A recente divulgação dos dados de religião dos brasileiros apurados no último Censo do IBGE, em 2022, deu destaque a duas cidades da Região Sul do RS: Arroio do Padre e Chuí. A primeira tem a maior proporção de praticantes de religiões evangélicas em todo o país, com 88,7% dos habitantes de mais de 10 anos de idade, e a segunda, a maior porcentagem de brasileiros sem religião, com 37,7% da população.
No entanto, esses não são os únicos municípios da Metade Sul com dados marcantes relativos à prática religiosa. Os dados levantados pelo Censo mostram que as 44 cidades de uma faixa que vai do litoral Sul gaúcho à fronteira com a Argentina, mostram uma diversidade de crenças e comportamentos que refletem movimentações históricas e características socioeconômicas.
Os autodeclarados gaúchos sem religião são mais numerosos justamente na região: junto com o Chuí, dos 20 municípios com a maior população que informou não seguir nenhuma religião, só dois não pertencem à região Sul do RS. As dez cidades com o maior extrato da categoria são Chuí, Pedro Osório, Cerrito, Arroio Grande, Rio Grande, Capão do Leão, Santa Vitória do Palmar, Pelotas, Jaguarão e São José do Norte, todos concentrados na porção leste do Sul gaúcho. A média da região é de 13,3%.
O historiador Mauro Dillmann, que leciona no departamento de História da Universidade Federal de Pelotas (Ufpel), avalia, ao menos no caso das fronteiriças Chuí e Santa Vitória no Palmar, que a causa pode estar ligada à proximidade com o Uruguai, que “tem uma laicidade mais forte” e que contribui com esses municípios a partir de uma população binacional, com vínculos familiares e profissionais nos dois países.
O professor também pontua que “o tempo presente, com fluidez nas relações, valorização de uma certa individualidade e liberdade de acreditar em mais de uma fé”, podem contribuir para um aumento gradual dessa população, em todo o Brasil. Ainda assim, o dado pode significar, no contexto cristão, que “a tendência é enxergar (esse dado) como uma região de carência de atendimento pastoral”, afirma o estudioso. Ele adverte, porém, que o rótulo “sem religião” não significa ser “sem crença”. “Isso pode indicar na prática um pertencimento plural, em que a pessoa se identifica com diversos segmentos”, exemplifica.
Média de declarações de religião entre 44 municípios na metade Sul do RS, de acordo com os dados do Censo 2022 do IBGE
Arte/JC
Arroio do Padre é o único município da região entre as dez cidades gaúchas com mais evangélicos. Ao contrário do crescimento de vertentes neopentecostais em outras partes do país, Dillmann atribui os números da cidade à grande presença de descendentes de alemães e pomeranos, cuja principal religião é o protestantismo luterano. Já os católicos apostólicos romanos da metade Sul são mais presentes em Amaral Ferrador, com 84,7% de praticantes. No entanto, no panorama gaúcho, a cidade aparece somente no 126º lugar no estado, e a média da região é de "somente" 49,8% de católicos.
O Chuí, município mais meridional do Brasil, que tem uma população de católicos – de 35,6% - inferior aos sem religião, também tem uma porcentagem de 11,4% que declara crer em “outras religiosidades”. A cidade, assim como outros municípios da metade Sul como Bagé e Santana do Livramento, tem uma amostra expressiva de imigrantes e descendentes de cidadãos de países como Líbano, Síria e Palestina, e que exercem a fé islâmica em solo gaúcho.
Religiões afro-brasileiras e espiritismo
O Sul do RS ainda é espaço para a prática das religiões afro-brasileiras, como a umbanda e o candomblé, trazidos ao Brasil Colônia pelos africanos escravizados; e o espiritismo, surgido na França no século XIX.
No caso da umbanda, o município gaúcho com mais praticantes é Viamão, na Região Metropolitana de Porto Alegre, com 9,3% de praticantes. Mas, entre os 10 municípios do RS com a maior proporção de adeptos, metade deles está na metade Sul: Rio Grande, com 9,2%, além de Bagé, Pelotas, Capão do Leão e Piratini. O RS também é o estado com maior população adepta da umbanda e do candomblé no Brasil.
Nesse caso específico, Dillmann não aposta necessariamente em um aumento do volume de praticantes, e sim em uma possível maior autoafirmação dessas crenças. “Historicamente, Pelotas e Rio Grande são espaços de forte vivência da religiosidade afro-brasileira. Mas nos últimos 20 anos, temos tido um movimento político-social bastante forte de valorização da cultura afro-brasileira, e uma popularização das histórias e memórias ligadas a esse universo religioso, e o avanço também nas próprias discussões das relações étnico-raciais”, analisa.
Ponte Barão de Mauá, sobre o Rio Jaguarão, na fronteira entre Brasil e Uruguai
Portal Brasil/Reprodução/JC
Já os espíritas são mais presentes em Jaguarão, cidade na fronteira com Río Branco, no Uruguai, onde 8,5% da população segue essa crença, a maior porcentagem do RS. Dos 10 municípios gaúchos com mais espíritas, seis estão na metade Sul. Depois de Jaguarão estão Pelotas, Rio Grande, Bagé, Santana do Livramento e Pedro Osório. Em toda o Sul, a média de espíritas é de 3,13%. Considerando somente o Sul do RS, entram na lista das cidades com mais espíritas a porção Oeste da área, com Lavras do Sul, Rosário do Sul, Dom Pedrito, São Gabriel, Alegrete, Caçapava do Sul e São Borja.
Dillmann salienta que também o espiritismo marcou sua presença nesses municípios ainda no século XIX. “O espiritismo sempre foi bastante identificado com uma certa camada da população. A Baronesa Amélia, por exemplo, do Museu da Baronesa de Pelotas, era espírita. Desde quando surgiu o espiritismo, na França, Pelotas absorveu esses ideais e essa filosofia, e os primeiros centros espíritas do Brasil são fundados nesse momento, no final do século XIX”, explica.
Ainda que a expressão de populações de diferentes credos e práticas traga “disputas no campo religioso, nem sempre acompanhado de maior aceitação ou boa convivência”, Dillmann também vê um “forte movimento em prol do diálogo inter-religioso advindo de todos os credos”, que podem consolidar a metade Sul como símbolo da diversidade religiosa no Rio Grande do Sul.