Relembrar e investigar o passado pode ser uma tarefa difícil, tanto em relação ao emocional quanto à real dificuldade de encontrar números de telefone, nomes e endereços dos parentes distantes. A artista visual Milene Gensas vivencia esses obstáculos durante sua investigação e procura por familiares que não migraram da Polônia nos anos 1930 como seu avô materno, que fez morada em Porto Alegre. É nessas horas que a imaginação toma conta do pensamento da artista, fotógrafa e arquiteta, que usa a tecnologia como alternativa para criar a realidade desconhecida sobre seus antepassados.
Essa união de imaginação e catalogação já está disponível na Sala Branca da Gravura Galeria (rua Corte Real, 647), com visitação aberta até o dia 1º de novembro, de segundas a sextas-feiras, das 9h30min às 18h30min, e aos sábados, das 9h30min às 13h30min, de forma gratuita. A exposição que tem curadoria de Maria Helena Bernardes foi batizada como Lacunas Ancestrais. Nela, o visitante encontrará fotos da família de Milene, imagens criadas por Inteligência Artificial, objetos e lembranças de uma história em que o fim ainda é desconhecido.
A pesquisa pela história daqueles que viveram antes de sua geração se deu por conta das redes sociais, a partir da busca pelo sobrenome em comum. Entre as diversas tentativas de contato, a arquiteta reuniu fotos, documentos e cartas guardadas por sua família e iniciou sua investigação sobre os irmãos de Aron, o avô materno que migrou sozinho para o Brasil e deixou seus pais, irmãos e amigos em uma Polônia prestes a ser invadida pelas forças alemãs.
"No início do século XX, após a vinda do meu avô para o Brasil, a comunicação entre ele e parte de sua família que permaneceu lá foi tornando-se cada vez mais difícil até que, em dado momento, durante a Segunda Guerra, cessou, e os familiares que permaneceram na Polônia ficaram inacessíveis, sem deixar rastros dos seus destinos".
Nas paredes da Galeria, os diversos materiais e métodos de observação se mesclam à real história, seja pela grande carta impressa em tecido, o áudio feito por Milena contextualizando a história de sua família, o texto de abertura da exposição, as fotos ou a mala que seu avô trouxe com seus pertences. A imaginação se une à realidade e torna tudo ainda mais rico dentro da mente do visitante, que procura desvendar o mistério e encontrar a resposta do que aconteceu com os familiares de Milene.
A curiosidade que é construída a cada imagem vista pelo visitante permeia a mente da artista há muitos anos. "Sempre que eu vou em algum museu relacionado ao holocausto eu procuro o nome deles, para ver se eu acho alguma prova de que eles viveram ou que morreram. Mas não tem. É como se as pessoas não tivessem existido". Com essa falta de dados, não é incomum fantasiar sobre o que poderia ter acontecido. "Será mesmo que elas não estão vivas?".
Foi pensando nessa falsa esperança que Milene, através do uso de IA e programas de edição, cria uma realidade paralela onde seu avô nunca deixou o país de origem e cresceu ao lado de sua família, ou até mesmo uma outra em que a realidade e a ficção se mesclam entre fotografias, relatos e indagações. As lacunas aos poucos se preenchem por histórias, mesmo que não correspondam ao que realmente aconteceu na década de 1930. Porém, isso pode estar perto de mudar.
Em uma visita à casa de sua avó Milka, Milene conta que encontrou um bolo de cartas trocadas entre seu avô e familiares que viviam na Polônia. Ao traduzir algumas delas, descobriu que Aron embarcou no navio Neptúnia, que saiu do porto de Trieste no dia 20 de fevereiro de 1937 com o Brasil como destino final, dormindo na cabine 524, leito A. Ela também descobre que seu irmão lhe presenteou com uma mala, a exposta na galeria, guardada com tanto carinho pelo avô. A fotógrafa conta que preferiu deixar essa incógnita criar morada em sua cabeça por enquanto, mantendo a verdade escondida sob as dobras dos papéis. "Muito mais do que descobrir o que realmente aconteceu com eles, o que eu quero é que a história, seus nomes e rostos não se apaguem".
Sua intenção com os visitantes é de "dar voz a todos os imigrantes, que por alguma maneira tiveram de sair de suas casas, abandonar suas vidas. E não só imigrantes, mas qualquer pessoa que abandonou sua antiga vida por algum motivo". O momento, por mais triste que pareça ao imaginar os piores cenários, para a artista, é de celebração. "A hora é de agradecer e celebrar a vida, pois se a história não tivesse sido assim eu nem estaria aqui para mostrá-la."