Um ano após a maior enchente da história do Rio Grande do Sul, que devastou centenas de municípios e deixou cicatrizes profundas na vida de milhares de gaúchos, a reconstrução avança em ritmos distintos, conforme apresentado na série de reportagens que se encerra nesta sexta-feira (9). No âmbito do poder público, o que começou com operações de resgate e envio de ajuda humanitária se transformou em um extenso conjunto de obras, programas e políticas públicas voltadas à recuperação da infraestrutura, à garantia de moradia e à prevenção de novas tragédias.
A catástrofe escancarou vulnerabilidades antigas, exigiu respostas inéditas e deixou uma pergunta ainda em aberto: o que de fato mudou e o que ainda falta ser feito?
Para compreender o estágio atual da reconstrução, o Jornal do Comércio ouviu três figuras centrais na condução das ações públicas desde o início da crise: o deputado federal Paulo Pimenta, ex-ministro-chefe da Secretaria de Apoio à Reconstrução do Rio Grande do Sul; Pedro Capeluppi, secretário estadual da Reconstrução Gaúcha; e Maneco Hassen, atual secretário federal de Apoio à Reconstrução. Com visões complementares, eles ajudam a traçar um panorama dos avanços e gargalos de um processo que está longe de se encerrar.
A resposta do Estado
A principal aposta do governo estadual foi o Plano Rio Grande, estruturado em três eixos — preparação, resposta e reconstrução. Para coordenar a execução, foi criada uma secretaria específica, sob comando de Capeluppi. "Mesmo em meio ao caos, sabíamos que seria preciso organizar uma reconstrução sólida e de longo prazo", recorda o secretário.
Entre as iniciativas já em curso destacadas por ele estão a aquisição de um novo radar meteorológico, a recuperação de estações de monitoramento, levantamentos batimétricos e topográficos, além da implantação de um Centro Integrado de Gestão de Riscos. Também foram comprados helicópteros, viaturas e outros equipamentos de emergência. Segundo Capeluppi, essas ações aumentam a capacidade de resposta a possíveis novos eventos climáticos extremos.
Na área de infraestrutura, o cronograma prevê a intensificação das obras rodoviárias a partir do segundo semestre deste ano. Já foram contratados mais de R$ 2 bilhões para recuperar e reforçar a malha viária estadual, com foco em estruturas mais resilientes. A recuperação de escolas e hospitais também avança, embora parte dos serviços ainda opere de forma parcial.
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A maior dificuldade, admite Capeluppi, está na área habitacional. "Encontrar áreas fora de risco, urbanizá-las e construir novas moradias demanda tempo, planejamento e articulação com os municípios." Até o momento, o Estado entregou cerca de 400 unidades habitacionais temporárias, no programa A Casa é Sua - Calamidade e trabalha em parceria com a União para acelerar as entregas definitivas.
Outras frentes em andamento incluem a retirada de mais de 300 mil m3 de sedimentos em rios e canais, dragagens nos acessos portuários do Guaíba e a revisão de planos diretores em municípios do Vale do Taquari, com apoio da Univates. No caso dos diques e casas de bombas — essenciais para conter futuras cheias e de responsabilidade municipal — o Estado lançou um programa de repasses diretos para viabilizar as obras. Até 2027, o Plano Rio Grande prevê R$ 14 bilhões em investimentos, dos quais cerca de R$ 1,7 bilhão já foi executado e R$ 3,7 bilhões estão empenhados.
O papel da União
Do lado federal, a resposta começou com foco no resgate e na reconstrução emergencial de infraestrutura. Segundo Paulo Pimenta, que chefiou a Secretaria Extraordinária da Presidência criada para lidar com a tragédia, a presença da União foi intensa e determinante desde o primeiro momento. "Nunca houve uma atuação federal tão abrangente em uma calamidade. Estivemos em todas as frentes: logística, socorro e apoio financeiro, de forma inédita."
Desde que deixou de ter status de ministério, em setembro do ano passado, a secretaria manteve a estrutura, mas foi reconfigurada. Menor, o órgão agora está sob responsabilidade de Maneco Hassen, que acompanha de perto a execução dos projetos em campo. Ele informa que a União já aplicou R$ 112 bilhões em ações relacionadas à tragédia, o equivalente a 94% de todo o investimento público feito até agora.
Os recursos contemplaram diversas frentes: 430 mil famílias receberam o Auxílio Reconstrução, 66 mil empresas acessaram linhas de crédito e mais de 1.400 planos de trabalho foram firmados com prefeituras. A recuperação de rodovias federais e a reabertura do aeroporto de Porto Alegre ocorreram ainda nos primeiros meses, mas também demandaram esforços, segundo ele.
Na habitação, o governo federal atua em duas frentes: o programa Compra Assistida, que adquire imóveis prontos e os entrega às famílias, e o Minha Casa Minha Vida Calamidade, destinado à construção de novos conjuntos habitacionais. Até agora, foram entregues 1.620 casas, outras 700 estão previstas para os próximos dois meses, e 8.500 unidades estão em construção. O primeiro conjunto habitacional construído do zero deve ser concluído em dezembro, em Venâncio Aires. A meta é entregar, ao todo, 20 mil moradias até o fim de 2026.
Pimenta, que agora é o responsável por cuidar desta pauta na Câmara dos Deputados, afirma que o ritmo das entregas depende da capacidade técnica dos municípios. "Muitos não tinham estrutura para elaborar projetos, desapropriar terrenos, licenciar obras. Esse tempo de maturação é natural, mas agora é preciso acelerar. Já deu tempo para tudo se resolver", afirma.
Um dos maiores entraves está na execução das obras de proteção contra enchentes na Região Metropolitana. No fim do ano passado, o governo federal criou um fundo de R$ 6,5 bilhões e firmou um protocolo com o Estado. A execução, porém, emperrou na fase de atualização dos projetos.
"Desde setembro, o RS assumiu essa etapa, mas até agora não houve sequer a contratação das empresas. Essa é a principal pendência no momento, até porque acredito que será a obra mais significativa deixada após essa tragédia", critica Hassen.