Dez anos é um bom período para uma avaliação: o que um artista - que saiu de cena ainda em plena fase criativa - poderia estar criando? Que caminhos teria trilhado nessa última década?
Seguiria coerente fazendo um tipo de música no estilo que sempre fez, sem concessões, sem preocupações externas, ou também seguiria coerente pesquisando novos rumos, interessando-se por novas sonoridades e novas parcerias? Estaria compondo, produzindo trilhas, dedicando-se ainda com mais afinco ao estudo do piano? Estaria ainda mantendo uma vida social e culturalmente ativa, circulando entre diversos grupos e sendo influenciado e influenciador de tantas pessoas?
Estas dúvidas - todas elas com relação a Geraldo Flach, que poderia ainda estar vivo se um câncer não o tivesse consumido até a morte, no começo de 2011 - ainda me intrigam. E foi em busca de respostas, de especulações, que eu fui atrás de parentes, amigos, parceiros e críticos, pessoas que - cada qual à sua maneira - poderiam avaliar como seria um Geraldo Flach 2021.
Todos são unânimes em reconhecer que a intensa atividade musical permaneceria e que o papel primordial do piano, o Ludô (como foi apelidado João Ludovico Eça Jobim Flach), um Essenfelder cauda, que durante boa parte da vida foi o melhor e mais constante amigo de Geraldo Flach, seria cada vez mais destacado. "Estaria fazendo muita música, não tenho dúvida. Fazendo o que tivesse vontade, sem se preocupar em agradar, em 'ser vendável'. Se permitindo tocar com quem quisesse. Projetos 'do coração'", explica Ângela Moreira Flach.
"O espírito agregador e inquieto tão marcante em meu pai se impõe. Com ele aprendemos a viver sob a regra da soma dos afetos, o que é - além da obra musical - um legado e tanto. Uma grande certeza me toma: aos 75 anos, ele estaria tocando muito e rompendo barreiras", ressalta Cynthia, filha mais velha do músico.
"Tenho dificuldade em usar o futuro do pretérito quando me refiro a meu pai, porque ele é absolutamente presente: sua obra, sua personalidade, sua arte. E não há um dia sequer em que eu não me pegue querendo dividir com ele uma alegria ou uma apreensão do presente. Ele criou uma música brasileira com identidade, mas sem amarras: universal e atual. Que falta ele faz aqui. O mundo precisa da sutileza, da elegância, da delicadeza, da humanidade e da arte de Geraldo Flach", acrescenta Bethânia, a segunda filha.
"Ele seria ainda mais reconhecido", completa o jornalista Juarez Fonseca, amigo próximo de Geraldo Flach por mais de 30 anos. "Compondo e tocando cada vez mais, confirmando que sua carreira estava em ascensão e que ele ainda tinha muito a dar."
Geraldo Flach morreu no dia 3 de janeiro de 2011. Tinha 65 anos. Mas, como se verá a seguir, as lembranças são muitas e provam que o artista continua vivo.
Música com 'Alma'
Depois de tocar em conjuntos de baile, participou de festivais no RS e País
/ACERVO ANGELA FLACH/DIVULGAÇÃO/JC
Por mais de cinco décadas, Geraldo Flach foi presença constante no cenário musical do Rio Grande do Sul. Ele iniciou a carreira profissional aos 14 anos de idade, tocando em conjuntos de baile.
Influenciado pelas dezenas de trios que surgiam durante a bossa nova, ele, na década de 1960, formaria um, com o qual se apresentaria em shows e em programas televisivos. O passo seguinte seriam os festivais, participando de competições no Rio Grande do Sul e no Rio de Janeiro.
"Eu conheci o Geraldo como caixa da Caixa Econômica Estadual, onde eu tinha conta e ficava conversando com ele. Sempre me pareceu uma figura interessante. Apenas meses depois fui saber que ele era músico", lembra o crítico musical Juarez Fonseca.
Assim, pelos anos seguintes, Geraldo e Juarez ficariam ainda mais próximos. Neste período, Geraldo seria o diretor artístico da gravadora ISAEC, entre 1978 e 1979, época em que produziu cerca de 120 discos.
Geraldo começaria os anos 1980 se dedicando a projetos pessoais. Em 1980, ele realizou seu primeiro espetáculo individual, A Voz do Brasil, apresentado no Teatro Renascença e, no ano seguinte, gravou seu primeiro disco, Alma, com as composições Reencontro, Parceira, Fantasia, Vilarejo e C & B (Duas meninas), dedicada às filhas. "Fui entrevistá-lo para este show e para este disco. Aliás, tive a honra de acompanhar sua carreira escrevendo sobre todos os shows e todos os discos", recorda Juarez.
Para Ângela Flach, ex-companheira, Alma é também um disco muito especial nas vidas deles, com um repertório repleto de recordações: "São várias músicas, difícil dizer qual a mais especial, mas escolho a primeira, Momento".
Ângela conta ainda que Geraldo sentia a música o tempo todo. "Ele tinha tudo na cabeça, alguns acordes. Eu conhecia a respiração e o corpo dele se embalando, para frente e para trás. Quando chegava ao piano, a composição já saía pronta. Eu me sinto uma privilegiada por ter vivido muitos desses momentos. Como era o Geraldo músico? Bah! Era um gênio. Sábio, sabia sempre qual seria o próximo passo."
Juarez acrescenta: "Era um músico excepcional, como poucos vi no Rio Grande do Sul. E foi aqui que ele sempre quis permanecer. Talvez fosse pouco conhecido, mas era muito respeitado por nomes como Ivan Lins, Nana Caymmi, César Camargo Mariano e Wagner Tiso".
Outra memória é a do sobrinho Daisson, que no começo dos anos 1980, ainda adolescente, foi outra testemunha destes primeiros shows e discos de Geraldo Flach. Começando a se interessar pela música em geral e pelo piano, de maneira mais específica, Daisson observava a postura do tio. "O Geraldo nunca parou ao meu lado para me ensinar nada - e acho que ele nunca fez isso com ninguém - mas ele me ensinava ao natural, tocando".
Daisson conta que foram inúmeras conversas e que nestes papos Geraldo sempre dava um jeito de falar sobre a importância do instrumento e de como o músico deve estar atento a tudo que está ao redor: o espaço, os barulhos, a respiração...
Para lembrar Geraldo Flach
Em 2012, prefeitura de Porto Alegre inaugurou o Estúdio que leva o nome do músico
Ricardo Giusti/PMPA/JC
Símbolo de tantas noites musicais, o Ludô, hoje, ocupa um espaço central na Sala Jazz Geraldo Flach. Na verdade, o apartamento de Ângela Moreira Flach - a segunda mulher e maior curadora da obra e da memória de Geraldo -, e de seu atual marido, Roni Barboza. É neste apartamento que o pianista segue vivo.
A Sala Jazz Geraldo Flach é para manter a memória com vida, com música. "Para os que conheceram ele, uma homenagem. Para os que não sabiam quem era, uma descoberta. Assim, para mim e para o Roni é muito prazeroso: sempre uma oportunidade para que a obra do Geraldo seja escutada e tocada. E o Ludô segue sendo uma presença forte: os pianistas se emocionam quando tocam nele!", explica Ângela.
Para lembrar apenas um momento marcante, houve um episódio que poderia ter apenas explicações mediúnicas. Foi quando ocorreu a primeira reunião do Quarteto sem Geraldo Flach, em 2015. Os três músicos e amigos de longa data, Fernando do Ó, Ricardo Arenhaldt e Ricardo Baumgarten (falecido em 2018), receberam o pianista Cristian Sperandir, que ocuparia o lugar de Geraldo. "Foi um tributo arrepiante, em que se pôde sentir a presença do meu pai. O Geraldo teria aprovado e vibrado muito, com toda a certeza", recorda com emoção a filha Cynthia.
A Sala Jazz é uma versão oficial e com uma programação mais regular e estabelecida da ideia que já acompanhava Ângela e Geraldo desde os tempos da casa de Ipanema, na década de 1980. O local em que o casal viveu por tantos anos sempre foi ponto de encontro de amigos e familiares. "Nossa casa era chamada de 'Flachlândia', com muita diversão e sempre aberta." Os irmãos Norberto e Daisson Flach, filhos de Matias, irmão de Geraldo, iam muito lá: para tocar, para ouvir música ou simplesmente conversar.
Juarez Fonseca era outro habitué: "Eu ia muito com a Sônia (mulher) e Lis (filha). A proximidade era tanta que a Lis convidou os dois para que eles fossem seus padrinhos". "O Geraldo sempre se sentava na mesma ponta da mesa. Era um anfitrião afável, interessado nos outros e um grande churrasqueiro", continua Juarez. "Ele tinha um tempo da carne que só ele entendia", conta Daisson. "O tio colocava a picanha na churrasqueira, ficava de costas, bebendo e conversando. De repente, ele ia ali e dava uma virada. Passava mais um tempo, ele ia lá e tirava. E a carne estava perfeita. Ele nunca errava."
Passaram pela casa de Ipanema nomes como Jerônimo Jardim, Ivan e Lucinha Lins, Paulinho e Maurício Tapajós, os irmãos Ramil, os Caymmi, Joyce, Elis, Milton. Passam agora pela Sala Jazz outras figuras como Pedro Borghetti, Luciano Leães, Ayres Pothoff, Earl Thomas, Leandro Maia, Tom Worrel e Marcelo Delacroix.
Nesses 10 anos, Geraldo Flach sempre foi muito bem lembrado. O POA Jazz Festival realizou o Tributo a Geraldo Flach, e Cynthia lembra que em 2020 foi concluído o minucioso trabalho de catalogação de partituras e documentos deixados pelo músico, trabalho realizado pelo também músico e bibliotecário Luiz Martins.
Em 2012, a prefeitura de Porto Alegre, via Secretaria Municipal de Cultura, inaugurou o Estúdio Geraldo Flach. Localizado junto ao Teatro de Câmara (República, 575), o espaço que leva o nome do pianista foi criado para oferecer à comunidade musical gaúcha uma alternativa sem custos e de qualidade técnica para gravação de projetos artísticos em CD.
Juarez Fonseca ressalta que ainda existem planos - interrompidos pela pandemia - de reunir numa caixa toda a discografia de Geraldo e mais a feitura de um perfil biográfico. A história permanece.
Nas notas do afeto
Geraldo Flach ao lado do amigo, o jornalista e crítico musical Juarez Fonseca
ACERVO ANGELA FLACH/DIVULGAÇÃO/JC
Além do talento musical, Geraldo Flach é lembrado de forma unânime pelo espírito gregário e pela capacidade de cativar quem estava ao lado. "Havia enorme afinidade entre nós dois. Nem precisávamos marcar. Era certo que iríamos nos encontrar, em especial na Companhia Sanduíches", lembra Renato Borghetti. "Ali começava. Mas foram muitas as vezes em que o bar fechava e íamos para outro lugar, como o Bar do Bagé, um mercado pequeno que a gente acordava o dono de madrugada, ele descia, abria para nós e colocava três copos. Nada mais justo que ele bebesse junto".
Outras surpresas poderiam ocorrer nessas madrugadas. "Às vezes, o telefone tocava lá pelas três da madrugada. O susto era enorme. Só podia ser notícia ruim", conta o jornalista Juarez Fonseca. "Aí atendia já sobressaltado e ouvia: 'Juquinha, fiquei com vontade de te ligar e dizer que te acho um grande amigo. Te amo, Juquinha'". Juarez garante que não havia como não ficar enternecido, mesmo com uma declaração tão extemporânea e num horário tão impróprio. "Agradecia e voltava a dormir."
Borghettinho gosta de lembrar como pôde durante anos ter Geraldão ao seu lado, tocando muito em Porto Alegre, em cidades do Interior e viajando bastante por Santa Catarina, São Paulo, Rio de Janeiro, Uruguai - onde tocaram no festival de jazz de Punta del Este - e na Argentina. "Inauguramos o Anfiteatro Pôr-do-Sol, e ele me dizia quando subia ao palco que o show bom é aquele que é possível tocar sem ansiedade. E, como sou ansioso, ele me acalmava. Foi uma lição que aprendi para o resto da vida."
Renato e Geraldo se aproximaram quando o primeiro gravou Rancheirinha, composição do segundo. "Anos depois, ele compôs Interiores, dedicada a mim. Aí, ele me ligava para saber quais notas eram possíveis tocar na gaita ponto, pois ele imaginava fazer algo que fosse possível nós dois tocarmos juntos."
Borghettinho ressalta que o amigo era elegante até na hora de fazer uma reclamação. "Havia uma grande empresa produtora de shows que sempre nos procurava para tocar em eventos importantes, com megaestruturas, mas que na hora de pagar vinha sempre com a mesma conversa de que a verba havia acabado, que o dinheiro era pouco. E nós sabíamos que não era verdade", explica. "Aí um dia, o Geraldão me ligou. Sugeriu que fosse lá na casa dele, que eu fosse o cozinheiro de um jantar que ele pensava armar. Topei e ele então convidou os donos da empresa. Foi uma noite agradável em que ele deixou claro que eles poderiam continuar nos convidando, mas que não viessem mais com aquela conversa de pouco dinheiro. Não queríamos nem mais nem menos. Apenas o justo."
Com Ângela, com quem viveu 28 anos, o afeto era mais explícito e ainda mais intenso. Ela é detalhista ao lembrar todas as etapas do convívio. Como começou? "No Doce Vida, um restaurante que existia na República. Fui cumprimentar o Jesus Iglesias e ele estava junto. Deu um certo 'plimplim'. Depois nos encontramos na casa de uma amiga e ele tocou lindamente para mim. No dia seguinte, fomos a um churrasco no sítio de um amigo do Jesus. Ficamos conversando a tarde toda. Ele já estava separado há uns dois meses. Conversamos muuuiito". "Dois dias depois, eu estava no Vinha D'Alho com amigos e ele chegou. Me levou para casa e aí rolou o primeiro beijo. Isso foi em 29 de setembro de 1981". A partir de então foram dois anos de namoro, até que em 1983 resolveram morar juntos. "Até então, eu morava com a minha mãe e dormia praticamente todas as noites no apartamento dele, até que, em 1983, nós resolvemos viver juntos."
Se o casamento de Geraldo e Ângela durou bastante, a separação também foi bem-sucedida: "Foi ele quem quis. Quase morri!". Os dois se separaram, mas nunca se afastaram, seguiram trabalhando juntos e se falavam diversas vezes ao longo do dia. "Nossas conversas eram sempre olhando para frente: projetos e mais projetos. A morte nunca fez parte dos nossos planos."
Despedida e herança musical
Compositor em retrato antigo de família, com Ângela Flach, ex-companheira (de óculos), filhas e netos
ACERVO ANGELA FLACH/DIVULGAÇÃO/JC
Até os últimos dias de vida, Geraldo seguia ativo e cheio de planos. A doença o havia enfraquecido, mas a cabeça seguia intensa. No último ano, ele participou do I Festival de Jazz de Pelotas. No mesmo período, lançou o CD Vivências, em parceria com o cantor Victor Hugo, uma obra concluída talvez no seu formato preferido: voz e piano. Juntos, cantor e pianista interpretaram composições de Mario Barbará e Sergio Napp.
O ano de 2010 ainda reservaria outra surpresa: Geraldo Flach seria o convidado especial de um show de Ivan Lins em Porto Alegre. "Foi a última vez que vi ele no palco", lembra o crítico musical Juarez Fonseca.
Os dois amigos só iriam se reencontrar nos dias finais, quando a situação já parecia irreversível: "Fui visitá-lo no hospital. Ele estava fraco. Eu me aproximei da cama, ele pegou na minha mão e me disse: 'Tá difícil, Juquinha, tá difícil...'".
Borghetti também se emociona ao lembrar do parceiro. "Naqueles primeiros dias de janeiro de 2011, eu estava em viagem pelo Interior. Numa parada, em Itaqui, eu e a Ingrid, minha mulher, entramos num local para comer peixe frito. Era um mesmo lugar onde anos antes eu havia almoçado com o Geraldão", recorda Borghetti. "Como bateu a saudade, resolvemos ligar para ele. A ligação não se completou e seguimos viagem. Quando chegamos em Uruguaiana, estávamos largando a mala no hotel quando recebemos a notícia da morte. Nem ficamos. Voltamos diretamente a Porto Alegre."
"Meu pai não conheceu meu filho homem - também músico - adulto. A despedida pegou o Lorenzo quase menino, uma grande lástima. Imagino todos os dias o quanto conversariam, as trocas, as risadas, os churrascos, futebol Quantos conselhos preciosos que o avô daria ao neto sobre a caminhada profissional - e sobre tantos, tantos outros assuntos", lamenta a Cynthia. Se serve de consolo, Renato Borghetti tem a receita: "Geraldão ia curtir o Lorenzo dividindo o palco com o Pedro, meu filho. A dupla Borghetti e Flach se mantém".
Discografia Geraldo Flach:
Show em parceria com a cantora Virgínia Rosa rendeu um dos últimos CDs, Voz e Piano
CRISTINE ROCHOL/DIVULGAÇÃO/STUDIOCLIO
Alma (1981)
Momento Mágico (1985)
Piano (1990)
Geraldo Flach e Luiz Carlos Borges (1992)
Tom Brasileiro (1993)
Interiores – Geraldo Flach Quarteto & Orquestra de Câmara Theatro São Pedro (1995)
Atitude (1998)
Piano Azul (2001)
Meu Piano (2005)
Voz & Piano – Geraldo Flach e Virgínia Rosa (2010)
Como é bom tocar junto – Ivan Lins e Geraldo Flach (2016)
Especiais:
Mãe – Lucinha Lins e Geraldo Flach para o Zaffari (2003)
Vivências – Geraldo Flach e Victor Hugo – Composições de Sergio Napp e Mário Barbará (2010)
* Márcio Pinheiro é porto-alegrense e jornalista. Trabalhou em diversos veículos da Capital, de São Paulo e do Rio de Janeiro.