Não vou lembrar exatamente a primeira vez em que estive no Clube de Cultura de Porto Alegre, mas foi certamente nos anos 1970, para assistir a alguma peça de teatro. Esta era, na ocasião, a principal atividade cultural da instituição, fundada num dia 30 de maio, em 1950, data que faz com que exatamente hoje esteja comemorando 75 anos de existência.
O Clube de Cultura nasceu a partir da iniciativa de 14 integrantes da comunidade judaica de Porto Alegre, judeus progressistas. O escritor
Moacyr Scliar personificou o principal deles, Henrique Scliar, seu tio, no personagem Capitão Birobidjan, do romance
O Exército de um homem só. No romance, o capitão imagina uma casa de cultura. Na verdade, com o apoio de outros amigos, Henrique Scliar idealizou e fundou o Clube de Cultura, no mesmo endereço em que se encontra sediado hoje, na rua Ramiro Barcelos, 1.853. Estes 'judeus progressistas', na verdade, eram simpatizantes do Partido Comunista e a política do PC, na época, era apoiar instituições culturais capazes de discutir perspectivas 'progressistas' para a sociedade. Assim nasceu o Clube, que recebeu em seus primeiros anos palestrantes ilustres, como Jorge Amado, Graciliano Ramos, Aparício Torelli, além de gente mais da casa, como
Carlos Scliar, Danúbio Gonçalves e Vasco Prado.
Pode-se dizer que todas as artes fizeram parte do largo cardápio cultural do Clube de Cultura. Nos anos 1960, por exemplo, a jovem
Elis Regina ali se apresentou, e o CPC da UNE trouxe a montagem
O auto dos 99%, uma colagem de textos discutindo a marginalização social que caracterizava o Brasil de então. Dos grupos locais, lembro de ter assistido trabalhos de Ronald Radde e seu Teatro Novo, quando ele perdeu o espaço num salão paroquial do bairro Petrópolis. Também
Luciano Alabarse encontrou ali apoio para algumas de suas primeiras encenações. Mas o Clube de Cultura se tornou nacionalmente conhecido quando, em 1966, Antonio Carlos Sena estreou o primeiro espetáculo com três textos dramáticos de Qorpo Santo, desde então reconhecido o precursor do surrealismo entre nós. Ali foram conhecidos
As relações naturais,
Eu sou vida, eu não sou morte e
Mateus e Mateusa.
Na área do cinema, Jacob Koutzii e Paulo Fontoura Gastal fundaram o Clube de Cinema de Porto Alegre naquele mesmo espaço. Poucos anos depois,
Carlos Gerbase e
Jorge Furtado criariam oficinas de cinema, influenciando novas gerações.
Em 1962, a instituição exclusiva da comunidade judaica abriu-se ao público em geral. Tornou-se, definitivamente, um espaço progressista, um centro de revelação de músicos que marcariam a música popular sul-rio-grandense, como
Raul Ellwanger, Edgar Pozzer, Cesar e Paulo Dorfman,
Claudio Levitan,
Nelson Coelho de Castro,
Bebeto Alves,
Gelson Oliveira,
Caio Fernando Abreu,
Carlinhos Hartlieb, incluindo a estreia de
Nei Lisboa.
O Clube foi o centro da criação de entidades culturais que, lutando contra a ditadura, garantiam um espaço mais democrático para as suas criações. Por isso, quando Pedro Simon foi eleito (1986) governador do Estado e Carlos Jorge Appel se tornou seu secretário de Cultura, o Clube de Cultura se transformou quase em espaço oficial de resistência.
Mas veio a abertura, novos espaços foram abertos, os antigos idealizadores do Clube de Cultura morreram e nem todos os seus descendentes conseguiram manter a chama acesa, à exceção de Hans Bauman, e mais tarde sua filha, que tentaram resistir bravamente. Sua luta foi produtiva, porque o Clube de Cultura continua, inclusive com espetáculos ocorrendo atualmente; durante a covid e mais recentemente, com as enchentes, o Clube de Cultura foi espaço de acolhimento a artistas que perderam instrumentos e estúdios. Mas o prédio está deteriorado. Há mais de dez anos projetos foram desenvolvidos no sentido de sua recuperação. Cheguei a acompanhar uma visita oficial, logo após a terceira eleição do Presidente Lula, de representantes do Ministério de Cultura, mas até agora, nada aconteceu.
Na prática, não adianta se falar em Lei Rouanet. As autoridades federais, assim como estaduais, precisam buscar recursos para a recuperação do prédio, criação de uma nova administração e, consequentemente, de uma programação que devolva a vitalidade à instituição. Há caminhos variados, da federalização, ou estadualização, à assinatura de convênios. O que não se pode esquecer, neste dia de festa – mas de responsabilidade – é que boa parte da intelectualidade de Porto Alegre, principalmente, em algum momento passou pelos espaços do Clube de Cultura, quer enquanto artista, quer enquanto plateia.
A revitalização do auditório Henrique Scliar, uma reorganização espacial total, um planejamento para atividades, por exemplo, dirigidas às crianças – um dos projetos que a instituição acalenta há muitos anos – tipo escolinha de arte, com atividades que sejam formativas e sensibilizadoras mas que, ao mesmo tempo, garantam a sobrevivência econômico-financeira da instituição, tudo isso é fundamental. O Clube de Cultura de Porto Alegre precisa ir bem além da memória quase saudosista que o marca, sair do papel dos projetos e reencontrar sua vitalidade.