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reportagem cultural

- Publicada em 28 de Julho de 2022 às 18:52

Água na Boca: boemia elegante no Centro de Porto Alegre

Pedro Mello (centro) e Rui Willig (direita) estiveram à frente da boate Água na Boca na maior parte do tempo da operação, entre 1979 e 1987

Pedro Mello (centro) e Rui Willig (direita) estiveram à frente da boate Água na Boca na maior parte do tempo da operação, entre 1979 e 1987


ACERVO RUI WILLIG/REPRODUÇÃO/JC
Assentada em uma área onde o Centro Histórico hoje paquera o bairro Independência, a Praça Conde de Porto Alegre tem sua origem em 1778, quando as trincheiras que protegiam o acesso terrestre à capital da Província ganharam uma cancela, bloqueada ao cair da tarde para dificultar a vida de possíveis intrusos - há quem ainda chame o local pelo antigo nome de Praça do Portão. Pois os invasores noturnos seriam muito bem-vindos diante desse mesmo espaço triangular, 200 anos depois, com a instalação de um concorrido ponto de encontro: a boate Água na Boca (1979-1987).
Assentada em uma área onde o Centro Histórico hoje paquera o bairro Independência, a Praça Conde de Porto Alegre tem sua origem em 1778, quando as trincheiras que protegiam o acesso terrestre à capital da Província ganharam uma cancela, bloqueada ao cair da tarde para dificultar a vida de possíveis intrusos - há quem ainda chame o local pelo antigo nome de Praça do Portão. Pois os invasores noturnos seriam muito bem-vindos diante desse mesmo espaço triangular, 200 anos depois, com a instalação de um concorrido ponto de encontro: a boate Água na Boca (1979-1987).
Leia as reportagens anteriores da série 'Porto Noite Alegre':
Bem-nascidos. Novos-ricos. Empresários. Servidores. Artistas. Músicos. Atletas. Comunicadores. Socialites. Colunáveis. Mulheres deslumbrantes. Em claros e escuros, um irresistível jogo de espelhos, luzes, música, drinks e egos se abria a sedutoras possibilidades no subsolo do finamente decorado palacete número 55 do trecho prolongado da rua Doutor Flores, entre Riachuelo e Duque de Caxias. Tudo em contraste com as origens do imóvel de três pavimentos, erguido em 1920 e que havia demorado mais de meio século para ter descoberta sua vocação a esse tipo de atividade.
Quem diria? Em uma zona rica em bares porém carente de boates de gabarito, a construção já havia servido como residência de um imigrante do Líbano, consulado do país árabe, empresa de importação e exportação, distribuidora de medicamentos e escritório do Teatro Leopoldina (1963-1984), até acolher o primeiro pub londrino da capital gaúcha. Fechadas as portas desse último no segundo semestre de 1980, entraram em cena os jovens Rui Willig e Pedro Mello (1954-2016), um dos mais brilhantes nomes do ramo no Rio Grande do Sul.
A sintonia perfeita entre os talentos administrativos e promocionais da dupla deixaria seu carimbo na memória cultural de Porto Alegre. Entre os seus protagonistas há inclusive uma opinião consolidada sobre a Água na Boca como o segundo melhor estabelecimento que a cidade já conheceu no gênero, em meio a uma lista de centenas de lugares relevantes com esse perfil no Estado. "Se o Encouraçado Butikin (1965-2003) foi a número 1, também é verdade que gente ocupa com folga a vice-liderança no pódio", orgulha-se Willig, que hoje atua como consultor no mercado financeiro.
"Foram muitos episódios, vários deles impublicáveis", diverte-se o designer de interiores Paulo Zoppas, 71 anos, figura crucial e testemunha de tamanha ebulição naquelas noites e madrugadas. Essa história, entretanto, tem seu início a exato 1,1 quilômetro de caminhada dali e com uma diferente combinação de personagens, de forma nem tão sofisticada - embora não menos singular. Cenário: um antigo sobrado no bairro Cidade Baixa, zona já repleta de alternativas musicais, etílicas e gastronômicas aos adeptos da boemia na fervilhante década de 1970.
 

Um nome apetitoso

Com trajetória iniciada na Cidade Baixa e fixada no Centro Histórico, a Água na Boca (aqui em foto interna de 1983) foi a "segunda melhor casa noturna" da Capital

Com trajetória iniciada na Cidade Baixa e fixada no Centro Histórico, a Água na Boca (aqui em foto interna de 1983) foi a "segunda melhor casa noturna" da Capital


ACERVO LUIS FROTA/DIVULGAÇÃO/JC
Em um antigo sobrado marrom na rua José do Patrocínio nº 527, entre a Rua da República e Luiz Afonso, uma boate marcou época de 1975 a 1979: Makumba, direcionada a casais e cujo nome destoava tanto de sua música internacional - via som mecânico - quanto da programação oferecida pela maioria da concorrência em uma Cidade Baixa de palcos e vitrolas então dominados pelo samba e outros ritmos da velha guarda. Eram donos a modelo Ilka Prestes e o empresário Roberto Biscarra (um dos fundadores da L'acadoro, na João Pessoa), tendo o DJ Claudinho Pereira como sócio minoritário.
"O negócio estava sendo esquematizado quando me chamaram a participar", relembra Claudinho, 75 anos e autor de Na Ponta da Agulha (Editora da Cidade/2012), melhor livro já publicado sobre a noite porto-alegrense. "A gente se apertou dentro de um Kharmann Guia até o Rio de Janeiro para comprar discos! E o lance bombou durante um bom tempo, até ser fechado por causa do divórcio dos proprietários. Saí de mãos abanando mas valeu a experiência, que só repeti com a Maria Fumaça (1981-1984), em parceria com um cunhado, no mesmo endereço."
Livre para novas aventuras, o imóvel entrou na mira de Pedro Mello, um engenheiro metalúrgico nascido em Santana do Livramento (Fronteira-Oeste) e de rotina dividida entre atividades de professor na Escola Técnica Parobé e promoter de festas (inclusive na Makumba), talento despertado quando estudante da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs). Decidido a montar a sua própria casa noturna, ele chamou para parceiro o amigo Victor Hugo Tito, uruguaio de Rivera - um quase conterrâneo, portanto - e que havia feito de tudo na vida. Exceto gerenciar boates.
"Cheguei a Porto Alegre em 1974, gravando audiovisuais em formato super-8 para campanhas políticas, escolas e eventos, o que acabou me aproximando do Pedro, quase seis anos mais novo que eu e que eu não conhecia lá em nossa região", conta Tito, 73 anos e que atua como operador de investimentos em sua cidade natal, para onde retornou definitivamente em 2008. "Como eu circulava pela noite e já havia administrado um bar no balneário de Areias Brancas (Rosário do Sul), ele me convidou para a jogada. Alugamos o ponto na Patrocínio e demos pé-quente desde o início."
Para o nome, a dupla queria algo atraente, apetitoso. E foi com esse espírito que Tito se inspirou no primeiro verso da balada sensual Mania de Você, lançada pela paulista Rita Lee em maio de 1979 e que seguia entre as mais tocadas nas rádios FM de todo o País ("Meu bem, você me dá... água na boca"). Providenciadas uma série de ajustes no recinto, em 8 de setembro daquele ano era inaugurado um charmoso mix de bar, restaurante, espaço cultural e, principalmente, boate: Água na Boca. A repercussão foi imediata e sob o holofote contínuo de notas e reportagens na imprensa.
"Funcionando a partir das 20h, a casa mais badalada da cidade tem música brasileira classe A, embalos importados e mil promoções, com um toque de elegância informal", resumiu o jornalista Ayres Cerutti em seu guia mensal Programa, acrescentando detalhes como eventos culturais e projeções de slides. Bastaria menos de um ano para que tornar imperativa a busca por novas instalações, capazes de comportar um movimento crescente, chancelado pela nata do colunismo social que ali se esbaldava ao som dos discotecários Cesar "Alemão" Klinkovski e Paulinho Savoya.
 

Rumo ao Centro

Com trajetória iniciada na Cidade Baixa e fixada 
na Praça Conde, a boate Água na Boca foi uma das mais concorridas da capital gaúcha de 1979 a 1987

Com trajetória iniciada na Cidade Baixa e fixada na Praça Conde, a boate Água na Boca foi uma das mais concorridas da capital gaúcha de 1979 a 1987


ACERVO MARCELLO CAMPOS/REPRODUÇÃO/JC
Tubo-de-ensaio para investimentos que fariam de Pedro Mello um dos mais arrojados empreendedores do ramo na cidade, a experiência na rua José do Patrocínio chegou ao fim em outubro de 1980. Já circulava a informação de que o Pub - Public House, no palacete nº55 da Praça Conde de Porto Alegre e primeiro bar em estilo londrino da Capital, recebera um ponto final após dois anos, devido à separação dos proprietários, donos de um cursinho pré-vestibular. Foi a deixa para que a saga ganhasse um novo e promissor capítulo. Sem Victor Hugo Tito.
O uruguaio havia desembarcado da sociedade antes mesmo da mudança, seduzido pelo convite para assumir em Tramandaí a danceteria Viver a Vida, primeiro de seus dez investimentos em negócios similares no Interior e Litoral Norte gaúcho pelas décadas seguintes. Detalhe: como o suspeito sempre volta à cena do crime, ele ainda comandaria a fase final da Maria Fumaça, na mesma casa da Cidade Baixa onde tudo havia começado. "No início dos anos 2000, encerrei sem coroa alguma a minha trajetória de rei da noite", minimiza.
Restara a Pedro encontrar novo comparsa para o desafio de instalar na futura sede, já alugada, um night-club que fizesse frente ao que havia de melhor em um contexto onde não faltavam opções de entretenimento noturno para todos os gostos e bolsos. Com seu olho clínico, vislumbrou no amigo Rui Willig, seis anos mais jovem, o perfil ideal. "Eu tinha só 19, já trabalhava na contabilidade da Caixa Estadual e era sócio de um loja de calçados no bairro Bom Fim quando ele, nosso cliente, me convidou a assumir a administração da nova empreitada", rememora o hoje consultor financeiro.
Em menos de dois meses, uma reforma transformou o já estiloso endereço em algo ainda mais sofisticado, com a assinatura de qualidade do designer de interiores Paulo Zoppas, um dos mais requisitados para projetos desse tipo. Diferente do Pub, com fachada preta com janelas vermelhas e ocupação dos dois andares superiores, o novo desenho apostou em exterior branco com elementos dourados e o uso do subsolo (quase ao nível da rua) como casa noturna, tendo acima restaurante, escritório e depósito. Curiosidade: como vizinhos de rua, uma funerária e a quitanda do jovem goiano chamado Sebastião Melo, futuro prefeito da cidade.
"O orçamento não permitia grandes pretensões, então o foco foi mesmo a boate", explica Zoppas. "Com metragem reduzida e irregularidades arquitetônicas, recorri à criatividade e elementos como espelhos em ângulos inclinados e luzes estratégicas, para um apelo sensual. Também defini um layout com bar próximo à entrada - por uma porta secundária, à direita da principal - e as primeiras mesas posicionadas de tal forma que, para alcançar banheiros e pista de dança, passava-se por um 'corredor-polonês' onde tudo era possível, além de espaços menores convertidos em camarotes."
De sorrisos sublinhados por gravatas-borboleta, Mello e Willig finalmente cortaram a fita em uma vibrante noite de 2 de dezembro de 1980, terça-feira. A alquimia entre amor pela atividade e profissionalismo na gestão de um negócio preparado para funcionar sem pausa (só tempos depois o sistema seria reduzido para terça a sábado) capturou de imediato o público de classe AB na faixa de 20 a 30 anos, abraçando igualmente os mais veteranos. Ninguém de tênis, item permitido apenas aos jogadores, que faziam um "terceiro tempo" na Água na Boca. Sobretudo os do Grêmio.
O atacante Renato Portaluppi e outras figuras do mundial tricolor de 1983 protagonizaram baladas homéricas, deixando um rastro de peripécias para o anedotário boêmio da cidade – impublicáveis, a pedido dos entrevistados. Em caminho inverso, a cúpula da casa ia até o Estádio Olímpico (sede do clube até 2012), onde um camarote próprio tinha metade de seus 20 lugares ocupados por modelos e outras divas, para delírio da torcida. “Também formamos um time ‘Água na Boca’ para jogos semanais contra profissionais de comunicação, artes e eventos”, orgulha-se Willig.

Uma reputação marcante

Jogadores do Grêmio, como Renato Portaluppi (direita), eram assíduos na casa

Jogadores do Grêmio, como Renato Portaluppi (direita), eram assíduos na casa


ACERVO RUI WILLIG/REPRODUÇÃO/JC
A segunda melhor casa noturna da história de Porto Alegre deve muito dessa reputação a outros dois times: famosos e beldades. No primeiro, atrações contratadas para shows, como o humorista carioca Jô Soares e o cantor espanhol Manolo Otero (1942-2011), bem como celebridades em temporada na capital gaúcha e que apareciam para noitadas, em uma lista que inclui de galãs de novelas da Globo a músicos internacionais como o também espanhol Julio Iglesias ou o britânico Peter Frampton. Muitos desses forasteiros, aliás, abordados com convite já ao pisarem no aeroporto.
Já no segundo grupo estavam algumas das mulheres mais atraentes da época, propícia à liberação feminina (a lei do divórcio, por exemplo, havia sido aprovada no final de 1977). Ícones culturais, artistas das mais variadas frentes, misses, capas da revista, colunistas e colunáveis compareciam sozinhas ou em grupos, donas de si, várias chegando mais cedo, com mesa reservada e estacionando seus próprios carros, um avanço e tanto em meio a um ambiente cuja liberalidade não se mostrava suficiente para impedir a reprodução de padrões machistas de comportamento.
“Isso sem contar as moças que cruzaram a porta não por diversão e sim para uma ‘incerta’ em possíveis escapadas noturnas de namorados, noivos e maridos”, acrescenta Rui Willig, observando que o porão da Praça Conde resultou em casamentos mas também em brigas antológicas, risco constante e que exigia atenção redobrada por parte dos seguranças. Ele menciona o caso do esposo flagrado com a amante em uma das mesas pela titular, enfurecida e aos gritos: “Que maravilha, hein? Com essa aí é champanhe importado e comigo é só bebida nacional!”
 

Mulheres, inclusive desacompanhadas, se sentiam à vontade na boate

Mulheres, inclusive desacompanhadas, se sentiam à vontade na boate


ACERVO RUI WILLIG/REPRODUÇÃO/JC
A ex-atriz e modelo gaúcha Jane Pereira, 63 anos, reúne predicados de beleza e inteligência que a colocam na lista das grandes musas do lugar. Miss Rio Grande do Sul (ainda adolescente) pelo Petrópole Tênis Clube em 1975, no início da década seguinte ela tinha dois filhos e um casamento desfeito em Brasília quando voltou a morar em Porto Alegre, ganhando a vida com desfiles para a estilista Milka Wolff e outros trabalhos de manequim. Suas memórias remetem a um período bacana, em que a boate de Pedro e Rui proporcionou descobertas, reencontros e muita diversão.

"Pedro e Rui eram anfitriões maravilhosos e o clima perfeito para as mulheres se sentirem à vontade, inclusive desacompanhadas", elogia Jane, radicada no Rio de Janeiro após longos períodos na França e Uruguai. "Embora eu também curtisse o Encouraçado Butikin, a liberdade de cruzar sozinha a porta da Água na Boca era incrível, por mais que rolasse uma 'caçada' implacável com tantos 'predadores' masculinos. Cheguei a organizar algumas festas à fantasia, como 'Noite das Bruxas' e 'Orgia Romana', com grande sucesso e a presença de amigos de outros Estados."

O casarão também foi lugar de passagens hilárias. Como na madrugada em que bastaram poucos minutos de blecaute para se evaporar uma turma inteira de clientes, deixando para trás uma conta astronômica. Ou a ocasião em que a boate teve filial temporária no Hotel Laje de Pedra durante o Festival de Cinema de Gramado: uma jovem senhora conversou por horas com o homem que achara parecido com Clodovil Hernandes (1937-2009), indo embora sem desconfiar que seu interlocutor era o costureiro paulista em pessoa.

A manutenção do bom nome da casa contava com a ajuda de divulgadores como Sidimar "Azul Marinho" Castilhos (1959-2011) e Eduardo Bins Ely (1959-2021), além de figuras constantes como o comunicador Francisco "Xicão" Tofani, 69 anos e cujo início da carreira televisiva está intimamente ligado ao palacete. "Fui ali o primeiro cara no papel do 'promoter-sponsor', aquele que agita eventos para um estabelecimento parceiro e recebe os convidados na porta", valoriza Xicão, profundo conhecedor do assunto e que continua nas telas gaúchas desde 1983.

“Mesmo não figurando entre as opções mais baratas naqueles tempos, a Água na Boca ajudou a democratizar a noite elegante em Porto Alegre, com perfil menos high-society que o Encouraçado Butikin e uma mídia que não se resumia às colunas sociais”, compara. “O calendário era constantemente movimentado por festas temáticas, concursos de beleza, parcerias com grifes esportivas e de moda, esse tipo de gancho que dava aos frequentadores a certeza de que topariam com gente bonita e famosa, incluindo personalidades que eles só conheciam através da TV.”

"Nosso sucesso envolve observação e atualização constantes, com uma equipe que pega junto", declarou Pedro em 1983. Tal fórmula incluía o DJ Luís Frota, no comando da cabine de som desde o primeiro dia até a fase final de operações do palacete. "Rolava Frank Sinatra, trilhas sonoras etc, depois a pista esquentava lá pelas 22h com faixas mais modernas, fazendo as pessoas consumirem sentadas e se divertirem de pé", brinca o produtor de eventos, aos 61 anos. "Só não tinha rock e, mesmo assim, faturei um bom dinheiro com fitas-cassete gravadas dos discos da boate."

Relíquia de tempos dourados do Água na Boca, cartão privê concedia benefícios a clientes seletos

Relíquia de tempos dourados do Água na Boca, cartão privê concedia benefícios a clientes seletos


Reportagem cultural Viver - Água na Boca - Interior da boate em 1983
Dentre outros itens acondicionados em um depósito na Zona Norte de Porto Alegre, Frota guarda fotos, folders e uma relíquia: um exemplar do disputado cartão privê que atribuía ao portador benefícios como isenção da consumação mínima, preferência na reserva de mesas e desconto de 10% no restaurante, instalado no piso superior e com acesso por uma longa escada de madeira a partir da entrada central. A peça vip chegou a mil unidades distribuídas, feito repercutido com outdoors espalhados pela cidade no final de 1983, sob o slogan “Um presente de classe”.

Esses e outros diferenciais se refletiam em uma lotação de tal forma esgotada que houve quintas e sábados em que ninguém mais conseguia entrar após as 23h, nem com o passe-livre no bolso. Não raro, em uma só noite até 300 pessoas faziam do casarão número 55 o seu espaço preferido para conversa, dança, beijos e pileques, algumas saindo dali já sob os primeiros raios de sol. E assim a roda girou por seis longos anos, até fechar o ciclo menos de três meses após Rui optar pelo desembarque amigável da sociedade, em 26 de setembro de 1986. Pela porta da frente.

“A vida noturna é mágica, porém cobra um preço alto, porque junto ao glamour rola a incomodação”, argumenta. “Eu vinha me dedicando a isso desde meus 19 anos, além de montar outra loja de sapatos, abrir agência de publicidade e ingressar no mercado financeiro. Então chegou um momento em que decidi fechar esse primeiro ciclo, ao qual sou muito grato, até por permitir que alguém tão jovem como eu construísse uma ampla rede de contatos pessoais e profissionais até hoje valiosos, lidando sem deslumbramento com o fato de ser quase uma celebridade local.”

Novos inquilinos

Em 1995, palacete foi usado como comitê eleitoral; após anos em desuso, espaço se encontra atualmente em estado precário

Em 1995, palacete foi usado como comitê eleitoral; após anos em desuso, espaço se encontra atualmente em estado precário


montagem sobre fotos de ACERVO EPAHC/REPRODUÇÃO/JC e MARCELLO CAMPOS/ESPECIAL/JC
Sozinho pela primeira vez no comando de uma boate, em fevereiro de 1987 Pedro Mello anunciou planos para dar novo fôlego ao negócio, com decoração remodelada e outras novidades após uma sequência de seis festas carnavalescas. Mas a prometida reabertura no final de março não se concretizou (por motivos que já não se sabe ao certo) e o endereço ficaria desativado por mais de um ano até abrigar o piano-bar Pyazzola (1987-1988), em parceria empresarial com o então já consolidado rei da noite Dudu Alvarez, do “adversário” Encouraçado Butikin.
Junto com Dirnei Messias, outro gênio do ramo, a dupla também seria responsável pela boate Life Boy & Cia. (1989-1990) no mesmo ponto, depois utilizado pelas casas noturnas Chiclete & Banana (1990-1991) e Nexus 6 (1992-1994), antes de virar comitê político-partidário e finalmente ser desocupado em 1995. Hoje o palacete centenário se encontra quase em ruínas, apesar de inventariado pela Equipe do Patrimônio Histórico e Cultural (Epahc) da prefeitura – status que impede a demolição e condiciona quaisquer obras ou alterações no imóvel ao crivo de especialistas.
Já a sede inaugural na Cidade Baixa não escapou dos tratores e escavadeiras, derrubada em abril de 2022 por um dos projetos imobiliários que avançam sobre o bairro. O sobrado erguido em 1932 na José do Patrocínio teve assim interrompida uma linha noturna deflagrada pela Makumba (1975-1979), Água na Boca (1979-1980) e Maria Fumaça (1981-1984), prosseguindo com a trupe teatral Terreira da Tribo (1984-1999) e os estabelecimentos Flash (1991), Vivo Pra Isso (1997-1999), Groove (2001-2003) e Apolinário (2006-2022), bar cujo dono negociou casa e terreno mediante contrato prevendo novas instalações no mesmo local, em futuro próximo.
 
Enquanto isso, Pedro Mello aprofundou seus vínculos ao segmento, com casas noturnas que não repetiram o êxito e longevidade da Água na Boca mas nem por isso deixaram de obter merecido destaque. À já citada Life Boy seguiram-se Bunker (1992), Tucano Café (1993), Press (1994-1995), Malibu (1996-1999) e Venezza (1999-2000), dentre outros, a maioria no entorno do bairro Moinhos de Vento e em consórcio com parceiros mais jovens – alguns apostando na presença do empresário como uma espécie de selo de qualidade capaz de “esquentar” o movimento.
 
O imenso know-how e uma larga rede de contatos sociais o levaram, nos anos 2000, a trocar naturalmente a atividade de empresário pela de consultor no segmento de cafés, restaurantes e, por óbvio, boates, fazendo das mesas da rua Padre Chagas o seu escritório. Caso raro de unanimidade positiva na Porto Alegre que o acolhera na juventude e onde não demorou a figurar entre seus personagens mais queridos, ele é definido de forma emocionada pela amiga e ex-sócia Rima Ruwwari como “um gentleman que primava pela discrição e sempre tinha algo bom a dizer”.

Despedida festiva

Casarão que abrigou primeiros anos do Água na Boca, na Cidade Baixa, foi derrubado em abril deste ano

Casarão que abrigou primeiros anos do Água na Boca, na Cidade Baixa, foi derrubado em abril deste ano


ACERVO MARCELLO CAMPOS/REPRODUÇÃO/JC
Solteiro convicto e esbanjando juventude em seus pouco mais de 61 anos, Pedro Mello cuidava da própria saúde como poucos de sua geração. Salvo por eventuais compromissos noturnos, duas taças diárias de espumante (hábito adquirido somente depois dos 40) e charutos esporádicos, mantinha desde a aposentadoria como empreendedor uma rotina de sono equilibrado, caminhadas matinais, exercícios físicos, alimentação sem exageros e outras práticas recomendáveis, das quais uma certamente não fazia parte, conforme relatos de fontes próximas: a visita a um médico.
A cidade estava vazia na manhã do primeiro dia de 2016, uma sexta-feira, quando ele deixou sua cobertura na rua Lagoinha para mais uma de suas marchas pelo bairro Petrópolis, sob uma temperatura em torno de 22°C. Avançou cerca de 100 passos e caiu em plena calçada, consciente mas com a cabeça sangrando pelo choque contra um portão de ferro. Com a ajuda de vizinhos que tentaram - em vão - convencê-lo a chamar uma ambulância, conseguiu telefonar para um amigo com quem estivera no réveillon promovido por hotel na Bela Vista. E se deitou.
Quando o parceiro de festa chegou ao apartamento, encontrou Mello já em estado bastante grave. Uma equipe médica finalmente prestou os primeiros socorros e preparou a remoção, no entanto o óbito foi constatado já no saguão do prédio - o laudo apontaria como causa da morte um acidente vascular-cerebral (AVC). "É bem provável que esse derrame tenha começado já na véspera, porque o aspecto do Pedrinho parece estranho nas fotos da virada do ano", detalha Rima, que recebeu a notícia justamente quando já o aguardava para o feriadão na casa da família no Litoral Norte.
Coube a ela atender ao desejo de uma despedida festiva, manifestado certa vez pelo então empresário. Em evento raramente visto em Porto Alegre, o velório teve capela com andar inteiro alugado no Cemitério São Miguel e Almas, imagens projetadas em telão, garçons servindo espumante e até discotecagem com Claudinho Pereira. Cerca de 50 pessoas dentre as centenas ali presentes voltariam a se reunir, dias depois, para cumprir outra vontade do amigo: ter suas cinzas depositadas ao pé de uma figueira no Parcão. Até hoje, há quem passe pela árvore para dar um "oi".
A Câmara de Vereadores também fez sua parte, aprovando um projeto de Idenir Cecchin (MDB) – atual presidente da Casa – para instalação de um busto a Pedro Mello, “homem de palavras e gestos doces, realizador e sempre disposto a aconselhar as pessoas”. Definido o espaço público para a homenagem (a pracinha junto ao ponto de táxi do encontro da Padre Chagas com Olavo Barreto Viana, na calçada oposta ao Hotel Sheraton), uma campanha de arrecadação não obteve valor suficiente para bancar a obra. De qualquer forma, nunca é tarde para uma nova tentativa.

 
* Marcello Campos, 49 anos, é formado em Jornalismo, Publicidade & Propaganda (ambas pela Pucrs) e Artes Plásticas (Ufrgs). Tem seis livros publicados, incluindo as biografias de Lupicínio Rodrigues, do Conjunto Melódico Norberto Baldauf e do garçom-advogado Dinarte Valentini (Bar do Beto). Há mais de uma década, dedica-se ao resgate de fatos, lugares e personagens porto-alegrenses.