Nesta quinta-feira (3), Dia Nacional de Combate à Discriminação Racial, o Brasil enfrenta uma realidade alarmante: os casos de racismo registrados no País mais do que dobraram em um ano. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2024, foram 11,6 mil registros no território brasileiro em 2023, alta de 127% em relação ao ano anterior. Sozinho, o Rio Grande do Sul respondeu por 2.857 dessas ocorrências — o maior número absoluto do Brasil e a pior taxa proporcional, com 26,3 casos por 100 mil habitantes, quase cinco vezes a média nacional.
É nesse cenário que a professora Gláucia Vaz, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), tenta seguir em frente após ter sido vítima de um episódio explícito de racismo dentro da instituição. Em 2023, um aluno a atacou verbalmente, afirmando que ela "não sabia qual era o lugar dela" e que "continuaria sendo perseguida e odiada".
"Apesar de ter havido manifestações de apoio na época, os processos seguem em andamento. É um desgaste psicológico enorme, muito pesado emocionalmente. O sistema judiciário é lento, e a universidade falhou ao não se posicionar de forma firme" lamenta Gláucia.
Natural de Minas Gerais, a professora está há dois anos e meio no Estado, após ser aprovada em concurso para a Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação (Fabico). Militante da pauta racial há anos, ela conta que sua atuação acadêmica passou a incorporar cada vez mais o debate sobre racismo a partir das violências que enfrentou.
"Infelizmente, o ambiente acadêmico não é receptivo para professores negros, especialmente para professoras negras. Aqui no Sul, isso é ainda mais difícil. Vivi em Minas e posso comparar. Existe uma violência mais velada, mas muito forte, contra as pessoas negras no Rio Grande do Sul. A universidade só reproduz o que existe na sociedade", afirma.
O caso que sofreu dentro da Ufrgs exemplifica isso. Gláucia diz que só conseguiu voltar a dar aulas após a universidade passar a garantir sua segurança. Além disso, precisou de acompanhamento psiquiátrico e segue em terapia. Segundo ela, em momento algum a instituição ofereceu suporte psicológico ou institucional.
"Já se passaram dois anos e o descaso continua. Faltam protocolos efetivos para acolher vítimas de racismo. Eu mesma dei sugestões para um projeto de acolhimento, o que é um absurdo: a vítima ainda ter que pensar em medidas para se proteger", critica.
A pesquisadora Ieda Ramos, especialista na temática afro-brasileira e quilombola, aponta que o histórico social do Rio Grande do Sul ajuda a explicar os números elevados de racismo. Segundo ela, há no Estado a construção de um "mito da branquitude gaúcha" que invisibiliza a presença negra e alimenta a violência.
"Existe essa falsa ideia de que o RS é um Estado majoritariamente europeu, o que diminui e escanteia a população negra. É como se as pessoas negras fossem estrangeiras aqui, mesmo estando presentes há séculos, e tendo sido fundamentais na construção da história, como os Lanceiros Negros durante a Revolução Farroupilha", explica.
Esse apagamento, diz ela, alimenta a estrutura racista que se reflete em todos os espaços, especialmente nos cargos de poder e nas universidades. "Quando uma pessoa negra ocupa um espaço de decisão, como o de professora universitária, médico, delegado ou juiz, há um incômodo imediato. O racismo está tão enraizado que as pessoas se sentem no direito de questionar o conhecimento, desacreditar a capacidade e, em casos extremos, cometer agressões, como aconteceu com a professora Gláucia", diz.
Na avaliação da pesquisadora, as políticas de cotas são fundamentais para reverter esse cenário, ao ampliar o acesso da população negra à Educação e ao mercado de trabalho. Ela destaca ainda o papel da mídia na transformação cultural.
"Quando começamos a ver pessoas negras protagonizando histórias, sendo médicos, professores, empreendendo ou em papéis de liderança, mudamos o imaginário social. Esse processo é lento, mas necessário", conclui.
Dentro da Ufrgs, a professora Gláucia Vaz segue resistindo, mesmo diante das dificuldades. Ela reconhece o apoio de parte dos alunos e a mobilização que ocorreu após o episódio de racismo, mas reforça que a universidade ainda precisa avançar muito.
"Sinto um isolamento no ambiente institucional. Existe um pacto de branquitude que se manifesta nesses momentos. Mesmo sendo vítima, a gente é questionada, enquanto o agressor, muitas vezes, é protegido. Não é fácil ser professora negra dentro de uma instituição. Mas sigo, porque sei que sou uma referência para os alunos negros, e é ocupando esses espaços que a gente começa a mudar as coisas". O processo de racismo envolvendo a professora corre em sigilo de justiça, algo que "beneficia o infrator", na opinião de Gláucia.