a escravidão — pelo menos no papel — antes da Lei Áurea, de 1888. Em Cruz Alta, com o impulso de movimentos abolicionistas, os escravizados haviam sido alforriados em 1884. Muitos, entretanto, embora formalmente libertos, seguiram trabalhando sob as mesmas condições do regime escravista.
Em pesquisa na Cúria Diocesana de Cruz Alta, onde estão registros como de batismos e casamentos de toda a história cruzaltense, Cavalari observou que um vasto contingente de pessoas foram trazidas escravizadas do continente africano à cidade. Os documentos sugerem, inclusive, uma proporção grande em relação à de escravizados nascidos no Brasil.
Entre a ficção e a realidade, Verissimo se mudou para Porto Alegre em 1930. Já decidido a seguir a carreira literária, trabalhou na Editora Globo e o resto é — literalmente — história. Em sua autobiografia, é enfático ao demonstrar o carinho que sentia pelo município: “A decisão de deixar Cruz Alta era de natureza intelectual. Emocionalmente, eu queria ficar”, escreveu o autor.
Sua última visita à cidade está documentada em diversas imagens. Acompanhado da família, ele prestigiou a primeira edição da Feira Nacional do Trigo e Feira Agropastoril (Fenatrigo), que em 2025 foi realizada pela 18ª vez entre 26 de setembro e 5 de agosto.
Essa visita da família Verissimo a Cruz Alta aconteceu em 18 de outubro de 1975. Em 28 de novembro do mesmo ano, Erico faleceu, vítima de um infarto. “Morte súbita” estampou com pesares a edição do Jornal do Comércio que sucedeu a trágica morte do renomado escritor. Seja como for, a cidade não se esqueceu do seu filho.

 Manuscritos do escritor são parte do acervo do museu Erico Verissimo em Cruz Alta | TÂNIA MEINERZ/JC
Manuscritos do escritor são parte do acervo do museu Erico Verissimo em Cruz Alta TÂNIA MEINERZ/JC

Cidade também é o berço de políticos republicanos históricos

Com seus 327 anos de fundação e 204 anos de emancipação, Cruz Alta tem muitas outras histórias para contar. Afinal, em seu vasto território, hoje fragmentado em municípios emancipados, nasceram também importantes personalidades históricas. Entre elas, políticos republicanos que consolidaram sua carreira em cargos públicos entre o final do século XIX e o início do XX.
A cidade, aliás, ficou conhecida como “Ninho dos Pica-Paus”, em referência a essas figuras que, aliás, não poderiam deixar de fazer parte da narrativa da trilogia O Tempo e o Vento na sua missão de contar a história do Rio Grande do Sul. O apelido, inclusive, virou título de um dos livros escritos por Cavalari e publicado pela editora Martins Livreiro em 2012.
O termo “pica-paus” surgiu com a Revolução Federalista de 1893, identificando os republicanos centralizadores que lutavam contra os “maragatos” federalistas. “Muita gente confunde os chimangos com os pica-paus. São o mesmo lado político, mas em momentos históricos diferentes”, esclarece Cavalari.
Uma das principais lideranças dos pica-paus, Júlio de Castilhos, que hoje nomeia um município da Região Central do Estado, nasceu em Cruz Alta. Jornalista, político e adepto ao positivista, ele foi uma das inspirações do são-borjense Getúlio Vargas que presidiu o Brasil de 1930 a 1945 e de 1951 a 1954.
Membro do Partido Republicano Riograndense (PRR), Castilhos dirigiu o jornal A Federação entre 1884 e 1889 com o objetivo de propagar as ideias republicanas. Adquirindo prestígio político, foi eleito, em 1891, deputado na Assembleia Constituinte, que formulou a Constituição do Estado do Rio Grande do Sul. O documento foi escrito pelo cruzaltense praticamente sozinho e em um movimento de oposição a Rui Barbosa. Posteriormente, foi presidente do estado do Rio Grande do Sul em dois momentos. Na segunda ocasião, foi um dos responsáveis por conter a Revolução Federalista.
Rossano Cavalari, escritor, pesquisador e historiador, é responsável pela obra de restauro do museu Erico Verissimo em Cruz Alta | TÂNIA MEINERZ/JC
Rossano Cavalari, escritor, pesquisador e historiador, é responsável pela obra de restauro do museu Erico Verissimo em Cruz Alta TÂNIA MEINERZ/JC
Enquanto isso, o senador Pinheiro Machado, que visita, a contragosto, o sobrado dos Terra-Cambará no volume da obra O Tempo e o Vento intitulado O Retrato, e contemporâneo de Castilhos, também nasceu em Cruz Alta. Hoje, ele também nomeia um município, mas na Região Sul.
Pinheiro Machado lutou na Guerra do Paraguai, atuou por um tempo na fazenda de seu pai e, posteriormente, cursou Direito em São Paulo. Na política, fundou o partido republicano em São Luís das Missões, atual São Luiz Gonzaga, na Região das Missões, onde exerceu a advocacia após graduar-se. Republicanista, foi eleito senador e participou da construção da Constituição de 1891.
Deixou a cadeira temporariamente para atuar na Revolução Federalista, onde combateu e derrotou os maragatos na Batalha do Pulador, na atual Passo Fundo. Retornou ao Congresso Nacional e permaneceu lá até ser assassinado em 1915. Próximo do presidente Hermes da Fonseca (que governou o País de 1910 - 1914), ensaiou se candidatar à sucessão presidencial em 1914, mas não teve o plano consolidado.
O terceiro pica-pau cruzaltense famoso foi Firmino de Paula. A casa de seu filho, inclusive, com as iniciais F e D incrustadas na porta, é o local que recebe temporariamente a exposição do museu de Verissimo. A atuação do cruzaltense na Revolução Federalista foi marcada pelo episódio conhecido como "Degola do Boi Preto", um dos momentos mais sangrentos do conflito, quando 250 maragatos foram degolados em etaliação pela degola anterior de 23 pica-paus no combate do Rio Negro.
Primo de Castilhos, foi um importante político republicano e o primeiro intendente de Santo Ângelo, chefiando o executivo da cidade de 1892 a 1896. Posteriormente, foi chefe de polícia e chefe político de Cruz Alta e região, sendo um dos articulistas da eleição de Borges de Medeiros como presidente do Estado do Rio Grande do Sul, que culminou na Revolução de 1923, na qual atuou entre as tropas governistas.

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