O Brasil voltou ao Mapa da Fome em 2022, segundo dados da ONU. Estima-se que mais de 20 milhões de brasileiros enfrentam a fome, enquanto quase 60% da população vive com algum grau de insegurança alimentar. Esse quadro foi agravado por eventos climáticos extremos, como as enchentes que atingiram o Rio Grande do Sul em maio de 2024, deixando milhares de pessoas desabrigadas e sem acesso a alimentos básicos.
Na ausência de uma resposta eficaz do poder público, movimentos sociais intensificaram ações emergenciais para garantir o mínimo de dignidade às comunidades afetadas. Foi nesse contexto que o Levante Popular da Juventude do Rio Grande do Sul se mobilizou para instalar, em tempo recorde, uma cozinha solidária na Vila Barracão, localizada na Vila Cruzeiro, em Porto Alegre.
A iniciativa teve início como uma ação simbólica no dia 1º de maio de 2024 para distribuição de marmitas em celebração ao Dia do Trabalhador. No entanto, apenas dois dias depois, as fortes chuvas atingiram Porto Alegre com intensidade, deixando a cidade submersa em um cenário de colapso social e emergência humanitária. A partir dali, a cozinha solidária iniciou suas atividades emergenciais na sede da Associação de Moradores da Vila Barracão.
Após o recuo das águas, a cozinha permaneceu em funcionamento de forma permanente, garantindo refeições diárias para comunidades vizinhas. A iniciativa integra uma rede mais ampla de cozinhas solidárias espalhadas pelo estado, são elas:
- Cozinha Solidária da Juventude – Vila Barracão, Porto Alegre
- Cozinha Comunitária Nossa Senhora Aparecida da Tia Bete – Bom Jesus, POA
- Cozinha Comunitária da Tia Lúcia – Mário Quintana, POA
- Cozinha Solidária da Cecília – Viamão
- Sozinha solidária Compartilhando Sabores - Vila Jardim - POA
- Cozinha solidária Dom Ivo - Santa Maria
A organização garante todas as etapas: da produção à entrega das refeições. No início, cerca de 30 voluntários se revezavam por turno, preparando, em média, 1.300 refeições por dia. Os alimentos vinham de doações via Pix e de cestas agroecológicas fornecidas pelo MST. Atualmente, 12 cozinheiras mantêm o trabalho voluntário, comparecendo ao menos uma vez por semana.
"Durante a enchente, erguemos gazebos emprestados, improvisamos lonas, quebramos paredes para a água escoar enquanto as panelas ferviam. Resolvemos tudo coletivamente", relembra Mariana Dambroz, militante do Levante Popular da Juventude.
Rodrigo Mendes, também integrante do movimento, recorda um dos momentos mais marcantes: "Decidimos preparar mil galetos em um único turno. Foi corrido, mas o território abraçou a ideia. Os vizinhos vieram, cozinharam juntos, garantiram a entrega. Ali, deixamos de ser vistos como estranhos. Viramos parte. E hoje, somos."
Mais do que um ponto de distribuição de marmitas, a Cozinha Solidária da Juventude tornou-se um espaço de articulação política, convivência e construção comunitária. No dia 10 de maio de 2025, celebrou seu primeiro aniversário com samba, feijoada e memória viva da solidariedade.
"O Levante é isso: juventude que cozinha, samba, organiza, sonha e constrói", define Mariana.
As cozinhas solidárias vêm se multiplicando pelo país como resposta concreta à fome nas periferias urbanas e nas regiões mais vulnerabilizadas. Organizadas por movimentos sociais e moradores das próprias comunidades, essas iniciativas têm se tornado símbolo de resistência diante da escalada da insegurança alimentar e da ausência de políticas públicas eficazes.
O princípio é simples, mas transformador: comida de verdade, feita com afeto, sem cobrança, em espaços coletivos sustentados pela solidariedade.
Há um ano, enquanto a água invadia casas e paralisava a cidade, os fornos da cozinha solidária seguiam acesos. Cada marmita entregue carrega mais do que alimento: leva a força de uma rede que constrói cuidado em meio ao caos.
Educação popular como caminho para autonomia nas periferias
Celebração de 1 ano da Cozinha Solidária da Vila Barracão
Gabrieli Silva/JCA atuação do Levante Popular da Juventude vai muito além da distribuição de alimentos. Um dos pilares da organização é a construção da autonomia popular por meio da educação. É nesse contexto que surge a Jornada de Alfabetização "Sim, eu posso!", projeto inspirado na pedagogia de Paulo Freire e no método cubano de ensino desenvolvido pelo Instituto Pedagógico Latino-Americano e Caribenho (IPLAC), em Cuba, na década de 1990.
O método combina letras do alfabeto com números, facilitando a memorização e o aprendizado. No Brasil, ele é utilizado desde 2006 pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), como uma estratégia concreta para erradicar o analfabetismo. As aulas, ministradas com base em vídeo aulas contextualizadas, permitem que os educandos reconheçam, construam e escrevam palavras e frases.
"É um processo delicado porque muitas pessoas sentem vergonha por não saberem ler e escrever. Elas acham que não são capazes, que passou o tempo delas. Mas o método é pensado para acolher desde quem nunca segurou um lápis até quem está retomando o aprendizado." Relata Mariana Dambroz, uma das educadoras do curso.
As turmas de alfabetização estão sendo organizadas em diversas regiões de Porto Alegre: no Coletivo Olufé, no bairro Glória; na Associação de Mulheres Maria da Glória, no Morro da Cruz; e no Projeto Pedreira, que já está finalizando um ciclo no bairro Cristal.
"A gente entende que a fome também é de direitos, de acesso à cultura, à leitura, à consciência. Por isso, além da comida, queremos construir processos educativos nos territórios", explica Mariana.
- LEIA MAIS: Vakinha capacita mulheres para empreender e buscar a conquista da independência financeira
A Jornada "Sim, eu posso!" reafirma o compromisso com a educação popular como instrumento de emancipação e autonomia. Alfabetizar é, também, romper com o ciclo de exclusão, devolvendo a dignidade de um povo a partir da transformação social.