Porto Alegre, qui, 04/12/25

Publicada em 06 de Maio de 2025 às 07:00

O condomínio de São Leopoldo que ficou ilhado na enchente

Edifício Charrua, no bairro São Miguel, foi impactado em 2024 pelo extravasamento do dique da cidade

Edifício Charrua, no bairro São Miguel, foi impactado em 2024 pelo extravasamento do dique da cidade

/Ângela Rodrigues/Arquivo pessoal/Cidades
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Larissa Britto
Larissa Britto Repórter
A autônoma Ângela Rodrigues, 45 anos, lembra exatamente o que estava fazendo no dia 2 de maio de 2024, um dia antes de ter sua vida modificada pela cheia histórica que atingiu São Leopoldo, no Vale do Sinos. Ela, que atuava como síndica do Condomínio Charrua, resolvia questões administrativas rotineiras ao lado do subsíndico Douglas Alves, 46 anos, que trabalha também como guarda municipal em Gravataí. No dia 3, ambos acordaram com o alerta do carro da Defesa Civil passando pela rua onde moram, no bairro São Miguel, na região oeste da cidade.
A autônoma Ângela Rodrigues, 45 anos, lembra exatamente o que estava fazendo no dia 2 de maio de 2024, um dia antes de ter sua vida modificada pela cheia histórica que atingiu São Leopoldo, no Vale do Sinos. Ela, que atuava como síndica do Condomínio Charrua, resolvia questões administrativas rotineiras ao lado do subsíndico Douglas Alves, 46 anos, que trabalha também como guarda municipal em Gravataí. No dia 3, ambos acordaram com o alerta do carro da Defesa Civil passando pela rua onde moram, no bairro São Miguel, na região oeste da cidade.
Através de um megafone, o aviso informava que as águas do Rio dos Sinos se aproximavam e os moradores deveriam sair de suas residências para buscarem abrigo. Isso porque o rio, que banha a cidade, estava acima da sua cota de inundação - que é de 6,7 metros - e havia invadido o território leopoldense. A força e intensidade da água, que também atingiria horas mais tarde seu condomínio, romperam o dique, no bairro Vicentina, que fica cerca de 2,4 quilômetros da região.
Ângela e Douglas contam que, à época, apesar de sua descrença, emitiram comunicados aos condôminos, solicitando a eles através de grupos online e também pessoalmente que saíssem imediatamente de suas residências. "São muitas pessoas idosas que ainda moram ali, e a nossa preocupação era justamente com eles. Eles (os idosos) são maioria no condomínio, e se acontecesse alguma coisa pior, que infelizmente aconteceu, não teriam a agilidade de acionar um parente para poder auxiliar eles", conta Ângela.
Dos 496 apartamentos do Condomínio Charrua, que dispõe de 31 torres, 174 foram atingidos. Todos os 124 que estão no térreo ficaram submersos, e outros 50 situados no segundo andar foram parcialmente atingidos. Um deles pertence à professora de inglês Mariani Machado, 57 anos, que mora no bairro há 28 anos. Ela, que leciona há mais de 30 anos para crianças e adolescentes, mora sozinha no condomínio, e desde 2020 concede sua residência para ministrar suas aulas particulares.
Desde quando se mudou, Mariani conta que nunca havia presenciado uma enchente dessa magnitude, e essa havia sido a primeira vez que a água invadiu sua casa completamente. "O condomínio existe há praticamente 40 anos. Tem gente que mora aqui desde o início. Nunca aconteceu (um alagamento)", conta. O que Mariani e seus vizinhos não imaginavam era que ficariam por, pelo menos, 27 dias fora de suas casas, expulsos pelas águas fétidas, lamacentas e devastadoras das cheias.

Morador sobreviveu 27 dias apenas com doação de mantimentos

Água tapou apartamentos térreos e atingiu parte do segundo andar

Água tapou apartamentos térreos e atingiu parte do segundo andar

/Douglas Alves/ARQUIVO PESSOAL/CIDADES
O transbordo do dique ao lado de São Leopoldo iniciou na madrugada de sábado, a partir das 4h10min, conforme dados da prefeitura de São Leopoldo. Mariani conta que recebeu orientações de Ângela e Douglas, que permaneceram no prédio, informando àqueles que saíram no dia anterior para que não voltassem às suas residências, pois a área externa dos apartamentos estaria enchendo rapidamente.
Para informar aos moradores, Douglas deslocou-se próximo ao dique para fazer o monitoramento do seu nível. "No sábado de manhã acordamos com a notícia de que o dique havia estourado. Eu fui com a minha moto até lá e quando cheguei no meio do caminho, a água já estava vindo. Mas, mesmo com aquela água vindo, nós achávamos que ia ser água na canela, no joelho no máximo", conta. "Quando a gente viu a água vindo foi realmente assustador, porque aquelas pessoas que ainda estavam resistentes começaram a se movimentar e a retirar seus carros, a pegar suas coisas, levando a roupa quase do corpo", acrescenta Ângela, então síndica do Condomínio Charrua.
Mariani, que já havia saído, inicialmente buscou refúgio na casa de seu irmão, que mora em Portão, município a leste de São Leopoldo. Posteriormente, foi para Novo Hamburgo, na casa de seu outro irmão e, por fim, voltou para Portão, mas dessa vez para a casa de amigos. Por estarem atuando como voluntários na cidade, ela conta que foi dessa forma que também se ocupou durante o período fora de casa.
Douglas, no entanto, permaneceu no condomínio, sozinho em seu apartamento no terceiro andar. A tentativa era de evitar possíveis assaltos às residências desocupadas. Durante 27 dias, ele e outros moradores de 20 apartamentos ficaram sem luz, sem água encanada e sem comida, e recebiam mantimentos através de barqueiros voluntários, cujas doações proviam daqueles que haviam saído do condomínio. "As pessoas ainda se sentiam mais seguras daquela forma do que ir para um lugar que elas nem sabem para onde iam. Eu e o Douglas falamos: 'A gente precisa voltar para o condomínio e dizer que aqueles que estão lá não estão abandonados', que a gente está aqui fora olhando por eles", relembra Ângela.
Já Ângela, que mora no quarto andar com sua mãe e seu marido, havia saído de barco no domingo pela manhã e se abrigou em um sítio no bairro Lomba Grande, em Novo Hamburgo. "Ficamos o dia inteiro e a madrugada toda do domingo ali, na expectativa do que nós iríamos fazer. E era um terror à noite, porque eram pessoas desesperadas clamando por socorro. Cachorros e gatos gritando, porque os donos não conseguiram resgatar eles. A gente teve que ficar naquele momento observando todo esse contexto de pânico, de medo e de insegurança. Tiveram até pessoas que chegaram ao ponto de querer se atirar dos outros andares acima", descreve, emocionada.

Apartamentos abandonados e o medo da chuva; a volta para casa após a enchente

Acervo de documentos, livros e fotos foi totalmente comprometido

Acervo de documentos, livros e fotos foi totalmente comprometido

/Mariani Machado/ARQUIVO PESSOAL/CIDADES
Após viver 27 dias de angústia, Mariani retornou à sua casa em segurança, e recorda como era o cenário que havia encontrado. "Cada vez que eu entrava aqui no condomínio tinham aquelas montanhas de lixo. A prefeitura retirava de manhã, de tarde já estava aquelas montanhas de vidas das pessoas. E as coisas tipo geladeira, mesa, cama a gente ganha. O pesado mesmo são itens tipo fotografia, documentos, meu material de trabalho e de estudos. Realmente é um sentimento de impotência, de vazio", lamenta.
Ângela e sua família também retornaram ao condomínio, e com o auxílio de Douglas e de outros voluntários, iniciaram o processo de limpeza das dezenas de apartamentos. O subsíndico conta que até hoje ainda há apartamentos vazios, pois os moradores se mudaram. Segundo ele, ainda há unidades que ainda não foram limpas completamente. 
Caso outra enchente atinja a cidade, ele conta que está mais preparado. “Eu estou naquele estado de alerta. Eu já tenho uma casa em Gravataí que está alinhada para caso aconteça alguma coisa, já tenho o caiaque à minha disposição, tenho rádios de comunicação emais lanternas”, descreve.
Atualmente, Mariani conta que quase tudo está no seu lugar. Conseguiu recuperar seu diploma, perdido na cheia, ganhou e comprou alguns livros, e também ganhou mais utensílios para a casa do que comprou. Contudo, mesmo depois de um ano, sempre que chove, diz que o sentimento que permeia seu pensamento é o pânico, e não consegue dormir plenamente à noite. "Às vezes acho que eu adormeço, mas não é dormir. Porque eu sei que eu não posso fazer nada em relação a isso. Se tiver que chover, não tem o que fazer. Eu tento manter o controle, obviamente, mas é pavoroso", comenta.

Obras e operações de limpeza tentam minimizar chance de nova enxurrada

Prefeitura afirma que o transbordo do Dique 940 iniciou na madrugada do sábado (4)

Prefeitura afirma que o transbordo do Dique 940 iniciou na madrugada do sábado (4)

Douglas DAlua/Divulgação/Cidades
Na enchente de 2024, cerca de 80% dos bairros de São Leopoldo foram atingidos devido à cheia do Rio dos Sinos. Conforme dados do Mapa Único do Plano Rio Grande, 42.208 residências foram atingidas, representando uma porcentagem de 42,5%. A atual gestão da prefeitura, governada por Heliomar Franco, implementou ações de planejamento financeiro do município a fim de prevenir possíveis futuras ocorrências de enchentes e de alagamentos.

"Nós investimos no desassoreamento do Rio do Sinos, na limpeza da vegetação que estava nas margens e que impede a saída mais rápida da água. Na limpeza e desobstrução das tubulações de água pluvial e esgoto local da cidade, são quase 200 km de rede que foram limpos nos locais críticos que acumulavam água. Também aumentamos a altura dos diques entre 40 e 90 centímetros a mais", explica.

No fim de fevereiro deste ano, a prefeitura firmou parceria com o município de Novo Hamburgo a fim de prevenir futuras cheias do Arroio Gauchinho, que atinge principalmente os moradores que vivem próximo às suas margens. Heliomar diz que foram realizadas revitalizações nas cinco casas de bombas de São Leopoldo, além de equipar com duas bombas anfíbias - cujas operações podem ser executadas tanto submersas, como emersas - a casa de bombas do bairro Santo Afonso, em Novo Hamburgo, que faz divisa com o município.

A prefeitura entregou o laudo de 2 mil casas atingidas pelas enchentes para o governo federal, a fim de dar início ao processo de reconstrução ou a Compra Assistida. "A gente quer compensar os investimentos que a cidade já fez, porque nós não podíamos esperar pelo dinheiro do governo federal ou do governo estadual, então nós usamos recursos próprios. Nós fizemos o que nós podíamos fazer com os recursos do município", afirma o prefeito..

O governo estadual informa que já repassou mais de R$ 42 milhões para o município de São Leopoldo até o momento, conforme informações da Secretaria da Fazenda. As verbas foram direcionadas para ações efetivas, como auxílio a famílias atingidas pela enchente, fundo a fundo da Defesa Civil, apoio a empreendedores, manutenção de escolas, rede hospitalar, entre outros.

A região contará com o sistema de proteção de cheias da Bacia do Sinos, que está com os estudos de impacto ambiental e relatórios de impacto ambiental em análise pela Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam). O investimento previsto é de R$ 1,9 bilhão. Os recursos são da União e a execução do governo do estado.

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