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Publicada em 05 de Maio de 2025 às 19:50

Canoas: as marcas da cheia e a busca pelo recomeço

Mais de 60% do território da cidade, como o Bairro Mathias Velho, foi inundado quando o sistema de diques colapsou

Mais de 60% do território da cidade, como o Bairro Mathias Velho, foi inundado quando o sistema de diques colapsou

Rafa Neddermeyer/Agência Brasil/JC
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Gabriel Margonar
Gabriel Margonar
No dia 1º de maio de 2024, Canoas não dormiu. A água, resultado de uma sequência de dias chuvosos, avançou sem aviso, cruzou muros, transformou ruas em rios e dissolveu fronteiras entre bairros. Em poucas horas, a cidade era outra — e, para muitos, irreconhecível. Mais de 60% do território foi inundado quando o sistema de diques colapsou. Mathias Velho, Harmonia, Guajuviras, Rio Branco e outros bairros desapareceram sob a lama. Mas não foram apenas casas e comércios que a água levou: ela também apossou-se de passados inteiros.
No dia 1º de maio de 2024, Canoas não dormiu. A água, resultado de uma sequência de dias chuvosos, avançou sem aviso, cruzou muros, transformou ruas em rios e dissolveu fronteiras entre bairros. Em poucas horas, a cidade era outra — e, para muitos, irreconhecível. Mais de 60% do território foi inundado quando o sistema de diques colapsou. Mathias Velho, Harmonia, Guajuviras, Rio Branco e outros bairros desapareceram sob a lama. Mas não foram apenas casas e comércios que a água levou: ela também apossou-se de passados inteiros.
Hoje, um ano depois, Canoas, o município com mais óbitos durante a tragédia climática (31), já não é um cenário de botes à deriva. Escolas foram reabertas, parte dos diques passou por reconstrução e os abrigos se esvaziam aos poucos. Mas em cada reencontro com a cidade, o que salta aos olhos são as marcas que nem sempre estão nas paredes: estão nos gestos, nos silêncios e nos relatos de quem sobreviveu.
Bruna Lima, 31 anos, moradora do Mathias Velho, nunca imaginou que uma chuva, que lhe parecia comum, resultaria em tamanha destruição. "Quando saí de casa, a tempestade parecia ser só mais uma. Mas não foi", conta. Em questão de horas, seu carro foi submerso e sua casa destruída.
Quando conseguiu retornar, dois meses depois, encontrou tudo perdido, mas o que mais a marcou foram as cicatrizes afetivas. "Minha filha perdeu tudo: a pulseirinha da maternidade, o primeiro brinco, fotos do aniversário… Essas coisas, a gente nunca mais verá". Embora tenha tentado recuperar o que fosse possível, Bruna agora vive em um improvisado que já se arrasta para o cotidiano. "A gente aprende a sobreviver com o que sobra", reflete.
O sofrimento da perda também foi vivido por Leandro Quevedo Soares, 45, no bairro Mato Grande. Ele e sua família receberam o aviso de evacuação no meio da noite, com menos de uma hora para deixar a casa. "Às 23h30min nos avisaram. Por volta de 0h10min, estávamos com mochila nas costas", relembra. Quando conseguiram retornar, a casa estava reduzida a entulho. "Choramos por 15 dias enquanto tentávamos recuperar o que dava", diz, apontando que a ajuda veio de quem estava ao lado — e não de cima. "Foi o povo pelo povo."

Leandro  Quevedo Soares mora com a esposa e cinco filhos no bairro Mato Grande | TÂNIA MEINERZ/JC
Leandro Quevedo Soares mora com a esposa e cinco filhos no bairro Mato Grande TÂNIA MEINERZ/JC
A dor da perda é acompanhada pela revolta para Ana Rocha, 42, que não esconde sua indignação. Para ela, a tragédia não foi apenas uma questão de perdas materiais, mas uma sensação de falha por parte das autoridades. "O que eu aprendi com a enchente? A ter ódio", responde, sem hesitar. Ela tentou alertar a família sobre um vazamento na área, mas o tempo foi implacável. Quando retornou, sua casa estava irreconhecível, com as lembranças de seu falecido pai e de momentos especiais levados pelas águas. "Não tem dinheiro que traga isso de volta", lamenta, com raiva pela perda do que foi construído ao longo de sua vida.

Ana Rocha convive com a indignação por todas as perdas | BRENO BAUER/JC
Ana Rocha convive com a indignação por todas as perdas BRENO BAUER/JC
E no meio de tantas histórias de dor, há também pequenas vitórias, como a de Paulo Gilberto Fischer, 68, aposentado, que encarou a tragédia com uma mistura de resistência e resiliência. Quando voltou para casa, parentes já tinham iniciado a limpeza, mas o cenário ainda era devastador. "Era triste de ver. Barro, matinho, tudo espalhado por cima, sabe? Aí a gente foi tirando", recorda.
Ele e a esposa reformaram o imóvel com a ajuda da família. "Eu e minha mulher que arrumamos tudo: pintamos, lavamos e reformamos o forro", conta. Um momento marcante foi quando encontraram intacto um pote com R$ 4 mil deixado pela filha — o valor foi usado na reconstrução da cozinha. Para Paulo, remoer não ajuda: "Ah, mas não adianta, né? O que a gente vai fazer? Já passou", diz, com leveza, após 53 anos vividos na mesma casa, na rua Curitiba.
André Rogério, 52, conferente logístico, viu sua vida mudar completamente com a tragédia de maio do ano passado. Durante a enchente, se tornou voluntário e enfrentou o caos de uma cidade submersa, ajudando a evacuar abrigos e a salvar quem estava ao seu redor. "O cheiro era de podridão e morte", lembra, com a voz embargada.

André Rogério trabalhou como voluntário nos resgates há um ano | BRENO BAUER/JC
André Rogério trabalhou como voluntário nos resgates há um ano BRENO BAUER/JC
Até hoje, ele acorda com as lembranças vívidas: corpos boiando e gritos que ecoam em sua memória. Mas o momento que mais o marcou aconteceu em um abrigo improvisado, onde uma senhora de 85 anos, ao abraçá-lo, lhe disse: "Meu filho, eu ainda creio que vou reconstruir minha vida." Essas palavras se tornaram um símbolo de resistência em meio à destruição, algo que André carrega consigo até hoje. A tragédia, para ele, não foi apenas um desastre físico, mas uma experiência que transformou a forma como vê a cidade e as pessoas ao seu redor.
Enquanto as histórias de dor e resiliência se entrelaçam, Canoas vai se reconstruindo — não apenas com o concreto das obras, mas também com os vínculos, as memórias e as ausências que permanecem. A cidade, como seus moradores, persiste. E, para todos, o tempo não seca tudo, mas ensina a seguir em frente, mesmo com o que se perdeu. Porque parar, como tantos disseram, nunca foi uma opção.
Hoje, um ano depois da tragédia, é possível perceber o esforço contínuo de reconstrução, tanto material quanto emocional. E é na revolta de muitos, que ainda buscam respostas e mudanças, que surge também a esperança de um novo começo. Apesar da tragédia, a cidade segue adiante. A atual gestão municipal, que assumiu em janeiro deste ano, destaca as intervenções no sistema de diques, com a elevação das estruturas e reassentamento de famílias em áreas críticas. No entanto, a cidade ainda enfrenta desafios.
Para 216 pessoas, ainda não há um lar definitivo. Elas permanecem no único abrigo oficial, com previsão de desativação até o fim de maio, enquanto 58 casas temporárias serão entregues neste mês e contratos para mais de 1.500 moradias definitivas já foram assinados.

Números da tragédia em Canoas:

  • 180 mil pessoas atingidas (60% dos moradores da cidade);
  • 70 mil casas impactadas, sendo 5.502 consideradas inabitáveis;
  • 31 mortos;
  • Água ultrapassou os 6 metros.
 

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