Pautada pela alternância de curtos períodos de proximidade com longas fases de afastamento, a relação entre o jazz e a noite de Porto Alegre é quase centenária. O mais impactante gênero musical norte-americano fincou bandeira nos melhores cafés da Rua da Praia na década de 1920. Com o rádio e a indústria do disco ainda em fase de ensaio, coube a bandas locais - Espia Só, Royal, Guarany, Cruzeiro, Paulo Coelho - entregar ao público uma mistura de ritmos na qual a nova tendência estava mais no nome pintado no bumbo que na forma ou conteúdo.
Leia as demais reportagens da série Porto Noite Alegre:
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- Na Cristóvão Colombo, boate Papagayu's fez sucesso no auge dos embalos da 'discoteque'
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Leia aqui as reportagens da primeira temporada da série Porto Noite Alegre
Leia aqui as reportagens da segunda temporada da série Porto Noite Alegre
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Inclua-se nessa trajetória iniciativas como o Hot Club (1952), liderado pelo músico e pesquisador Hardy Vedana e o comunicador Glênio Reis, que se reuniam para ouvir discos do acervo do Instituto Cultural Brasileiro Norte-Americano. Glênio, aliás, também seria responsável pelo pioneiro programa Jazzland na Rádio Difusora, com direito a jam-sessions no estúdio da emissora, nas tardes de sábado.
Ou pelas audições especiais no Clube de Cultura (primeiro na avenida Protásio Alves, depois na rua Ramiro Barcelos), nos anos 1960. Iniciativas isoladas, sem que houvesse casas noturnas específicas – algumas até chegaram perto, como a boate Big Som (bairro Cidade Baixa), em 1975-1980.
Ou pelas audições especiais no Clube de Cultura (primeiro na avenida Protásio Alves, depois na rua Ramiro Barcelos), nos anos 1960. Iniciativas isoladas, sem que houvesse casas noturnas específicas – algumas até chegaram perto, como a boate Big Som (bairro Cidade Baixa), em 1975-1980.
Logo pediria passagem toda uma geração de instrumentistas locais com um pé no jazz. Jorginho do Trompete. Dionara Schneider. Cláudio Sander. Dunia Elias. Luizinho Santos. James Liberato. Pedrinho Figueiredo. Os grupos Cheiro de Vida, Raiz de Pedra e Hálito de Funcho. A lista é extensa, incluindo nomes que partiriam para carreiras na Europa. Para quem ficou, a demanda por espaços de apresentação teve entre suas consequências a abertura de uma série de bares dedicados ao segmento, em um dos períodos mais propícios aos adeptos dessa vertente sonora.
Os compassos iniciais foram deflagrados em 1982 com o Take Five, espécie de clube informal (e restrito a convidados) da pianista Yvonne Pacheco em sua casa na rua Dario Pederneiras, em Petrópolis. As coisas começaram a esquentar no mesmo ano, com a o restaurante Lugar Comum transferindo-se da rua Lucas de Oliveira (na mesma região) para o trecho da rua Santo Antônio entre Independência e Cristóvão Colombo (bairro Floresta), e cuja agenda musical seria deslocada, quatro anos depois, para o andar de cima, com a instalação da Sala Jazz Tom Jobim.
Uma folheada pelas editorias de cultura dos principais jornais daquele tempo mostra a progressiva abertura de oportunidades, com boates, teatros, universidades e outros palcos afins reservando parte de sua programação a essa tendência. Estava armada a “deixa” para a criação de uma série de estabelecimentos especializados, a maioria no perímetro central da cidade e sob ritmo acelerado em 1988-1989. Absintho. Stan Getz. Cidade Baixa Jazz & Cia. Red Fox. E o Blue Jazz Bar, ainda hoje lembrado por noitadas dignas de um dos melhores momentos culturais da cidade.
Os acordes retrocedem o calendário ao primeiro semestre de 1988, com o empresário Roberto Beiersdorf (1956-2002) e o jornalista, desenhista, fotógrafo e compositor Juarez Porto (1950-2004) dispostos a investir em um negócio, sem saber exatamente qual. Anúncios de aluguel em Zero Hora conduziram a dupla a uma pequena loja de 5 metros de largura por 20 de profundidade, no térreo de um prédio residencial na rua José do Patrocínio nº 789 (esquina com Lopo Gonçalves, na Cidade Baixa) e que abrigara no início dos anos 1970 o bar Cantinho do Chopp. “Queremos algo cult” era a ideia básica do futuro empreendimento.
Idealismo, improviso e qualidade
Uma das poucas imagens internas do Blue Jazz, retirada de um especial sobre Geraldo Flach gravado pela RBS no local
ACERVO RENE GOYA/DIVULGAÇÃO/JCEm uma lógica inversa à de que primeiro se define o negócio e só depois escolhe o ponto, a casa encontrada por Juarez e Roberto é que levou os sócios a investirem no ramo boêmio, algo inédito em ambas as trajetórias - 'Beto' ao menos tivera uma breve experiência como dono da lancheria Sanduba, na região ocupada por emissoras de TV nos altos do Morro Santa Tereza. "Assim que vimos o interior do imóvel, com jeito de boteco francês, é que veio a ideia de um clube para os amigos. E o jazz era o que mais combinava", recordaria Juarez à revista Veja, meses depois.
Não mais que duas semanas bastaram para uma reforma-relâmpago e os devidos reparos. "O Beto tinha duas tias que eram suas fãs e contribuíram com um reforço financeiro, além de ajudar na cozinha do bar", acrescenta Jussara Hervê, mãe do único filho do empresário. Inaugurado em maio de 1988, o Blue & Jazz Bar logo se notabilizou pela programação diferenciada e preços acessíveis. Tão rápida quanto a montagem do esquema foi a fidelização de clientela, com presença constante de músicos também na plateia, muitos dos quais recrutados para 'canjas'.
"Eu morava a duas quadras e, de imediato, virei habituê do lugar, que era acolhedor, charmoso e tão pequeno que o apelidamos 'Bluesinho' em seguida", conta o cantor e compositor Dudu Sperb. "Não demorou para que eu passasse a me apresentar por ali, em pleno início de carreira. Foi minha escola noturna, inclusive ao estimular a ampliação do meu repertório de MPB e bossa nova para os standards da canção norte-americana e o jazz de Billie Holiday, Duke Ellington e outros tantos que passei a ouvir e amar."
Sobram elogios aos proprietários, de quem se tornou amigo, principalmente de Roberto: "Eram caras muito bacanas e corretos conosco, dava para perceber que curtiam aquilo, eram felizes ali. Outro sujeito camarada era o garçom Altair. Ele sempre trazia como 'remédio' uma dose de uísque para o nervosismo da pianista Beatriz Horn, amiga de infância da minha mãe e que, mesmo autodidata e sem experiência na noite, tinha aceitado o convite para me acompanhar nas apresentações, recebendo cachê, algo novo para ela."
Vizinho de endereços icônicos da noite na Cidade Baixa, tais como o bar Opinião e as boates Carinhoso, Anos Dourados e Sandália de Prata (a boemia no bairro permanecia sob domínio de um público mais adulto que o das décadas seguintes), o já pequeno espaço do Blue & Jazz se tornava minúsculo diante do próprio sucesso. A disponibilidade de outra casa para locação, bem maior e a pouco mais de três quadras dali, fez os sócios esfregarem as mãos. Mal completavam-se 11 meses de atividade e já era hora de expandir o esquema para um lugar adequado a planos mais ambiciosos.
Reduto cultural
Detalhe do programa de uma das noites agitadas do Blue Jazz, já no segundo endereço, na Aureliano de Figueiredo Pinto
ACERVO DUDU SPERB/REPRODUÇÃO/JCA mudança para o número 998 da avenida Aureliano de Figueiredo Pinto, entre o restaurante Copacabana e a boate Clube da Saudade, deflagrou em 20 de abril de 1989 a fase áurea do Blue Jazz (já sem o "&"). Com um grande neon azul sobre a fachada branca da casa térrea em estilo rústico e fachada branca, o bar recebeu afagos da imprensa com um festival que somava 17 atrações ao longo de três noites de reinauguração. "A proposta é de um reduto cultural onde predomine o jazz e manifestações correlatas", explicou Juarez à Zero Hora - ele ainda atuava como correspondente do Jornal do Brasil.
Com capacidade para 200 pessoas (o quíntuplo da anterior), mas sem perder a atmosfera intimista, o ambiente interno de pé direito alto e com colunas em vez de divisórias recebera o merecido capricho decorativo. Paredes em azul. Pôsteres de música e cinema. Reproduções de antigos anúncios. Imagens assinadas por fotógrafos gaúchos. Um conceito que, nas palavras de Beto, remetia aos clubes noturnos das décadas de 1930 e 1940. O palco com capacidade para uma banda completa e circundado por dezenas de mesinhas redondas receberia, dali em diante, os mais diversos artistas.
A programação abraçava veteranos locais como Yvonne Pacheco, Hardy Vedana e Geraldo Flach (estrela de um especial da RBS TV gravado no local), em alternância a talentos emergentes, com espaço permanente ao protagonismo feminino. Dunia Elias. Flora Almeida. Carina Donida. Hoje proprietária de empresa especializada na produção de trilhas para cinema e publicidade, Carina relembra os tempos de pianista em início de carreira, após trocar o curso de Medicina no Interior do Estado pelo de Música no Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul:
"Eu tocava em duo com o violoncelista Ricardo Pereira e no trio Cais, ao lado do Mario Carvalho no contrabaixo e o Marcelo Figueiredo no sax. Além de permitir meu sustento financeiro, muitas vezes de quarta a domingo, a experiência permitia a 'troca de figurinhas' com vários colegas. Uma das coisas mais legais dessa época era o pessoal conferir as apresentações uns dos outros. O Jorginho do Trompete, por exemplo, aproveitava os intervalos de trabalho para um pulo até o Blue Jazz, onde dava canjas por um set inteiro e voltava correndo para a boate".
Nessa mesma época, o músico, jornalista e pesquisador Arthur de Faria tocava direto na casa com o seu grupo Barato Pra Cachorro. "O lugar tinha muita moral e foi onde mais ganhei dinheiro com a banda. A gente tocava direto. Teve uma apresentação em que a plateia estava quase vazia, a ponto de pensarmos em dar um tempo no Blue Jazz. Eis que chegou um ônibus lotado com uma turma de Cachoeira do Sul, para o nosso show. Até hoje a gente diz 'pode ser que chegue um ônibus de Cachoeira do Sul', em tom de brincadeira, quando algum show não tem muito público".
Espaço eclético
Jamais engessado pela referência ao blues e ao jazz na denominação do empreendimento, o conceito não impedia espaço generoso a manifestações mais descontraídas. Muita gente passou a frequentar o local não exatamente pela música, e sim por saraus de variedades como o impagável Madame Hortense, com o ator Leverdógil de Freitas no comando de esquetes teatrais, performances cômicas, recitais de poesia, bate-papos sobre arte e canções de cabaret ao sabor dos esfumaçados cafés de Paris ou Berlim no período entre-Guerras.
Foi numa dessas que a jovem jornalista e apresentadora Marla Martins conheceu o marido, Paulo Urnau Pinheiro, em 1991. "Eu nem era muito de sair à noite, até por estar em fase de conclusão de faculdade na Ufrgs, estágio etc., mas adorava assistir ao Madame Hortense com amigos e colegas. Aí teve uma vez que vi um bonitão e meio diferente cruzar a porta de entrada, de gabardine. Na mesma hora pensei 'Que cara interessante, vou me casar com ele'. Pois ele veio sentar justo conosco, devido a uma amiga em comum. O resumo dessa ópera é que deu casamento mesmo, em setembro do ano seguinte".
Outra boa história envolve um show solo do cantor e compositor carioca Jards Macalé, no testemunho de Dudu Sperb. "Em meio ao barulho da plateia, ele discursou cordialmente sobre a importância do silêncio em respeito ao artista. Foi aplaudido e tudo transcorreu bem até o intervalo, quando um sujeito musculoso foi intimá-lo, com o argumento de que o cliente tem o direito de falar à hora que bem entender. Macalé cerrou os punhos, em pose de pugilista e dizendo 'Me soltem!', mesmo sem ninguém o segurando. Foi hilário! E o valentão acabou forçado a sair, sob vaias".
Acordes dissonantes
Reconstituição da logomarca do Blue Jazz Bar, espaço marcante do jazz em Porto Alegre nos anos 1990
ACERVO MARCELLO CAMPOS/REPRODUÇÃO/JCA gestão lucrativa que ditava o compasso do Blue Jazz - e sua reputação de bom pagador - se manteve até o final de 1991, com direito a "unidade avançada" em Tramandaí durante um dos verões daquele início de década. Houve um momento, porém, em que tudo desafinou. Como nas trajetórias alucinantes de boa parte dos melhores jazzistas norte-americanos da década de 1950, os excessos podiam não afetar a criatividade, mas certamente comprometeram o desempenho. "No fim das contas, o pessoal não resistiu à combinação de sexo, drogas e jazz", lamenta uma fonte próxima a Juarez e Roberto.
Esse não era o único trinômio nos bastidores de um dos melhores endereços noturnos da cidade. Fato ignorado mesmo por familiares de ambos (cada qual com um filho), a amizade iniciada na juventude e a parceria comercial estabelecida na fase adulta estavam embaralhadas a um relacionamento amoroso, marcado por altos e baixos. E que entrou em completo desafino por um grande desentendimento, de motivação restrita ao íntimo de seus envolvidos - que nunca mais se viram ou falaram. Rompido o dueto, restou o recomeço em carreira solo no primeiro semestre de 1992.
Juarez instalou no número 836 da rua Santo Antônio, no Bom Fim, o Sweets Club, espécie de café-concerto multimídia, "inspirado em bares underground da Alemanha": pequeno palco para shows, galeria de arte, sessões de cinema e até tarô. Já Roberto permaneceu com o Blue Jazz, bifurcado em dois endereços. Ele pintou de azul as paredes de um novo Blue Jazz na Mata Bacellar nº 292, Auxiliadora, enquanto a "matriz" na Cidade Baixa era arrendada a terceiros - é o que se deduz das citações por notas nos jornais até o final de 1993.
Com o encerramento de suas atividades noturnas no ano seguinte, os ex-sócios deixaram o Rio Grande do Sul. Roberto Beiersdorf passou uma temporada no Rio de Janeiro e voltou para Porto Alegre, onde investiu na produção de sapatilhas infantis até falecer, em 2002. Juarez Porto, por sua vez, morreu em 2004 na cidade de Blumenau (SC), onde retomara a carreira de jornalista e ativista na área da cultura. O primeiro aos 46 anos e o segundo com 54. Um de cirrose hepática, o outro de câncer no fígado.
O espaço ocupado pelo primeiro Blue Jazz continua de pé, na José do Patrocínio. Nas últimas décadas, abrigou boate para casais, lavanderia, lanchonete e, desde 2023, um bar no segmento de hip-hop. Já a casa da avenida Aureliano de Figueiredo Pinto acabou adquirida pelo hoje extinto restaurante Copacabana, que a derrubou para a construção de seu estacionamento, por volta de 2000. Algo, porém, não foi demolido: o legado de idealismo, improviso e qualidade de dois sujeitos que ajudaram a moldar um momento notável na boemia porto-alegrense.
O Jazz em Porto Alegre na década de 1980
• Take Five
Rua Dario Pederneiras (Petrópolis)
• Lugar Comum / Sala Jazz Tom Jobim
Rua Santo Antônio nº 421, próximo à avenida Independência
• Red Fox
Rua José do Patrocínio nº 527, a entre Rua da República e Luiz Afonso
• Blue & Jazz Bar
Rua José do Patrocínio nº 789 (esquina com Lopo Gonçalves), depois avenida Aureliano de Figueiredo Pinto nº 998 (Cidade Baixa) e rua Mata Bacellar nº 292 (Auxiliadora).
• Cidade Baixa Jazz & Cia.
Rua Olavo Bilac nº251, esquina com Lima e Silva
• Absintho
Rua Lucas de Oliveira nº 105, esquina com Felipe Nery (Auxiliadora)
• Stan Getz
Avenida Independência nº 421 (prédio da Ospa), esquina com rua João Telles
• Sweets Club
Rua Santo Antônio nº 836, perto da Osvaldo Aranha (Bom Fim)
* Marcello Campos é formado em Jornalismo, Publicidade & Propaganda (ambas pela PUCRS) e Artes Plásticas (UFRGS). Tem seis livros publicados, incluindo as biografias de Lupicínio Rodrigues, do Conjunto Melódico Norberto Baldauf e do garçom-advogado Dinarte Valentini (Bar do Beto). Há mais de uma década, dedica-se ao resgate de fatos, lugares e personagens porto-alegrenses. Contato: [email protected].