Foi em primeiro de março de 1845, um sábado, em Ponche Verde, região que pertencia na época ao município de Dom Pedrito, que o então Barão de Caxias, Luís Alves de Lima e Silva, e o general Farroupilha David Canabarro assinaram o tratado que encerrou as hostilidades e deu fim àquele que foi o mais longo conflito armado civil ocorrido no Brasil em toda a sua história.
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Há 190 anos o RS entrava em guerra contra o império, e há 180 anos, a paz voltou a se fazer presente nestas bandas ao Sul do Brasil após uma década em que os campos do Pampa gaúcho se tornaram cenários de batalhas e escaramuças, onde o tilintar das espadas se chocando se misturou com os estampidos e explosões dos canhões e pistolas e o sangue que manchou a terra desenhou uma tradição e escreveu um dos capítulos mais extraordinários da história gaúcha e brasileira.
A guerra não foi uma das mais mortíferas já ocorridas no País – estimativas apontam entre 2,9 mil a 3,4 mil mortes no período, o que daria menos de uma morte por dia. Em termos de comparação, a Guerra do Contestado, que ocorreu entre 1912 e 1916 em Santa Catarina e no Paraná teria resultado na morte de até 20 mil pessoas.
Mas, o impacto da Revolução Farroupilha não se dá em razão dos números. O imaginário é algo que não se contabiliza em dados, a cultura está além das planilhas, dos livros e pesquisas, a tradição não se alimenta de análises.
É costume se dizer que o gaúcho é muito bairrista, que valoriza além da conta as suas coisas, seus feitos, que é deveras apegado àquilo que é seu. De certa forma, isso está certo. E, muito provavelmente, por isso mesmo, conseguiu romper as fronteiras geográficas, simbólicas e culturais que a distância e a diversidade nacional impõem a tudo aquilo que não está no centro.
O célebre escritor russo Liev Tolstoi (1828-1910) cunhou uma frase que dá o tom de como o apego àquilo que é seu impacta na repercussão e no alcance geral das coisas feitas localmente: “Se queres ser universal começa por pintar a tua aldeia.”
E, se tem uma coisa que o gaúcho sabe fazer muito bem é pintar a sua aldeia com cores vivas e vibrantes. Cores que se desfraldam na bandeira e que se tornam voz ao ressoar das primeiras notas do hino rio-grandense.
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No dicionário, o significado da palavra tradição é “comunicação oral de fatos, lendas, ritos, usos, costumes, de geração para geração”. No Rio Grande do Sul, a exaltação das coisas locais teve início em um momento de massificação cultural no pós-guerra, na segunda metade da década 1940.
O filósofo francês Gilles Lipovetsky salienta “quanto mais o mundo se globaliza, mais os particularismos e as exigências identitárias ganham importância”. Ou seja, paralelamente ao declínio das identidades nacionais, caminha a ascensão das identidades regionais, como uma forma de resistência a esse movimento de unificação cultural global.
E foi exatamente isso que se deu no Rio Grande do Sul. A própria Carta de Princípios do Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG) aprovada em 1961 indica quais os objetivos do movimento.
Além de “cultuar e difundir nossa história, nossa formação social, nosso folclore, enfim, nossa Tradição, como substância basilar da nacionalidade” e promover “uma retomada de consciência dos valores morais do gaúcho”, o movimento coloca como um dos seus princípios “criar barreiras aos fatores e ideias (...) que sejam diametralmente opostos ou antagônicos aos costumes e pendores naturais do nosso povo”, e “zelar pela pureza e fidelidade dos nossos costumes autênticos”.
Ou seja, o movimento tradicionalista surge com esse olhar profundamente local, com uma dose de repúdio às coisas que vêm de fora objetivando preservar e realçar o que chamava de “costumes autênticos”.
Costumes esses que, na prática, são resultado de um grande caldeirão cultural, que reúne ingredientes de diversas fontes.
O gaúcho em si, esse indivíduo pintado como um tipo social único, enraizado no Pampa, como se tivesse brotado pronto da terra, é, na verdade, uma figura de uma diversidade ímpar. O homem que vivia nessa região ao Sul do continente era um indivíduo com características fronteiriças, fruto de grande miscigenação de etnias e com forte influência indígena.
Essa formação tão diversificada se deu naturalmente, pelo convívio e troca culturais e pode ser visualmente conferida na obra “A formação histórico-etnográfica do Rio Grande do Sul” (1955), do artista Aldo Locatelli, exposta no Palácio Piratini, em Porto Alegre. Ali estão presentes o português, o indígena, a mulher, o tropeiro, o camponês. A grande ausência sentida no afresco do artista é a do negro. Mulheres e homens negros tiveram papel fundamental na formação do Rio Grande do Sul, seja pela contribuição cultural, seja pela força de trabalho, seja pela bravura nos campos de batalha. Ainda assim, foram esquecidos na obra que retrata a formação do povo gaúcho.