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Publicada em 22 de Agosto de 2025 às 11:22

OPINIÃO: Estrelado por Denise Fraga, 'Sonhar com Leões' consegue falar de eutanásia com lirismo e humor

20/08/2025 - 53º Festival de Cinema de Gramado - Calçada da Fama com a atriz Denise Fraga | Foto oficial: Edison Vara/Ag.Pressphoto

20/08/2025 - 53º Festival de Cinema de Gramado - Calçada da Fama com a atriz Denise Fraga | Foto oficial: Edison Vara/Ag.Pressphoto

EDISON VARA/PRESSPHOTO/DIVULGAÇÃO/JC
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De Gramado
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Falar sobre eutanásia e morte assistida é, possivelmente, um dos maiores desafios que qualquer cineasta pode encarar. Imagine, então, fazer isso em forma de comédia surreal. Pois é justamente isso que surge na tela em Sonhar com Leõesexibido na mostra competitiva de longas do 53º Festival de Gramado na quarta-feira (20). Com uma atuação marcante de Denise Fraga, o longa dirigido por Paolo Marinou-Blanco relata a história de Gilda, imigrante brasileira em Portugal que, diante de uma doença terminal, resolve encerrar a própria vida da forma mais digna possível.
Em meio aos esforços para obter o direito à morte assistida, ela acaba se inscrevendo em um curso clandestino de uma corporação que promete facilitar o acesso à morte assistida, e lá encontra Amadeu (João Nunes Monteiro), um jovem tímido que trabalha em uma agência funerária e tem a capacidade de conversar com os mortos. Convencidos de que estão sendo passados para trás pela empresa, os dois resolvem ir atrás de outros meios para obter a assistência que desejam, passando por uma série de situações cômicas e tocantes pelo caminho.
Desnecessário dizer que, em mãos ineptas, a chance de um desastre em forma de cinema era nada desprezível. Felizmente, Sonhar com Leões acerta em quase todas as suas muitas apostas, conseguindo a pequena proeza de fazer rir e refletir sobre um tema ainda visto como tabu pela sociedade. Além das conversas de Amadeu com os defuntos que prepara para o funeral (incluindo um fofíssimo cachorro, que rende uma das mais deliciosas filosofadas do filme), o longa faz um uso inteligente da quebra da quarta barreira, deixando Gilda conversar diretamente com o espectador em vários momentos. Sem panfletagem, que fique claro: é muito mais como se a personagem quisesse nos mostrar a realidade plena de sua condição, sem dourar a pílula - ou "sem pena", mantra que ela repete várias vezes durante o filme.
A comédia, embora sempre presente, surge sem parecer forçada, em especial pelo timing extraordinário de Denise Fraga, que tira de letra um papel que poderia deixar embananada qualquer atriz menos talentosa ou experiente. Na medida em que a relação entre Gilda e Amadeu se torna mais intensa, o filme vai ganhando contornos um pouco mais dramáticos, mas sem escorregar para o melodrama ou insinuar soluções mágicas para o destino dos personagens. Para onde quer que se olhe, Sonhar com Leões é um filme bem-sucedido em sua ousada proposta, e certamente renderá ótimo entretenimento (e boas reflexões) a quem se dispuser a assisti-lo.
Na verdade, apenas uma coisa incomodou na exibição de Sonhar com Leões em Gramado: a ausência de um disclaimer, ou, dizendo de forma mais clara, algum alerta antes do filme sobre o conteúdo que vai aparecer na tela. Não cabe entrar em detalhes, mas o longa praticamente começa com uma cena bastante forte, capaz de despertar gatilhos emocionais em muitas pessoas - e a naturalidade com que a busca de Gilda pela própria morte é descrita pode, sim, ser bastante perturbadora para determinados estados de espírito. Não é por mero 'politicamente correto' que notícias de suicídio são tratadas com extremo cuidado pela imprensa, e não é bobagem imaginar que muita gente pode entrar na sala de cinema sem saber do que trata o filme, sofrendo um impacto emocional para o qual talvez não estejam preparadas. 
A equipe garantiu que um aviso será incluído nas cópias comerciais do longa, o que já resolve boa parte do problema. Seja como for, avisamos nós por aqui: Sonhar com Leões tem cenas fortes e até explícitas, que fazem sentido e estão justificadas dentro da história que está sendo contada, mas que podem bater mal em muita gente - e é bom ter isso em mente antes de comprar o ingresso para a sessão.
 "Temos vivido uma vida muito morta", diz atriz
Apesar da agenda corrida, Denise Fraga esteve presente em Gramado entre quarta (20) e quinta-feira (21). Deixou suas mãos na Calçada da Fama, atendeu muitos fãs e, no debate posterior à exibição de Sonhar com Leões, comemorou a boa recepção ao filme pelo público. "Quando você gosta muito de um roteiro, fica com um pouco de medo de ver pronto, sabe? 'Será que eu vou gostar?' E eu fiquei muito feliz, porque gostei muito, e as pessoas parecem ter gostado muito também. Lidando com um tema tão complexo, a gente fica com um pouco de medo de desrespeitar o tema, desrespeitar as dores das pessoas, mas nós tínhamos as mesmas dores, não estávamos falando do assunto de forma leviana."
A fala de Denise não é da boca para fora. O diretor Paolo Marinou-Blanco diz ter se inspirado no falecimento do pai para conceber Sonhar com Leões, e a própria Denise Fraga vivenciou recentemente a morte da mãe, em janeiro, após longo período de decadência física. De acordo com a atriz, a convivência próxima nos últimos meses de vida da mãe, combinada com a finalização do filme e a leitura de A Morte é Um Dia que Vale a Pena Viver, de Ana Claudia Quintana Arantes, mudaram profundamente sua percepção sobre o viver. "Vivi uma jornada de vida incrível ao lado da minha mãe rumo ao final, e ela sempre muito lúcida, muito determinada a vivenciar tudo que envolvia aquele momento. Esse medo de falar da morte talvez tenha a ver com um certo temor de morte em vida. Um dos debates do filme é se estamos vivendo de verdade, porque a gente, muitas vezes, tem vivido uma vida tão morta!", exclamou.
O diretor Paolo Marinou-Blanco já havia experimentado com o tema no curta Nada nas Mãos (2021), que trabalhava o arco narrativo de um agente funerário que, em depressão, pedia conselhos aos mortos sobre o que fazer de sua vida. O próprio realizador, porém, admite que "ainda não estava pronto" para abordar o tema a partir da tragicomédia, o que viria a se concretizar plenamente no longa que chega aos cinemas em 11 de setembro. "Não vejo que nosso filme esteja falando sobre suicídio, vejo que ele fala sobre a vida. Quando a gente ajuda pessoas em sofrimento terrível a acabar com sua vida de forma digna, estamos na verdade ajudando essas pessoas a viver melhor. Me parece que ajudar alguém que deseja morrer é, no fundo, elogiar a vida como algo que merece cuidado e respeito, e as tentativas de suicídio (de pessoas desenganadas) surgem justamente quando as pessoas não recebem esse afeto e essa ajuda."

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