Corrigir texto

Se você encontrou algum erro nesta notícia, por favor preencha o formulário abaixo e clique em enviar. Este formulário destina-se somente à comunicação de erros.

Plano Diretor de Porto Alegre

- Publicada em 11 de Julho de 2023 às 19:34

ONG critica debate direcionado ao mercado na revisão do Plano Diretor de Porto Alegre

Claudete Aires Simas e Jacques Távora Alfonsin, da Acesso – Cidadania e Direitos Humanos

Claudete Aires Simas e Jacques Távora Alfonsin, da Acesso – Cidadania e Direitos Humanos


ANA TERRA FIRMINO/JC
A ONG Acesso - Cidadania e Direitos Humanos participa do Conselho do Plano Diretor de Porto Alegre e das atividades de revisão para trazer para o debate temas que não estão na pauta. Faz isso mesmo sem expectativa de que demandas com as quais trabalha, como a habitação social, sejam atendidas.
A ONG Acesso - Cidadania e Direitos Humanos participa do Conselho do Plano Diretor de Porto Alegre e das atividades de revisão para trazer para o debate temas que não estão na pauta. Faz isso mesmo sem expectativa de que demandas com as quais trabalha, como a habitação social, sejam atendidas.
Apesar de acreditar que a revisão da lei terá retrocessos, a organização seguirá acompanhando o processo em nome da população que, de outra maneira, não estará representada no debate, defendem Claudete Aires Simas e Jacques Távora Alfonsin, integrantes da ONG.
Claudete e Jacques apontam a expectativa do que deveria ser abordado no planejamento urbano de Porto Alegre, como o reconhecimento das situações de habitação já existentes, e criticam a condução do trabalho, pelo poder público, para eles, direcionada ao mercado. Essa entrevista integra uma série realizada com as entidades que compõem o Conselho do Plano Diretor. Confira no abaixo material já publicado.
Jornal do Comércio – Como a Acesso tem acompanhado a revisão do Plano Diretor de Porto Alegre?
Claudete Aires Simas – Temos acompanhado as atividades na medida do possível, é difícil fazer o acompanhamento pelo horário que elas acontecem e por serem concentradas também num pequeno espaço de tempo, então são atividades muito concentradas que muitas vezes dificultam esse acompanhamento.
JC – A prefeitura tem feito conversas com algumas entidades. A Acesso foi procurada pela prefeitura para prestar alguma assessoria ou para apresentar o seu posicionamento sobre algum tema específico sobre a revisão como um todo?
Jacques Távora Alfonsin – Houve um convite muito formal (no início do processo), que nos encheu de uma certa esperança. Mas a Claudete tem mais a dizer sobre isso, porque eu sou meio suspeito, tal a decepção que estou tendo com o andamento. Porque, veja, se voltarmos um pouquinho, o Le Corbusier (arquiteto e urbanista franco-suíço com atuação na primeira metade do século XX) indicava quatro funções para o solo: habitar, trabalhar, circular e descansar. Dessas quatro funções que ele enxergava do solo urbano, o que o Plano Diretor pensou em matéria de integração disso? O Plano Diretor tá sendo todo ele… quem se reúne pra valer são os corretores de imóveis e as incorporadoras. A cidade não obedece sequer aquilo que a Constituição Federal conquistou por anos de trabalho do direito urbanístico, que é o chamado direito à cidade. O Plano Diretor só se preocupou até agora em atender o capital, por tudo que a gente fica sabendo. Habitar, por exemplo, qual é a mínima preocupação que se tem com as favelas? Em 2010, tínhamos 13% da população de Porto Alegre morando em subabitação. Será que nós sabemos se esse percentual aumentou ou diminuiu hoje?
Claudete – O Jacques está trazendo uma coisa bem importante, a primeira questão é a ausência de informações. Estamos terminando uma etapa, que é a leitura da cidade, e não estamos efetivamente tendo acesso a essa informação. Embora tenha vindo um diagnóstico da Consultoria, ele não está sendo discutido e detalhado. Ele está lá, colocado num drive e temos o acesso pelo drive. Outra coisa muito importante é quem está sendo atendido no Plano Diretor, que é o direcionamento, na verdade, para apenas um segmento do mercado. E temos que lembrar que a participação tem que ser qualificada, é uma participação da sociedade, uma participação popular, e esse popular a gente não vê na nossa revisão do Plano. Não conseguimos ainda atingir a população nessa discussão. Está difícil.
Jacques – A gente nota que não há interesse, há só boca no projetor, ouvido não. Eles não têm interesse em ouvir, em verificar. Um levantamento que fosse feito em Porto Alegre, por exemplo, das favelas, das associações de moradores, isso seria fundamental se saber. Tem que se dizer também das nossas instituições, porque afinal de conta tem uma secretaria para isso, o secretário de Planejamento é o homem que preside lá o CMDUA, onde a Claudete sofre lá nas sessões. A cumplicidade existente entre os representantes do capital no Conselho e a instituição é total, eles ganham todas as eleições. E ninguém fala no Estatuto da Cidade, uma das maiores conquistas que o movimento popular obteve.
Claudete – Essa é uma denuncia grave, a gente faz uma revisão do plano diretor sem olhar para o Estatuto da Cidade, sem olhar para a função social da cidade. Tu perguntavas antes dessa relação com a prefeitura. A gente fez uma reunião inicial de apresentação, não uma reunião de debate. Não há um estímulo, embora tenha se dito que estão abertos a contribuições e a participar, temos que entender o que é contribuir e o que é participar. Participar não é abrir a porta e deixar que se fale e que todas as coisas que a gente traga ou sejam anonimizadas, ou sejam desconsideradas, isso não é participar.

Leia também: Coluna publicará entrevistas com entidades sobre o Plano Diretor de Porto Alegre

JC – O senhor citou a secretaria de planejamento, que não existe mais. Acredita que há um prejuízo para a cidade em não se preocupar especificamente com o seu planejamento?
Jacques – De vez em quando o noticiário nos permite verificar as áreas de risco (e alertar que) temos que tomar providência, sempre só depois do fato consumado, só depois do desastre. Não há uma política de prevenção. Então, quando alguém morre num desastre climático, ou num conflito entre traficantes, ou coisa que o valha, é um escândalo total. Mas aí é que está a ausência da instituição. E temos que falar isso também, porque o capítulo da Constituição Federal sobre o Ministério Público é de uma tal capacidade de transferência de poder para a mão de quem representa isso, que ficamos pasmos de assistirem tudo o que está acontecendo sem a mínima reação! Não tem uma ação civil pública, raramente um problema que outro… São coisas que demonstram o completo alheamento, a completa indiferença.
JC – Hoje as áreas periféricas, os morros, a região das ilhas, muitas não são atendidas pelo planejamento urbano regular, assim como não são reconhecidas, pelo poder público, as situações pré-existentes. Como o Plano Diretor e o planejamento urbano poderiam atender isso?
Claudete – O nosso Plano é muito bom, ele tem as estratégias que foram à frente do seu tempo e continuam atuais. Temos que pensar: por que elas não são aplicadas? Tem alguma coisa entre o sistema jurídico administrativo e o sistema político que faz com que essa parcela da sociedade esteja sendo invisibilizada. Hoje em dia não tem que se pensar no Plano Diretor em termos de incentivar a política habitacional, temos que direcionar, porque incentivar já não é mais cabível. Se queremos planejar e alterar, temos que direcionar as políticas para aquelas maiores necessidades da cidade que nós temos hoje: habitação e transporte. Mas o que vemos, na verdade, é um direcionamento de incentivos fiscais para algum outro setor. Teve audiências públicas, no tempo da pandemia, em dois programas, o do Centro Histórico e o do 4º Distrito, que existiam ações mínimas, e que foram muito ressaltadas pela população a questão da habitação de interesse social. E isso foi retirado, ou seja, embora tenha uma realidade no 4º Distrito com mais de 19 comunidades em situação irregular, calamitosa, muitos aguardando por 30, 40 anos por uma atuação do poder público, quando foi feito algum programa não se pensou na realidade que existe no local.
JC – Vocês têm alguma expectativa em relação a essa revisão, algo que deveria ser atendido? E acreditam que será?
Jacques – O Plano Diretor é uma lei que disciplina outras leis. Aí é que está o grande problema. É de tal forma a habilidade do capital em presidir o Plano Diretor porque eles estão pensando em que projetos vão levar para a Câmara depois. E essa capacidade nós temos de reconhecer, aí que está o chamado responsabilizar-se pela realidade: a nossa visão é muito míope, mas a deles não. Eles estão com tudo preparado para depois do Plano Diretor aí sim, aí vai haver até remoção de favela, eu acho. Essa coisa de criação de zonas especiais de interesse social, isso nem passa pela cogitação dessa gente.
Claudete – A expectativa, na verdade, seria se efetivamente o Plano olhasse para a cidade, para a realidade, direcionando para as soluções, porque isso é planejar, é direcionar para aqueles problemas que nós temos. Mas não é o que a gente vê. Parece que existe uma limitação, na própria discussão, de constar termos como por exemplo regrar, limitar, padronizar. São termos que, embora se coloque (na lei), é necessário que tenha um regramento maior. É preciso ter limitações de segurança, ventilação, iluminação, é preciso esse regramento. Mas, quando se fala essa palavra, parece que há um receio e não é registrada. E todo o direcionamento da discussão visa já um fim, um objetivo. Ultimamente temos ouvido muito mais sobre os “planos de pormenor” de Portugal do que sobre a nossa realidade aqui da cidade. Então é difícil termos alguma expectativa dentro desse contexto.
JC – Vocês têm receio de retrocessos nessa revisão do Plano Diretor? Quais?
Jacques – A minha expectativa é muito pessimista, eu até fico com medo de falar isso. Mas, por tudo que a Claudete tem contato aqui, o que ela tem sofrido lá dentro do Conselho do Plano Diretor, vai haver sim um retrocesso violento, de bastante prejuízo para o povo pobre. Agora, o capital vai dar de goleada. Por isso que eu invisto tanto nisso, o povo que crie, então, o seu próprio espaço de criação de liberdade. Se compararmos o poder de sanção que a lei tem, por exemplo, com a proteção da propriedade privada, ele já é um poder que se consuma por própria iniciativa. O cara que tem dinheiro não precisa perguntar se ele vai comprar cinco mil hectares no meio rural ou 500 hectares no meio urbano, ele compra, esse é o fato consumado. É um poder de exclusão que ele individualmente tem. Qual é o poder que o povo tem? É o de inclusão, e ele constrói esse poder de inclusão através dessa mobilização. Se nós vamos ter algum resultado vai ser graças a isso, a essa mobilização, não vai ser graças a modificação da lei.
Claudete – O Jacques traz a preocupação com esse viés de liberdade. Que liberdade que o povo tem?
Jacques – A do mercado é uma liberdade sem responsabilidade.
Claudete – E essa questão de “ah o mercado resolve”. Mas o mercado vai atender a população de rua? Porto Alegre aumentou a população de rua e Porto Alegre aumentou o número de imóveis vazios. Será que eu preciso fazer novos “mini planos diretores” para resolver e atender aquilo que já está previsto no Estatuto da Cidade? Que é o que não acontece. Não se pode colocar no Plano apenas o mínimo, porque o mercado vai fazer o mínimo, ele não vai atender a necessidade. Temos que ter muito cuidado quando fala dessa questão de flexibilização, de liberdade, de regramento do mercado. O mercado não tem espaço para todo mundo e a cidade ela é plural. Ela tem que ser feita com esse olhar diverso para todo mundo.
JC – Esse é o principal receio que vocês têm em relação ao Plano Diretor, do que pode vir acontecer com essa mudança em andamento?
Claudete – Com esse viés de liberalismo, (o receito) é de um aumento da expansão urbana para a irregularidade e para a informalidade. Se consegue olhar para o povo apenas quando ele está no morro, mas não se consegue olhar como é que ele foi chegar lá? Não podemos demonizar o mercado, temos que entender, porque isso é reflexo do mercado. Se a população não encontrou o seu espaço, ela vai procurar e vai achar uma alternativa. E é isso que está acontecendo, cada vez mais estamos expandindo. Eram 13% de áreas irregulares no último plano e agora se fala 700, 800 (ocupações irregulares) e não existe nenhum diagnóstico disso. Como é que vai se fazer um planejamento se não tem um diagnóstico da situação fundiária do município? Isso é muito grave e é muito preocupante. Não há interesse. E ao mesmo tempo, quando vejo que a informalidade está aumentando, é um contrasenso, porque aí se vê o aumento que teve não só em Porto Alegre, mas em nível nacional, do número de imóveis vazios dentro da cidade.
Jacques – Vocês escrevam o que estou dizendo: vai haver um tempo em que nós vamos perder até o acesso ao rio (Guaíba). Todas essas obras da orla estão sendo feitas para privatizar aquilo lá. Então, o que é a participação do povo? O que é o direito à cidade? Se até o convívio com a natureza, o rio que a terra nos deu de graça… De quantas praias particulares já se fazem esse rio? De quantos acessos barrados? É uma coisa que dói no coração da gente, viu? A democracia deveria ser medida de acordo com a satisfação das necessidades vitais de todo mundo: alimentação, moradia, saúde, segurança, transporte… Tudo aquilo que está previsto no artigo do 6º (da Constituição Federal). Mas os meios para chegar aí estão todos na mão do capital, todos. Não é fácil, mas não podemos desistir.
Claudete – Por isso estamos lá, presente, marcando, no mandato ad eternum que não se renova…
JC – Vocês entendem o atraso no processo de revisão como prejudicial para a cidade?
Claudete – Realmente, no momento da pandemia, as pessoas não tinham condições de fazer qualquer tipo de deliberação, porque a preocupação era outra. E em vez da prefeitura cumprir o seu papel, que era aprofundar os estudos para que tivesse a documentação necessária para fazer os diagnósticos, o que vemos hoje é que esse trabalho não foi feito. Enquanto isso foi feito o quê? Programas paralelos. Tanto que tem uma consultoria que foi paga e que não tem a documentação necessária. E aí é uma outra preocupação que vem, porque eles apostam no monitoramento que por 20 anos não se conseguiu realizar, não se tem instrumentos de recursos humanos e nem materiais.
JC – A Acesso tem uma clara percepção de como o processo está sendo conduzido e que objetivos quer atingir. Ainda assim, vocês entendem que é importante ocupar esse espaço formal de discussão do Plano Diretor. Qual é a motivação?
Claudete – A gente já é uma voz isolada. E, se nós não estivermos lá, quem é que vai fazer a voz da população que a gente representa? Temos que fazer isso para trazer um outro olhar, trazer uma outra voz e fazer a discussão. E é muito interessante, porque aquilo que colocamos, mesmo que seja crítica, também está se fazendo uma contribuição. Então estamos lá para trazer o que não está sendo colocado na pauta.

Entrevistas publicadas

Essa entrevista integra uma série realizada com as entidades que compõem o Conselho do Plano Diretor de Porto Alegre, com a proposta de conhecer os interesses envolvidos no debate.