Com raízes no interior do Rio Grande do Sul, Indiara de Sousa carrega a força do território e o impulso da urgência. Atualmente vive em São Paulo, onde fundou o Instituto Justiça ao lado do marido, Luiz Felipe Dias de Sousa, Indiara atua na linha de frente de projetos sociais desde 2020. Mas foi diante das enchentes históricas de maio de 2024, que devastaram o Sul do Brasil, que ela encontrou a dimensão exata do verbo agir. Em poucas semanas, coordenou uma das maiores mobilizações humanitárias espontâneas do estado, articulando centros de distribuição, voluntários e toneladas de doações com um foco claro: fazer a ajuda chegar a quem realmente precisa.
"Meu telefone não parava de tocar. Eu dormia dentro de um hangar. Foram mais de 100 caminhões e duas mil toneladas de donativos distribuídos com apoio de mais de 500 voluntários", conta Indiara. A ação, batizada de BAH - Baita Ajuda Humanitária, surgiu da ausência de planejamento logístico do poder público frente à catástrofe. "Não adiantava encher São Paulo de doações se ninguém sabia quais estradas estavam acessíveis no Rio Grande do Sul."
A partir dessa experiência, o Instituto Justiça direcionou seus esforços para territórios de difícil acesso e comunidades invisibilizadas. Por meio de uma rede de apoio local, como jipeiros, congregações religiosas e lideranças comunitárias, o projeto alcançou 19% dos municípios afetados, abrangendo 78% da população impactada. "Começamos com a ajuda emergencial e depois partimos para a reconstrução", explica Indiara.
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Uma das voluntárias, Carla Casagrande, moradora do Vale do Taquari, foi fundamental nesse processo. Ao identificar que a fase crítica das doações havia passado, ela alertou Indiara para a nova urgência: fazer com que as famílias pudessem voltar para casa. "Com a ajuda dela, mapeamos mais de 600 famílias e adotamos 530, priorizando aquelas com idosos, pessoas com deficiência e baixa renda", relata. Fogões, geladeiras, armários e outros itens básicos foram entregues graças a uma campanha que arrecadou cerca de R$700 mil, com apoio de pessoas físicas e financiamento coletivo.
Mas o trabalho não parou na reconstrução. Ao perceber o acúmulo de roupas inutilizáveis nos centros de doação — muitas delas danificadas, sujas ou inadequadas —, surgiu o Recria-se, projeto socioambiental que une capacitação feminina, economia circular e geração de renda. Roupas que iriam para o lixo são agora recicladas, transformadas em fio têxtil e convertidas em novos produtos, como ecobags e estojos.
Desde outubro de 2024, 64 mulheres de seis comunidades gaúchas já foram capacitadas no projeto. Além do impacto humano, o projeto também abre portas para o diálogo ambiental com empresas e consumidores. "Esses produtos têm um ciclo virtuoso: evitam descarte incorreto, geram renda local e promovem o protagonismo feminino. As empresas podem comprar por quilo e recebem kits costurados pelas próprias mulheres", explica Indiara.
O Instituto também se prepara para lançar o Regenera Raízes, um projeto de reflorestamento previsto para agosto deste ano na região de Santa Maria. Serão 30 mil árvores plantadas em formato de agroflorestas — com recuperação ambiental, produção de alimentos e capacitação de pequenos produtores.
Histórias de mulheres que renascem com o Recria-se
Ciclo Reverso é parceira na realização do projeto Recria-se
BRENO BAUER/JCElas costuram com as mãos, mas também com a força de quem reergueu a própria vida. São mães, imigrantes, mulheres que perderam suas casas e seu sustento nas enchentes de 2024 e encontraram no projeto Recrie-se em parceria com a Ciclo Reverso, uma forma de reconstruir o lar, a autoestima e o futuro.
Entre as mulheres que encontraram no trabalho uma nova chance está Maria Alexandra Billa, jovem colombiana de 19 anos que chegou ao Brasil em busca de refúgio. Ao enfrentar o desafio de recomeçar em outro país, ela foi acolhida pelo projeto e encontrou ali mais do que trabalho: encontrou pertencimento. Filha de refugiados, colega da filha de uma das coordenadoras do projeto, Maria já sabia costurar e ficou empolgada com o convite.
Para ela, o projeto representa também um espaço de acolhimento, onde ela se sente segura entre mulheres. Sua história, marcada por deslocamento e coragem, tornou-se símbolo da força que atravessa fronteiras em processos de reconstrução.
Bianca das Neves é outra das mulheres cuja vida foi transformada pelo Recrie-se. Antes de chegar ao projeto, vivia em situação de extrema vulnerabilidade. A insegurança financeira e a ausência de oportunidades marcavam sua rotina. "Antes, eu só sobrevivia. Hoje, eu vivo com dignidade. Foi aqui que eu aprendi que o meu trabalho tem valor", diz Bianca
Educadora social e costureira de longa data, Maria Regina de Moura carrega no olhar a força de quem aprendeu a transformar adversidades em criação. Mãe de uma filha com deficiência, ela encontrou na costura uma forma de sustento. Desde os tempos em que reaproveitava sobras de confecção para fazer casacos e tapetes — muito antes de o termo "sustentabilidade" se tornar tendência —, Regina já entendia o valor de dar nova vida ao que seria descartado. "Pra mim, é a coisa mais incrível: uma roupa que seria jogada fora virar algo útil, bonito e cheio de significado." Declara.
Para ela, participar de um projeto que une sustentabilidade, renda e reconstrução é, sobretudo, um ato de fé. "A palavra que resume tudo isso é esperança. Porque a gente acredita. E quando as pessoas valorizam esse trabalho, a gente tem certeza que tem jeito, sim."
Lisiane Linhares é uma das idealizadoras do projeto e atua na coordenação da Ciclo Reverso, organização que há anos trabalha com reaproveitamento de resíduos. Mesmo durante sua licença-maternidade, seguiu envolvida com o Recrie-se "Eu vinha com o barrigão, sentava aqui e conversava com elas. Não tem como se desligar quando a gente vê o impacto desse trabalho na vida das pessoas. O projeto também me transformou", conta.
O projeto Recrie-se nasceu da urgência: havia roupas e tecidos sem destino após a tragédia. A idealização foi de Liliane Linhares, cofundadora da Ciclo, em parceria com o Instituto Justiça. A proposta era dupla: evitar o descarte e gerar trabalho digno para mulheres afetadas. Em poucos meses, novos grupos de costura surgiram no Morro da Cruz, Bom Jesus, Tuca, Morro da Polícia e até em Guaíba, uma das cidades mais atingidas.
Ao todo, 64 mulheres foram capacitadas no projeto. Algumas atuam na sede da Ciclo Reverso, outras em casa ou em polos comunitários. A Arco Resíduos, empresa de gestão de resíduos que também sofreu com a enchente, cedeu espaço para triagem e armazenamento. As bolsas produzidas com tecidos reaproveitados e banners publicitários carregam em cada ponto uma história de resistência.
Para Lisiane, o Recrie-se nasceu de uma escuta atenta às mulheres atingidas pelas enchentes, e cresceu com base na colaboração, afeto e urgência de reconstrução. "A Ciclo sempre teve impacto ambiental, mas o maior impacto é o social. É ver essas mulheres retomando suas vidas com dignidade e propósito." Conclui.