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Plano Diretor de Porto Alegre

- Publicada em 25 de Julho de 2023 às 22:15

Papel do município é mediar discussão sobre o Plano Diretor, defende CAU-RS

Tiago Holzmann da Silva é presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Rio Grande do Sul

Tiago Holzmann da Silva é presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Rio Grande do Sul


/EVANDRO OLIVEIRA/JC
O papel do poder público é ser mediador de interesses da sociedade, mas não é isso o que está acontecendo em Porto Alegre, em especial na revisão do Plano Diretor, aponta o presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo no Rio Grande do Sul (CAU-RS), Tiago Holzmann da Silva. Para ele, o posicionamento da prefeitura, "que claramente prioriza e privilegia as propostas e as pautas do mercado imobiliário em detrimento de outros" desequilibra a possibilidade de discussão e prejudica a busca pelo consenso.
O papel do poder público é ser mediador de interesses da sociedade, mas não é isso o que está acontecendo em Porto Alegre, em especial na revisão do Plano Diretor, aponta o presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo no Rio Grande do Sul (CAU-RS), Tiago Holzmann da Silva. Para ele, o posicionamento da prefeitura, "que claramente prioriza e privilegia as propostas e as pautas do mercado imobiliário em detrimento de outros" desequilibra a possibilidade de discussão e prejudica a busca pelo consenso.
Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, Silva expressa preocupação com a falta de um projeto de cidade, que deveria ser pauta da revisão do Plano Diretor. Ainda assim, sustenta a participação da entidade na tentativa de "qualificar o que for possível desse processo".
Jornal do Comércio – Como o Conselho de Arquitetura e Urbanismo tem participado do processo de revisão do Plano Diretor de Porto Alegre?
Tiago Holzmann da Silva – O Conselho de Arquitetura e Urbanismo tem, desde a sua criação, uma vaga no Conselho do Plano Diretor. Nós temos um entendimento que a nossa vaga deveria estar na cota dos órgãos públicos e não da sociedade civil, porque somos uma autarquia pública, não representamos ideias parciais de cidade ou de visões de mundo, e sim representamos toda uma categoria. Temos acompanhado e sempre que possível colaborando e contribuindo com as discussões.
JC – A entidade tem algum diálogo mais direto com a prefeitura ou é dentro das atividades habituais do processo?
Silva – Nós participamos de duas ou três reuniões mais específicas, uma com as entidades da arquitetura. E temos participado pontualmente dos grupos de trabalho. Não tivemos condições de aprofundar muito nossa colaboração.
JC – Como é o diálogo com o poder público de Porto Alegre em relação à revisão do Plano Diretor?
Silva – Tem um comportamento comum das administrações das grandes cidades brasileiras, que é não entender o seu papel de mediador desses interesses e se colocar como parte. E é isso que está acontecendo em Porto Alegre. Claramente temos uma gestão que está alinhada com os interesses do mercado imobiliário, entre outros. Isso é claro, é inquestionável. No momento em que o município se coloca como sendo parceiro desequilibra toda a possibilidade que tem de discussão desse conjunto de interesses. O Plano Diretor é um pacto, cada um vai ceder um pouco para que a gente tenha todo mundo “80% contente” – se alguém sair 100% satisfeito é porque deu errado, e se alguém ficar zero satisfeito, aquele grupo ficou fora, ficou isolado. Ele é um consenso, e no consenso todo mundo tem que abrir mão de alguma coisa. O município tem obrigação de exercer um poder moderador, porque ele foi eleito para governar em nome de todos, não apenas dos que os elegeram. Então, um governo que é de esquerda, de centro, de direita, está ali para governar em nome de todos. Claro que ele tem uma linha de condução ideológica e programática, mas ele não pode ser parcial. Exatamente por quê? Porque é o município que vai construir esse ambiente de discussão. E o que percebemos é uma gestão que está muito alinhada com o mercado imobiliário e que claramente prioriza e privilegia as propostas e as pautas do mercado imobiliário em detrimento de outros. Isso não é opinião, é fato. Só que, claro, manifestar isso parece dizer que “o rei está nu”, mas todo mundo sabe que ele está nu (e, na fábula, ninguém tem coragem de dizer).

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JC – Quais pautas são preteridas?
Silva – Pautas como habitação social, infraestrutura, mobilidade e outras ficam secundarizadas em função da questão do regime volumétrico (das edificações), da possibilidade de construir. O cenário é esse. E nesse cenário o que eu vejo como muito grave, inclusive ilegal: o fatiamento do Plano Diretor, que já vem sendo feito. “Nos interessa o 4º Distrito, nos interessa o Centro Histórico, nos interessa o trecho final da Avenida Ipiranga, nos interessa o entorno do Jockey… Então, para essas áreas, vamos fazer um Plano Diretor especial e as outras áreas se viram com o que têm aí”. Isso é muito claro também, ou seja, o interesse do município em legislar, não está dado por uma ideia mais universal de construir a cidade, e sim por uma ideia pontual: onde que há interesse, em geral interesse imobiliário, para desenvolver essa cidade. São algumas regiões bem específicas onde tem o esforço do município para melhorar as regras para atender a esses interesses. Isso é o que a gente percebe e me parece que isso é um fato também, não é nenhuma opinião assim muito radical.
JC – Esse fatiamento prejudica o planejamento? O CAU entende que isso atrasa o desenvolvimento conjunto da cidade?
Silva – Tem uma questão até de base que é a legalidade. O que diz o Estatuto da Cidade, e foi um ganho: que o planejamento do município é para todo o seu território. O Plano Diretor é para todo o território. Antes, até os anos 1980, 1990, ele poderia ser feito só para zonas urbanas, então tem muitas cidades que tinham Plano Diretor para zonas urbanas, mas a rural não estava integrada. E temos agora um Plano Diretor para todo o município, então não se pode fazer por pedacinhos. Ou seja, pela própria definição do Estatuto da Cidade, deve ser para todo o território. Isso é bastante delicado e tem uma carga de ilegalidade nesse fracionamento. E outro tema ainda mais grave é a alteração do Plano Diretor ou de aspectos relevantes dele por decreto. Isso é gravíssimo, não está previsto em nenhum lugar e é absolutamente ilegal. Ou seja, não pode ser por decreto. Uma pergunta que é muito simples de fazer é que agora temos esse prefeito que faz por decreto, depois vamos ter outro que vai ter uma ideia completamente antagônica. Como é que vai ficar a cidade? A cada quatro anos vamos ter um pacote de decretos para alterar o planejamento da cidade segundo a visão do prefeito? Isso não é aceitável.
JC – Um argumento muito comum é alegar que a população elegeu esse projeto de governo, então ela vai aceitar o que se colocar. Vocês entendem que não faz sentido?
Silva – É um argumento meio canalha, porque não existe essa carta branca, existe uma lei que regula, então a gestão, o prefeito, tem que atender a lei. “Ah, a população elegeu, tem carta branca para não atender a lei…” Onde é que está escrito isso? Não faz o menor sentido. Pode ser que a população seja favorável a fazer isso, mas está fora da lei. Então a população tem que ser informada: “nós não podemos fazer porque está fora da lei, embora vocês queiram, nós temos que fazer do jeito que a lei prevê”.
JC – Ou que se altere a lei.
Silva – É, que se altere a lei. E é uma lei federal (o Estatuto da Cidade), ou seja, não está no âmbito do município. E legislar via decreto é muito perigoso, porque é isso, mudou o prefeito e vai ter todos os decretos revogados, vai ter um novo pacote e a cidade fica assim, sem saber para onde vai. Por outro lado, noto um esforço do município em fazer os eventos, em cumprir, tem procurado as entidades, mas me parece que isso a partir já de uma visão pré-definida do que quer para a cidade, então não me parece, pelo menos em alguns eventos que participei, que o município esteja efetivamente aberto essa contribuição. Ele vai ouvir, vai registrar e vai fazer o que acha certo do ponto de vista da atual gestão. Eu estou um pouco assim cético com relação a esse processo. E vejo também uma certa inatividade do Ministério Público buscando fazer essa defesa da sociedade. Me parece que o Ministério Público tirou o time de campo.
JC – Há entendimento, por parte do CAU, do direcionamento que está sendo dado ao processo de revisão do Plano Diretor. Qual a motivação para seguir participando?
Silva – Temos um entendimento que não devemos nos retirar do processo por ter críticas a ele, porque seria uma postura muito confortável. Temos atuado, nos espaços, nas possibilidades que temos. Claro que pode ser que em algum momento isso se transforme em algo inviável e infrutífero totalmente e podemos pensar em outra alternativa, mas até o momento temos atuado para tentar qualificar o que for possível desse processo.
JC – O CAU entende que alguma pauta em específico deva ser contemplada? Você citou os exemplos da habitação de interesse social, da mobilidade…
Silva – Tem um tema que é o projeto de cidade, ou seja, que cidade estamos propondo. O que eu percebo que vem sendo proposto são cidades de excelência e o resto meio que se vire. Então tem uma atenção no 4º Distrito por alguns motivos, uma atenção no Centro por outros… E as outras partes da cidade? A cidade vai se desenvolver? Quais são as vocações? O que a gente indica para esse desenvolvimento futuro? Isso não está claro e não se tem muito interesse.
JC – O CAU tem receio de retrocesso de algo que esteja consolidado? Ou entende que precisa vir o projeto para analisar?
Silva – Vejo que o interesse da alteração é um interesse bem pontual na questão de regime e urbanístico para atender o mercado imobiliário. E esse interesse vai ser atendido, de maneira mais ou menos satisfatória para esses grupos, mas esse interesse vai ser atendido. E o interesse do restante da cidade não será. Ou será pontualmente. Então não vejo o empenho do município em trabalhar, por exemplo, uma política de habitação social. E o prefeito fala no SUS da mobilidade, ele quer dinheiro federal para pagar as empresas de ônibus, não fecha essa conta, ou seja, quer privatizar ainda mais o sistema, agora com recurso federal, não apenas com recurso do município. Então eu vejo que quem sabe será pontualmente atendida uma demanda ou outra, mas o grosso da alteração do Plano Diretor vai ser na melhoria para o mercado imobiliário dessas condições de construção que é o que a gente já percebe. Isso já está instalado na cidade, a facilitação que houve no licenciamento claramente é para beneficiar esses grandes empreendimentos que não entram mais na fila de licenciamento etc. Sabemos que tem um histórico desse tema. Isso vai em detrimento da infraestrutura urbana, do patrimônio que muitas vezes é destruído, das questões de trânsito, transporte, que acabam colapsando onde já estão colapsadas, porque esse é um lugar interessante do mercado construir… Eu pergunto, e a Lomba do Pinheiro, e a Restinga, e a Bom Jesus… qual é a política para essas áreas?
JC – Sobre o processo Legislativo, há já um diálogo com a Câmara Municipal para trabalhar conceitos e a ideia do que vai ser votado no Plano Diretor?
Silva – Não. Percebo que a Câmara tem funcionado como uma aprovação meio automática do que vem do Executivo. Existe uma composição de governo que atendeu a esses interesses e tudo que o Executivo apresenta ele aprova, então acredito que será aprovada (a revisão do Plano Diretor). Ou seja, não haverá um ambiente de discussão de conceitos ou de aperfeiçoamento importante na Câmara.
JC – A expectativa é de que chegue na Câmara somente em dezembro ou talvez no início do ano eleitoral…
Silva – Exatamente. E aí a gente sabe as influências e a pressão que vão sofrer os vereadores de quem tem interesse nessas alterações. Isso também não é nenhum segredo.
JC – Há um receio do que pode vir?
Silva – Claro, fazer aprovação no ano eleitoral, obviamente que os vereadores vão negociar eleitoralmente a sua posição. E negociar com quem tem capacidade de negociar, provavelmente não é com quem defende o patrimônio, não é com quem defende os parques, não é com quem defende a habitação social. Então isso é muito claro. E também é uma verdade que, quando dita, parece um “ai meu Deus, que horror”, mas todo mundo sabe como funciona a eleição no Brasil, que os políticos dependem daquele financiamento, que agora felizmente, explicitamente não é mais privado, mas é através dos representantes dos privados que ele se dá. Saiu reportagens, exatamente o caso do Plano Diretor de São Paulo, da Câmara de Vereadores que é bancada nas eleições pelo mercado imobiliário, os quais os interesses eles vão defender depois. É esse mesmo interesse com o Executivo.
JC – Aqui o Observatório das Metrópoles fez um levantamento com os candidatos ao Executivo em 2020…
Silva – E isso é um crime? Não, legalmente não tem nada de criminoso, só que isso tem que ficar explícito para que a gente saiba que muitas vezes aquela posição, ela é uma posição de conveniência em função desse tipo de procedimento de campanha. É uma troca. Então não podemos esperar de vereadores que tiveram esse financiamento que eles vão ter uma postura diferente do que a do seu financiador. Isso é comum no mundo inteiro, mas em geral é mais explícito, as pessoas se colocam como defensores dessas ideias também. E aqui fica muito dissimulado. Os vereadores defendem melhorias para a cidade, desde que contemple o financiador dele. E essa é a parte que ele não diz.
JC – Tem algo que eu não tenha perguntado que você queira destacar pensando no caso de Porto Alegre?
Silva – O que me parece mais importante é essa postura do Executivo Municipal, das prefeituras de não se colocarem como mediadores e sim como parte. Isso me parece que é o mais grave. Porque desequilibra, aí tem uma estrutura executiva a serviço de determinados interesses, que é o mercado imobiliário, as empresas de ônibus, os loteadores... O poder que deveria mediar esses conflitos, mesmo tendo opinião, ele não media. Ele é parcial. E aí desequilibra, não tem como.

Entrevistas publicadas

Essa entrevista integra uma série realizada com as entidades que compõem o Conselho do Plano Diretor de Porto Alegre, com a proposta de conhecer os interesses envolvidos no debate.