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Publicada em 11 de Setembro de 2025 às 19:46

Festival de Gramado 2025: a autoestima renovada do cinema brasileiro

Com Oscar na estante e bom momento do cinema do País no exterior, Festival de Gramado foi oportunidade para discutir o futuro da filmografia nacional

Com Oscar na estante e bom momento do cinema do País no exterior, Festival de Gramado foi oportunidade para discutir o futuro da filmografia nacional

EDISON VARA/PRESSPHOTO/DIVULGAÇÃO/JC
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Igor Natusch
Igor Natusch Editor de Cultura
Não é exagero nem fora de propósito dizer que, este ano, o Festival de Cinema de Gramado aconteceu em um clima um pouco diferente. E, ao dizê-lo, não nos referimos ao frio natural de agosto na Serra Gaúcha (menos intenso, de fato, do que em anos idos), mas mais especificamente a um outro tipo de temperatura, aquela que se pode medir nas conversas de bastidores, na troca de figurinhas antes dos debates ou do começo das sessões. De certa forma, o evento cinematográfico que movimentou a cidade entre os dias 13 e 23 de agosto deste ano trouxe consigo um subtexto inevitável - um significado que, mesmo dizendo algo diferente para cada um dos presentes, estava sempre lá, exigindo algum tipo de ponderação.
Não é exagero nem fora de propósito dizer que, este ano, o Festival de Cinema de Gramado aconteceu em um clima um pouco diferente. E, ao dizê-lo, não nos referimos ao frio natural de agosto na Serra Gaúcha (menos intenso, de fato, do que em anos idos), mas mais especificamente a um outro tipo de temperatura, aquela que se pode medir nas conversas de bastidores, na troca de figurinhas antes dos debates ou do começo das sessões. De certa forma, o evento cinematográfico que movimentou a cidade entre os dias 13 e 23 de agosto deste ano trouxe consigo um subtexto inevitável - um significado que, mesmo dizendo algo diferente para cada um dos presentes, estava sempre lá, exigindo algum tipo de ponderação.
Afinal, pela primeira vez em seus 53 anos de história, o Festival de Cinema de Gramado aconteceu em um Brasil vencedor do Oscar.
Não que a consagração de Walter Salles, Fernanda Torres e Ainda Estou Aqui seja um evento isolado, é claro. Temos O Agente Secreto, novo longa de Kleber Mendonça Filho, consagrado em Cannes e considerado, desde já, candidato real a repetir a estatueta em Los Angeles. Em Gramado mesmo, tivemos a estreia nacional fora de competição de O Último Azul, de Gabriel Mascaro, que chegou ao Palácio dos Festivais credenciadíssimo pelo Urso de Prata no festival de Berlim. Há bons motivos, portanto, para acreditar que Ainda Estou Aqui (mesmo com todas as particularidades de um filme que, desde o começo, tinha um plano traçado para o sucesso internacional) não é evento isolado, e que o cinema brasileiro vive, de fato, um momento significativo de atenção e reconhecimento no exterior.
"Não lembro de algum outro ano tão particularmente potente para o cinema brasileiro", admite Rodrigo Santoro, que atua em O Último Azul e recebeu nesta edição de Gramado o Kikito de Cristal, em reconhecimento à sua significativa carreira fora do País. Ainda assim, o ator de sucessos como Che e 300 reforça que o interesse pela nossa cultura, em certa medida, sempre esteve lá. "Há muitos anos, sempre que eu falo de onde venho, as pessoas respondem dizendo 'Oh, Brazil!', com um tom de entusiasmo, como uma exclamação. E eu tento, sempre que posso, falar que temos uma cultura muito diversificada, muito rica, que não fica só no futebol, no Carnaval e nas belezas naturais. Eu acho muito bonito que isso esteja sendo reconhecido pelo mundo", anima-se.
É de se discutir (e isso, de fato, foi muito discutido em Gramado neste ano) se a chancela do Oscar era mesmo tão importante, ou se faz mesmo tanta diferença. Mas ninguém que viva o cinema no Brasil poderá negar o peso que a estatueta tem no imaginário em torno da sétima arte - ou ignorar que, para uma parcela significativa do público consumidor de cinema no País, o fato de levarmos um Oscar para casa traz uma atenção renovada para o nosso quintal.
"O Brasil é um país muito apaixonado por essa coisa de torcida, então, acho que o cinema meio que entrando nesse lugar do futebol é algo divertido, nos conecta emocionalmente com o cinema feito aqui", diz Gustavo Mascaro, diretor de O Último Azul. "Acho que essa visibilidade que o Oscar traz tem o efeito, acima de tudo, de ajudar a que o público brasileiro saiba mais sobre o cinema feito por aqui. Fico torcendo que esse reconhecimento internacional tenha força para criar mais mecanismos de financiamento, para permitir uma descentralização da produção, para que um Brasil mais plural possa estar ocupando esse espaço, mostrando o seu olhar", pondera.
"Ganhar um Oscar é uma luz jogada de lá dos Olimpos cinematográficos, que vem para nos dizer: 'observem o que vocês têm aí na casa de vocês, na casa de vocês há coisa boa'", afirma o professor e crítico cinematográfico Marcos Santuário, um dos curadores da mostra competitiva nacional de Gramado. "Então, quando Walter Salles e Fernanda Torres chegam lá, e muita gente torce por eles como se fosse uma Copa do Mundo, vai se consolidando essa ideia: 'opa, nós temos coisa boa'. E aí a gente acaba recebendo (para seleção) essa quantidade enorme de filmes mostrando que o Brasil produz, que há gente trabalhando muito fervorosamente nisso, dedicando a sua vida e querendo que dê certo, contando histórias significativas, cativantes e relevantes para o atual momento do cinema. É a autoestima do cinema brasileiro, e do público brasileiro, que cresce."
 

Um olhar afetuoso para quem vive o cinema

53º edição do Festival de Gramado teve público estimado de 40 mil pessoas, entre cineastas, artistas, jornalistas e estudantes, além de 400 mil visitantes

53º edição do Festival de Gramado teve público estimado de 40 mil pessoas, entre cineastas, artistas, jornalistas e estudantes, além de 400 mil visitantes

EDISON VARA/PRESSPHOTO/DIVULGAÇÃO/JC
Quem vive a cultura no Brasil sabe: nosso País tem o mau hábito de não olhar para si com a atenção - e, muitas vezes, com o carinho - que deveria. Não são poucos os que, durante décadas, têm feito a engrenagem do cinema brasileiro girar - e Gramado tem cumprido, há mais de cinco décadas, o dever de oferecer a essas pessoas um justo espaço de destaque, antes das luzes se apagarem e do filme tomar conta da tela. Uma tarefa nobre que, talvez de forma paradoxal, se torna mais simples - e mais abrangente - quando o reconhecimento de fora reforça o que, do lado de cá, há tempos já se dizia.
"Eu sinto que é um momento de renascimento (do cinema brasileiro). Não acho que (o Oscar para Ainda Estou Aqui) seja uma validação, mas é um reconhecimento da qualidade do nosso cinema", afirma o ator, músico e compositor Leo Jaime, que esteve em Gramado como parte do elenco de Papagaios, de Douglas Soares. "(Quando aceitei participar do longa) eu vinha com esse questionamento: qual o valor que a gente dá para as pessoas que constroem a nossa subjetividade? Não tem uma cidade chamada Cássia Eller, uma rua Rita Lee, uma avenida Cazuza ou Paulo Autran. O aeroporto Antônio Carlos Jobim (no RJ) chamam de Galeão, Tim Maia virou uma ciclovia que caiu no segundo dia", enumera.
Em uma realidade como essa, cabe a festivais como Gramado o papel não apenas de exibir o cinema brasileiro, mas de puxar a justa salva de palmas a quem faz com que ele aconteça. Além de Rodrigo Santoro, que recebeu o Kikito de Cristal, o festival concedeu prêmios especiais a figuras importantes na história do nosso cinema. Os principais foram o Eduardo Abelin, entregue à produtora de cinema Mariza Leão, e o troféu Oscarito, agraciado à atriz Marcélia Cartaxo - ela mesma uma figura simbólica do sucesso de nosso cinema fora do Brasil, tendo recebido o Urso de Prata em Berlim na sua estreia na telona, com A Hora da Estrela (1985), de Suzana Amaral.
"Particularmente, não me interessa fazer cinema para agradar um olhar colonial", afirma a diretora Laís Melo, que esteve no festival com seu primeiro longa, . "Porém, a gente olha para festivais de cinema muito sérios também, e é positivo saber que as nossas histórias, as nossas latinidades estão ocupando esses espaços e recebendo essas chancelas. Porque são chancelas, não é? O que define quem vai ocupar esse espaço, a partir de qual perspectiva, quem define o que é o melhor filme, a melhor foto? Acho que são questões que estão sempre pulsando. Então, saber que, nesses espaços consolidados, filmes construídos a partir de múltiplos olhares da nossa brasilidade estão ganhando espaço... É algo que eu saúdo, de verdade."
 

Potência feminina e rompimentos de narrativa

Equipe do longa-metragem brasileiro Nó, de Laís Melo, uma das obras que valorizou o feminino no Palácio dos Festivais

Equipe do longa-metragem brasileiro Nó, de Laís Melo, uma das obras que valorizou o feminino no Palácio dos Festivais

CLEITON THIELE/PRESSPHOTO/DIVULGAÇÃO/JC
A mostra competitiva nacional deste ano trouxe, ao todo, dez filmes voltados a diferentes aspectos da experiência brasileira. Além dos quatro documentários - Até Onde a Vista Alcança (SP), de Alice Villela e Hidalgo Romero; Lendo o Mundo (RN), de Catherine Murphy; Os Avós (AM), de Ana Ligia Pimentel; e Para Vigo Me Voy (RJ), de Lírio Ferreira e Karen Harley - seis longas de ficção movimentaram as noites de exibição no Palácio dos Festivais. Dois deles trouxeram diretoras mulheres em suas estreias no formato de longa-metragem: , assinado por Laís Melo, e A Natureza das Coisas Invisíveis, de Rafaela Camelo. Em comum, ambos contam histórias nas quais a presença masculina é quase ausente, detendo o olhar sobre a construção de afetos (e a vivência da dor) em universos estritamente femininos.
Outro ponto em comum entre os longas é o olhar sensível na direção das mulheres trans - em especial no caso de , que retrata a personagem Magali (Fernanda Silva) de tal forma que ela apenas existe diante da tela, sem a responsabilidade quase onipresente de carregar um discurso sobre a própria sexualidade. "Eu acho que é um filme completamente ordinário", pondera Laís Melo. "Ele tem essa narrativa macro, mas, dentro disso, a gente tem ciclos, dias que vão e passam, esse lugar ordinário mesmo da vida. Então, uma personagem como Magali chega e apenas existe, e é isso que nos interessa: fazer essas pequenas fabulações, no desejo que elas sejam cada dia mais reais e naturais também". 
Além dessas duas estreias, a mostra competitiva nacional trouxe os longas Papagaios, de Douglas Soares; Querido Mundo, de Miguel Falabella; Sonhar com Leões, de Paolo Marinou-Blanco; e Cinco Tipos de Medo, de Bruno Bini, escolhido pelo júri como o melhor filme desta edição. Mais equilibrada do que em anos anteriores, a seleção conseguiu aproximar filmes que, em princípio, pouco ou nada teriam de semelhantes entre si - mas que, vistos em conjunto, apresentavam conexões significativas, como a propensão a rompimentos drásticos (e intencionais) no ritmo da narrativa.
 

Do tapete para a tela, e vice-versa

Calçada da Fama de Gramado ferveu com a presença diária de celebridades como a atriz Bruna Linzmeyer

Calçada da Fama de Gramado ferveu com a presença diária de celebridades como a atriz Bruna Linzmeyer

CLEITON THIELE/PRESSPHOTO/DIVULGAÇÃO/JC
Quando se pensa no Festival de Gramado, o tapete vermelho e a tela do Palácio dos Festivais têm a mesma importância. De fato, o festival desde sempre acontece nesses dois universos: a resistência e provocação criativa dos novos realizadores depende do glamour das celebridades na Rua Coberta para existir, e vice-versa. Na edição deste ano, talvez a comédia dramática Querido Mundo tenha sido a que melhor atuou para trazer gente famosa a Gramado: além do diretor Miguel Falabella, atores e atrizes como Malu Galli, Eduardo Moscovis, Marcelo Serrado e Danielle Winits estiveram na cidade serrana, participando de eventos ligados ao festival e sendo alvo de gritos e pedidos de selfies pelo público. 
Outros filmes selecionados contribuíram para a movimentação de astros, consideravelmente maior do que em anos anteriores. Sonhar com Leões trouxe Denise Fraga a Gramado, enquanto a atriz Bella Campos, atração da TV aberta no remake da novela Vale Tudo, integra o elenco do premiado Cinco Tipos de Medo - que também atraiu a atenção do público mais jovem pela presença do rapper Xamã, em sua estreia cinematográfica. Fora de competição, a exibição do primeiro capítulo da série Máscaras de Oxigênio Não Cairão Automaticamente levou ao tapete vermelho famosos como Bruna Lizmeyer e Icaro Silva - e, como parte da equipe de jurados ou da curadoria, nomes como Edson Celulari, Isabel Fillardis, Caio Blat e Camila Morgado também marcaram presença.
Nos corredores, a presença de famosos foi vista como positiva, sinal de recuperação do festival (e da cidade) após os impactos pesados da pandemia e das enchentes do ano passado. Depois de anos em que a badalação perdeu força na alquimia de Gramado, o glamour finalmente deu sinais de estar retornando - o que abre um sorriso no rosto do setor econômico gramadense, mas também é boa notícia para quem vive do cinema.
"Em 2012, quando a Gramado Tour convidou José Wilker, Rubens Ewald Filho e eu para uma nova curadoria, essa questão já era fundamental, porque havia a percepção de que os filmes anteriores estavam afastando as pessoas do tapete vermelho", relembra o curador Marcos Santuário. "O festival não é nosso, da curadoria: ele é de Gramado, ele pertence a Gramado. O evento é um grande produto, e a gente traz um conteúdo para esse evento. Mas sem uma dicotomia, uma separação entre o tapete e a tela. Quem passar pelo tapete vai estar na tela. E quem for reconhecido ao passar no tapete não vai ser uma celebridade vazia da contemporaneidade: vai ser porque tem talento, contribui com a indústria e faz parte de uma representação potente do cinema brasileiro."
 

Buscando um bom caminho

Cinco Tipos de Medo, de Bruno Brini (centro), foi o melhor longa brasileiro

Cinco Tipos de Medo, de Bruno Brini (centro), foi o melhor longa brasileiro

CLEITON THIELE/PRESSPHOTO/DIVULGAÇÃO/JC
Embora seja sempre retrato de momento do cinema brasileiro, Gramado é também uma seta para o futuro. Não apenas por abrir a porta e a tela para realizadores que trazem a novidade às salas do País e do exterior, mas por encorajar discussões sobre o cinema que está por vir, em especial no Conexões Gramado Film Market, que promoveu debates e mesas de negócio em paralelo às exibições de filmes. Em um momento de efervescência, com o Oscar na estante e o mundo prestando atenção em nosso cinema, é natural que haja certo entusiasmo - embora não sejam poucas as vozes advertindo que ainda há muito a ser feito.
 "São submetidos cerca de 1.200 roteiros por ano (aos editais de fomento ao audiovisual), e apenas uns 30 vão entrar de fato em produção. O Brasil lança mais de 200 filmes por ano, mas o market share vai ficar com 5 deles e os outros 195 não serão vistos por quase ninguém. Isso me dói, não se constrói uma forma de valorizar esses filmes como merecem", lamenta Mariza Leão, uma das mais importantes produtoras do nosso cinema e que recebeu o troféu Eduardo Abelin. "Hoje, realizadores e produtores experientes disputam com os novatos os mesmos espaços, os mesmos financiamentos. Isso não é justo com quem está começando, e também não é justo com quem está na luta há muito tempo. A gente corre risco de estar se enganando que um Oscar ou um Urso em Berlim são demonstrações de potência, e que isso basta. A potência existe, mas a solução não está aí (nas premiações)", adverte.
"Eu espero que esse sentimento fique, não é? Que as pessoas realmente se interessem não só pelos filmes brasileiros que vão para o Oscar, mas também por conhecer esses outros filmes do Brasil, filmes que não são do eixo Rio-São Paulo", pondera Rafaela Camelo, diretora de A Natureza das Coisas Invisíveis. "E é preciso pensar que há muita coisa sendo produzida, e a gente que está próximo do cinema sabe que um filme leva, às vezes, seis anos ou mais para ser feito. Aí vemos alguns comentários do tipo 'agora o cinema brasileiro vai decolar', mas pô, o filme já estava sendo produzido, já está na pista para decolar há muito tempo. Estamos vivendo, sim, um grande momento, mas é algo que a gente não pode deixar de alimentar."
"Festival não é só exibição, é negócio também", reforça Marcos Santuário. "Posso te garantir que, nesses 10 dias (de evento), já temos negócios saindo, novos filmes já estão sendo projetados, pensados, organizados, estruturados. Tem gente já se preparando para escrever roteiros que nascem, como projeto, aqui em Gramado e que vão gerar produções mais tarde. Essa também é função do festival, servir como um estímulo e um espaço para novas iniciativas e novas carreiras no audiovisual. Se conseguirmos juntar isso com esse sentimento positivo em torno do cinema brasileiro, vamos estar em um bom caminho", conclui.
 

* Igor Natusch é jornalista e escritor e atua como editor de Cultura do Jornal do Comércio. Nos anos de 2019 e 2020, conquistou o primeiro lugar no Prêmio Ari de Jornalismo, na categoria Reportagem Cultural.

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