Na segunda reportagem da série sobre o um ano da enchente foi a vez de visitar um dos municípios gaúchos mais arrasados pela força da natureza. A pacata cidade de Roca Sales, no Vale do Taquari, tem a calmaria como uma das características desde a emancipação do município em relação à Estrela, ocorrida em 1954. Com pouco mais de 10 mil habitantes, a economia da cidade se baseia, principalmente, no setor primário, que representa 50% do Produto Interno Bruto (PIB). Porém, desde setembro de 2023 - e acentuado pela cheia de 2024 - o silêncio e o pouco movimento das ruas da cidades se acentuaram, e o motivo está ligado diretamente à maior tragédia climática da história do Rio Grande do Sul.
Isso porque, de acordo com a prefeitura, em torno de 2 mil pessoas deixaram a cidade após as enxurradas consecutivas. Ao cruzar a ponte da ERS-130 sobre o rio Taquari e ingressar na cidade, duas cenas impactam o visitante.
A primeira é uma cratera aberta pela violência da água, que alagou grande parte da região central da cidade, onde há um curtume e um frigorífico. O rio margeia essa área da cidade, que foi tomada por lama, água e restos de troncos de árvores não apenas uma, mas três vezes em menos de um ano. A cratera inicia à esquerda da cidade e corta a entrada da cidade até a rua 31 de Março, local outrora bastante habitado pela proximidade das fábricas e do comércio local, hoje reduzido a escombros e terrenos vazios.
A segunda cena é a de esqueletos de lojas e residências ainda remanescentes. Na frente do frigorífico, uma loja, que parecia de ser bazar a preço popular, poderia ser descrita como uma estrutura bombardeada, cujos alicerces ainda permanecem, mas o interior é absolutamente vazio. Na rua 31 de Março, outro resquício da enchente apavora quem circula pela cidade. No telhado de uma casa, um enorme tronco de árvore permanece meses depois, como uma espécie de lembrança sobre a altura em que rio atingiu naquela parte da cidade. Segundo o Serviço Geológico do Brasil, em Muçum, vizinha de Roca Sales, o rio Taquari atingiu a marca de 26 metros, cerca de 13 metros acima do nível normal, um recorde que superou marcas de 1941 e 2023.
Nas casas abandonadas, a lama ressecada esconde o piso e itens deixados para trás
TÂNIA MEINERZ/JC
As marcas nos prédios e em espaços públicos ainda são bastante visíveis. No Hospital Roque Gonzales, por exemplo, a marca amarronzada da água mostra que as janelas da instituição foram totalmente cobertas. Algumas quadras adiante, em direção ao interior do município, casas abandonadas dão um tom de memorial da enchente; restos de árvores, lixo e móveis destruídos contam à reportagem do que a natureza foi capaz.
Aposentada perdeu renda de aluguel de oito casas, todas destruídas
Com a morte do marido, o shitzu Chico é a companhia de Maria Terezinha
/TÂNIA MEINERZ/JCA aposentada Maria Terezinha da Silva é moradora de Roca Sales há 50 anos. Ela e seu marido Cândido moram na rua 31 de Março, logo na entrada da cidade. Ao longo de todos esses anos, a família decidiu investir as economias na compra de terrenos e casas para obter a renda de aluguel. Ao todo, adquiriram oito no município, sendo quatro dessas propriedades na frente de onde moram. O somatório dos pagamentos proporcionava R$ 11,5 mil mensais para a família, fora os valores de aposentadoria que ambos recebiam, o que trazia uma vida tranquila para ambos.
As sucessivas enchentes mudaram o cenário da família de maneira abrupta. Os episódios de setembro e novembro de 2023, além de maio de 2024, acabaram com a renda do casal. As oito casas foram destruídas pelo rio Taquari, que atingiu, também, o primeiro andar da residência de Maria. "Nós saímos no dia 29 de abril, uma segunda-feira à tarde, de casa. Pegamos o carro e fomos até um ponto mais alto da nossa rua para nos abrigarmos. Todo esse tempo fique com meu marido já muito doente por causa do câncer", descreve a aposentada.
De lá, ela conta que viu casas inteiras serem arrastadas. Contêineres do frigorífico começaram a boiar e se chocaram contra as residências. Na casa dela, o primeiro andar foi tomado pela água, e parte da construção também precisou de reforma. Para isso, Maria Terezinha precisou procurar outro lugar para morar. "Perdemos toda a renda e fiquei com um salário mínimo só. Com esse dinheiro, precisei pagar R$ 1 mil de aluguel e sobrava R$ 400,00 para luz, água, alimentação. Fiquei até dezembro do ano passado fora de casa", conta.
Antes das cheias, terrenos eram preenchidos por casas
GOOGLE MAPS/DIVULGAÇÃO/CIDADES
No fim de maio de 2024, o marido de Maria Terezinha faleceu. Segundo ela, houve uma piora no quadro em meio ao caos da enchente, que obrigou ele a ser levado ao hospital. Questionada como é a vida após o desastre climático e o falecimento de Cândido, a aposentada não esconde a tristeza. "Eu choro muito, todos os dias. A minha vida virou de ponta cabeça. Nem sei como estou aqui ainda... O único motivo que me faz ficar viva é meu cachorrinho, o Chico. Meu marido, antes de morrer, disse para mim 'cuida bem dele'. É por ele que eu acordo todos os dias", diz.
"Nós já estamos acostumados com a enchente, não vamos sair", diz moradora
Amanda Laurier viu nível do rio Taquari subir rapidamente
TÂNIA MEINERZ/JCEm outro ponto de Roca Sales, na rua General Osório, a mesma aonde fica o Hospital Roque Gonzales, a autônoma Amanda Laurier reside em uma casa de dois pisos com o marido e o filho pequeno. No primeiro andar funciona o local de trabalho dela, enquanto na parte superior fica a residência. Entre a enchente de setembro e a de maio ela perdeu o emprego, em um fábrica de calçados, e decidiu empreender para manter o sustento.
Da varanda do quarto, Amanda relata como foi o avanço das águas para a via e as casas. Segundo ela, em pouco mais de três horas o nível subiu ao ponto de deixar a rua onde residem intransitável. "Nós já estávamos acostumados com a enchente depois de setembro, então, erguemos os móveis, pegamos o carro e fomos para a rua de cima (rua Florença), que é mais alta. Soubemos de vários vizinhos que não quiseram sair, com medos de furtos", relembra.
Abandonadas, casas dão tom melancólico à cidade
TÂNIA MEINERZ/JC
Ao deixar a casa e ir para um ponto mais alto, Amanda percebeu que o rio Taquari havia chegado a um ponto bem mais alto que o registrado em setembro de 2023. A forma de medição disso eram os andares da casa. Em maio, todo o primeiro andar ficou submerso, e a água atingiu o segundo pavimento, na varanda.
Mesmo com três eventos consecutivos, Amanda disse que não pensou em deixar Roca Sales. "Nós gostamos muito daqui, da cidade, do bairro. Temos que nos adaptar. Não vamos sair. A gente tem a consciência de que pode vir uma enchente maior e perdermos tudo", afirma
Queda na arrecadação com o ICMS vai impactar em investimentos, afirma prefeito
Projeção da prefeitura é de redução no repasse de ICMS em R$ 2 milhões para 2026 e R$ 3 milhões em 2027
TÂNIA MEINERZ/JCCom a economia baseada na agricultura, a cidade de Roca Sales teme anos difíceis no orçamento a partir de 2026. Um dos principais temores é com o repasse no ICMS por parte do governo estadual. De acordo com o prefeito, Jones Wunsch, para o ano que vem a redução é prevista em R$ 2 milhões; para 2027, pode chegar a R$ 3 milhões. Segundo ele, essa redução vai impactar futuros investimentos. O orçamento anual da cidade é de R$ 70 milhões.
Para o chefe do Executivo, a retomada econômica depende de uma série de quesitos. O primeiro seria retomar a confiança de empresas e pessoas para voltarem à cidade. Levantamento feito pelo governo do Estado, no Mapa Único do Plano Rio Grande, aponta que 54,5% da população da cidade foi atingida pela enchente de maio. Com a debandada de cerca de 20% dos moradores para cidades próximas e o impacto na área central da cidade, a prefeitura vê dificuldades em atrair novos negócios. “Estamos trabalhando muito para termos novos negócios na cidade. Se uma empresa maior quiser se instalar aqui, há áreas longe da zona de alagamentos disponíveis”, oferta Wunsch.
Outro ponto é a habitação. A prefeitura segue cadastrando moradores atingidos pelas múltiplas enchentes que assolaram a cidade. No episódio de maio foram 535 casas destruídas. Para o prefeito, ainda há demora na realocação dessas famílias. “Esse é o ponto mais preocupante. Precisamos de uma resposta mais rápida. Há pessoas atingidas em setembro de 2023 que ainda estão na fila por uma casa”, afirma.
Um outro debate também deve permear o mandato de Jones Wunsch, que assumiu em janeiro deste ano: a mudança da área central da cidade. A ideia era levar quase 40% do Centro de Roca Sales para outro local, sob o risco de uma nova enxurrada terminar com os poucos negócios que permanecem. O prefeito, no entanto, foi cauteloso. “Estamos com o Plano Diretor da cidade em curso, junto com a Univates. Queremos, a partir dele, projetar uma Roca Sales para daqui 20 anos. Dependendo do que for decidido, podemos ver a questão do Centro, mas, se fizermos, será de uma forma ordenada. Hoje, meu objetivo é dar uma cara nova para essa região”, complementa.