Juliano Tatsch
O Brasil vive um momento de polarização quando o tema é direitos humanos (DH): de um lado, aqueles que defendem ferrenhamente a garantia total dos direitos a todos, sem restrições; de outro, os que apontam que, junto com os direitos, caminham os deveres e quem não se comporta adequadamente não merece ficar sob o guarda-chuva dos DH.
Para tentar compreender esse quadro, o Jornal da Lei entrevistou 20 especialistas no assunto - de acadêmicos a ativistas, de profissionais do sistema de Justiça a gestores. O resultado de um trabalho de seis meses será publicado nesta e nas próximas três edições do caderno.
A primeira pergunta que a equipe do JL se fez quando do início da produção do conteúdo foi a seguinte: por que os direitos humanos são tão rejeitados no Brasil?
As respostas para essa questão são múltiplas e diversificadas. Passam por contextos sociais, culturais, políticos e econômicos. Interlaçam-se e imiscuem-se.
Antes de se apontar o dedo e se julgar quem critica os DH, é fundamental compreender essa crítica. Uma pesquisa realizada pelo Instituto Ipsos e divulgada em maio do ano passado indica que, para dois em cada três brasileiros (66%), os direitos humanos defendem mais os criminosos do que as vítimas.
A pesquisa, que entrevistou 1,2 mil pessoas em 72 municípios nas cinco regiões do País, revelou a complexidade do tema. Ao mesmo tempo em que, em sua maioria, os brasileiros têm uma percepção dos direitos humanos como uma ferramenta que está mais ao lado dos bandidos do que de quem sofre nas mãos dos criminosos, a maior parte da população (63%) é a favor dos direitos humanos. Entre os entrevistados com idades entre 25 e 34 anos, o índice chegou a 70%.
Dessa forma, as mesmas pessoas que são favoráveis aos direitos humanos acreditam que eles estão a serviço de quem está fora da lei. Difícil de entender, não é?
A compreensão desse cenário exige, assim, um olhar amplo, desprovido de preconceitos e paixões, aberto ao contraditório e ciente de que todos os atores sociais envolvidos têm um papel a cumprir. O primeiro passo em direção a isso é esmiuçar a questão a fim de conhecer e entender o que se está falando. Ou seja, a primeira pergunta que precisa ser respondida é a seguinte: o que são os direitos humanos?
A resposta a essa indagação pode ser dada por diversos vieses. Um sociólogo responderia uma coisa; um jurista, outra; um filósofo, outra; um ativista, outra mais. Todas essas respostas tendem a estar corretas e formam, unidas, um conceito amplo e complexo, que não se encerra em si mesmo e se espraia, abarcando inúmeros espaços de atuação e áreas de conhecimento.
Do ponto de vista prático do dia a dia de todos, os direitos humanos estão, por exemplo, na garantia do cuidado à saúde, na certeza de que as crianças terão acesso ao ensino, no respeito à dignidade dos idosos, na luta por igualdade para as mulheres, no combate ao racismo e à homofobia, na segurança ao sair de casa para trabalhar, no acesso irrestrito à Justiça, na água limpa na torneira, na comida no prato, na voz que se faz ouvir, na união pelo amor, na liberdade para sonhar.
Jurista, doutor em Direito pela Universidade de Paris e professor emérito da Universidade de São Paulo (USP), Fábio Konder Comparato classifica como a parte mais bela e importante de toda a história "a revelação de que todos os seres humanos, apesar das inúmeras diferenças biológicas e culturais que os distinguem entre si, merecem igual respeito, como únicos entes no mundo capazes de amar, descobrir a verdade e criar a beleza".
A abordagem dos direitos humanos pelo ponto de vista da sociologia analisa a questão de modo transversal, tratando das relações de poder entre os indivíduos, os grupos e o Estado, e das dinâmicas sociais existentes nas comunidades. Em relação à filosofia, existe quase um consenso de que residem nela as origens a respeito da percepção dos direitos fundamentais dos seres humanos.
Para o doutor em Filosofia pela Universidade de Pádova, na Itália, e atual professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Giuseppe Tosi, os direitos humanos são fruto de uma história e, mesmo que haja discordâncias acerca do ponto de início dessa história, é possível reconstruí-la tomando por base dois ângulos de análise. O primeiro é a partir da história social - que enfatiza acontecimentos, lutas, revoluções e movimentos sociais que promoveram a pauta. O segundo se dá por meio da história conceitual, que se debruça sobre as doutrinas filosóficas, éticas, políticas e religiosas que influenciaram e foram influenciadas pelos acontecimentos históricos.
"Deste complexo processo histórico, social e conceitual, nasceu uma série de textos, alguns de valor ético-político - como as 'declarações de direitos' -, outros de valor mais estritamente jurídico. A partir desse processo de positivação, os direitos humanos deixam de ser orientações éticas ou programas de ação e se convertem em obrigações jurídicas que vinculam as relações internas e externas dos Estados", aponta Tosi no livro Direitos humanos: história, teoria e prática (João Pessoa Editora UFPB, 2004).
Essas obrigações jurídicas estão presentes nas legislações locais, principalmente por meio das Constituições de cada país, e nos textos de âmbito internacional. O cientista político e jurista italiano Norberto Bobbio classifica os direitos humanos em civis, políticos e sociais, e destaca que, para serem, de fato, garantidos, eles "devem existir solidários".
Os direitos civis são os que dizem respeito à personalidade do indivíduo (liberdade pessoal, religiosa, econômica, de pensamento e de reunião). Os direitos políticos (liberdade de associação nos partidos, direitos eleitorais), por sua vez, estão ligados à formação do Estado democrático representativo. Por fim, os direitos sociais (ao trabalho, à assistência, ao estudo, à tutela da saúde, liberdade da miséria e do medo) implicam um comportamento ativo por parte do Estado.
A extensa gama de compreensões dos DH se dá, também, por um motivo destacado por Tosi. Segundo ele, os direitos do homem são mais do que direitos. São valores que orientam o próprio Direito, e que o Estado e a sociedade procuram realizar através das instituições.