Stephanie Strogulski, 29 anos, convive com o diabetes tipo 1 desde a infância. Mas, em maio de 2024, ela enfrentou um risco que poderia ser fatal em poucos dias: seu estoque de insulina estava prestes a acabar, e nenhuma farmácia em Canoas dispunha do medicamento. "Corremos mais de 20 farmácias. Nada. E ficar sem insulina mata mais rápido do que fome e sede". O desespero só foi amenizado após uma ligação ao Instituto da Criança com Diabetes (ICD), onde é acompanhada desde os nove anos. "Eles me deram o que eu precisava — e até um pouco mais, para garantir. Somente por isso, não precisei ficar nem um dia sem".
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O drama de Stephanie é apenas uma entre milhares de histórias que emergiram da maior tragédia climática da história do Rio Grande do Sul. A enchente de maio de 2024 não apenas destruiu bairros inteiros e bloqueou estradas: desestruturou também o sistema de saúde. Medicamentos sumiram das prateleiras, unidades básicas foram interditadas, hospitais precisaram ser evacuados. Segundo a Secretaria Estadual da Saúde (SES), 298 unidades públicas sofreram danos — totais ou parciais — em 87 municípios. Também foram contabilizados 218 equipamentos danificados, 244 mobiliários perdidos e 225 salas de vacinação atingidas, das quais 131 tiveram suas câmaras de conservação comprometidas.
Os dados evidenciam a dimensão do colapso. A pasta informa ainda que 247 hospitais receberam recursos para a retomada dos atendimentos, seja por impactos diretos ou indiretos. "Alguns enfrentaram dificuldade para manter os serviços. Outros viram a demanda explodir, justamente por causa do fechamento das unidades vizinhas", explica a secretária adjunta da Saúde, Ana Costa. De acordo com ela, a enchente afetou a área da Saúde do Estado em diferentes momentos, atingindo primeiro o Vale do Taquari, depois a Região Metropolitana e, por fim, o Sul. "Enquanto uma região começava a se reerguer, outra mergulhava na calamidade. Praticamente todo o território foi atingido, com desafios específicos em cada etapa", afirma.
Com isso, a resposta do governo estadual se estruturou em três frentes principais: manutenção emergencial dos serviços, reestruturação das unidades e apoio técnico aos municípios. Até o momento, foram mobilizados ao menos R$ 186,2 milhões em recursos extraordinários, sendo R$ 45,1 milhões destinados a hospitais, R$ 24,7 milhões à atenção primária e R$ 9,95 milhões à compra de equipamentos. Também foram formadas 197 equipes de saúde mental e adquiridas 100 câmaras frias para reforçar a rede de vacinação.
Mas os desafios não ficaram restritos à destruição física das estruturas. As enchentes também agravaram quadros de doenças. Em áreas alagadas e abrigos superlotados, aumentaram significativamente os casos de infecções respiratórias, diarreias, doenças de pele e, sobretudo, leptospirose. Para conter a situação, a SES afirma que distribuiu medicamentos, ativou hospitais de campanha com o apoio do Ministério da Saúde e coordenou o transporte de pacientes e insumos com as Forças Armadas.
Hoje, embora praticamente todas as unidades já tenham sido reativadas, o Hospital de Pronto Socorro de Canoas — um dos mais atingidos — é o único local que permanece sem funcionar integralmente. A previsão é de que o atendimento total seja retomado até o fim do ano, o que prolonga as dificuldades para a população da região.
No entanto, para além da destruição visível, a tragédia deixou cicatrizes profundas na saúde dos afetados, inclusive aqueles que dedicam suas vidas a cuidar de terceiros. Christian Cardoso, 46 anos, técnico de enfermagem do Hospital Mãe de Deus, estava prestes a sair de férias com a família quando a enchente atingiu Eldorado do Sul. "Estava tudo pronto para irmos a Alegrete quando veio a tragédia. Alagou tudo, quebrou ponte, estrada. Ficamos presos. O hospital onde trabalho também foi muito afetado, com o subsolo completamente tomado pela água", conta.
Durante o auge da crise, ele foi liberado do serviço. Mas o que poderia ser descanso virou luto e trabalho. "O cheiro da cidade, tudo coberto por lama, móveis, roupas, eletrodomésticos no meio da rua. Foi muito forte. Uma dor que só entende quem viveu. A gente suou pra conquistar tudo aquilo", desabafa. Para ele, o maior impacto foi emocional. "Todo mundo diz que o importante é estar vivo — e é verdade. Mas ver tudo destruído mexe com a cabeça. A saúde mental ficou muito abalada."
Hoje, ele e a família moram em um sobrado em Guaíba, longe dos amigos e das raízes de Eldorado. "A gente até pensou em voltar, mas o medo pesa. Vai que chove forte de novo, né?". Segundo ele, a falta de uma rede de apoio sólida para os profissionais da saúde foi evidente.
Saúde mental, uma consequência 'invisível' aos afetados pelo evento climático

Cerca de 25% dos entrevistados ainda apresentavam sintomas de estresse pós-traumático oito meses após o desastre
/TÂNIA MEINERZ/JCComo no caso do técnico de enfermagem, entre os impactos mais sensíveis da tragédia está o abalo psicológico da população. No auge da tragédia climática, mais de 40 Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) foram danificados, e equipes emergenciais foram acionadas para oferecer suporte. Ainda assim, a rede pública não deu conta da demanda. Apenas nos três primeiros meses após a enchente, foram realizados cerca de 30 mil atendimentos psicossociais, segundo a Secretaria Estadual da Saúde.
Um estudo conduzido pelo Hospital de Clínicas de Porto Alegre, com mais de 5 mil pessoas afetadas, revelou que cerca de 25% dos entrevistados ainda apresentavam sintomas de estresse pós-traumático oito meses após o desastre (quando foi realizado o último levantamento). Ansiedade e depressão também foram frequentes — sobretudo entre mulheres, jovens e pessoas em situação de vulnerabilidade. Entre os que buscaram ajuda, 30% afirmam que não conseguiram atendimento.
A pesquisa também chama atenção para os efeitos psicológicos nos voluntários que participaram dos resgates, muitos dos quais enfrentaram situações traumáticas, como encontrar corpos e lidar diretamente com o sofrimento das vítimas. Essas pessoas representam uma parcela significativa daqueles com sintomas psicológicos persistentes. Uma nova etapa do estudo será iniciada no próximo sábado (10), com o objetivo de medir os impactos do evento um ano após sua ocorrência.