Uma cidade que desapareceu do mapa. Nas enchentes de maio de 2024, Eldorado do Sul, na Região Metropolitana de Porto Alegre, foi uma das cidades mais afetadas pelas chuvas. No total, 80,8% dos domicílios de Eldorado foram impactados pela água, de acordo com o Mapa Único do Plano Rio Grande (MUP), do Governo do Estado. O Rio Jacuí subiu e invadiu a cidade, obrigando a população a deixar suas casas, pertences, negócios e sonhos para trás.
"Sempre quis morar em uma casinha com rio atrás", disse uma senhora com Alzheimer, durante os dias em que esteve abrigada na casa de Carla Carnevali Gomes, empreendedora à frente da Padaria e Panificadora Aparecida, localizada no Centro de Eldorado do Sul. A frase poderia soar como um sonho singelo, se não tivesse sido dita no meio da maior tragédia climática que a região já enfrentou. A água cercava tudo: os fundos, a frente, os lados. Em menos de 24 horas, mais de 20 pessoas estavam abrigadas na casa da empreendedora, que viu o seu negócio, ao lado da sua residência, ser destruído por água e lama.
Carla lembra bem da cena. "Ela olhava pela janela e dizia encantada com o cenário. E eu pensava 'sim, tem rio dos dois lados agora'". A imagem resumia o que ela e toda população da cidade enfrentavam. A Padaria e Panificadora Aparecida, que nunca havia fechado por mais do que dois dias por ano, no Natal e Ano Novo, ficou de portas fechadas por 61 dias. "Operamos desde 1985, nunca ficamos tanto tempo sem funcionar. Nem durante as reformas, nem quando tentamos fechar aos domingos, o que não deu certo, porque os próprios moradores pediram para reabrirmos", conta Carla.
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O cenário era devastador. A água destruiu câmaras frias, tombou equipamentos, boiou máquinas recém-adquiridas e deixou para trás muitas perdas. "Nós perdemos praticamente tudo. Geladeiras tombaram, balcões foram destruídos. Só conseguimos salvar algumas estruturas porque os motores estavam na parte de cima." De acordo com a empreendedora, o prejuízo foi avaliado em aproximadamente R$ 1 milhão, pois além do maquinário e insumos, a estrutura do local foi danificada.
Com 56 funcionários, a padaria seguiu arcando com a folha de pagamento mesmo sem funcionar. "A lei exige que se mantenha o número de funcionários de um mês antes da enchente. Só que a padaria não comporta isso no momento. Ainda estamos nos reerguendo", explica.
O comprometimento com a tradição da panificação é visível. A padaria já conquistou prêmios importantes, como a Copa de Panificação da Bunga, premiação nacional com os melhores padeiros. "Recebemos o primeiro lugar da Regional Sul na categoria Prêmio Sabor, com a receita da Cuca Chimarrita". Em nível nacional, a Panificadora ficou em terceiro lugar, com a receita Pão de Milho da Vó Campeira.
Após a enchente, a adaptação foi inevitável. Parte da estrutura precisou ser reconstruída. O layout da loja foi modificado. O negócio, fundado por Zulma e Zeferino Manoel Gomes, ex-sogros e amigos de Carla, resistiu ao período difícil. Atualmente, o empreendimento é comandado por Carla e Thales Carnevali Gomes, neto dos fundadores. Hoje, a padaria comercializa em torno de 100 quilos de pão francês por dia, número que, inclusive, subiu após a tragédia. "Muitos estabelecimentos não conseguiram reabrir, então, a demanda veio para cá. As pessoas precisam de pão, é alimento básico".
Os dias de cheia foram marcados por improvisos e solidariedade. "Coloquei os idosos no andar de cima, organizei a cozinha, preparei comida. Tirávamos água com baldes, usando açúcar como peso para puxar mantimentos com corda. Amarramos colchões infláveis para resgatar crianças e idosos quando a água começou a chegar no segundo andar da casa. Foi desesperador, mas também comovente", lembra.
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A Padaria e Panificadora Aparecida nasceu pequena como minimercado com açougue, forno à lenha e atendimento 24 horas. Cresceu, transformou-se, passou por reformas e chegou a ser alugada por um período. Mas sempre manteve as raízes. "Em determinado momento, sentimos falta do contato com os clientes. Decidimos que seria só padaria, confeitaria e café. E assim ficou".
Hoje, Carla vê a padaria como um ponto de resistência. "Estamos aqui, abrindo as portas todos os dias, mesmo com dificuldades, mesmo sem saber se o número de funcionários vai caber no orçamento. Mas estamos aqui. Produzindo, vendendo, atendendo. É isso que sabemos fazer", destaca.
A imagem da senhora que queria viver à beira de um rio segue viva na memória de Carla - uma lembrança de que, mesmo cercados pela água, foi possível sobreviver com dignidade e pão na mesa.
Academia que abrigou moradores durante a enchente busca retomada
Em março de 2019, a Yes Fitness anunciava o início das suas atividades no bairro Centro Novo, em Eldorado do Sul. À frente do negócio está Yago Ferreira e, ao seu lado, o instrutor Luiz Henrique Soares. Após completar cinco anos de empreendimento, os amigos enfrentaram juntos a chegada das águas à cidade. Em todos os locais que o GeraçãoE visitou na cidade, havia algo em comum: negócios e corações abertos. Recepção típica de quem sabe o poder da comunidade.
"Estávamos indo bem, uma média de 400 alunos antes da enchente. Após, sofremos um baque muito grande, que não voltou 100% ainda", contabiliza Yago. Segundo a dupla, foram longos meses até a situação melhorar, com avanço significativo apenas a partir de janeiro. "Muitos alunos foram embora ou saíram. Com todos ainda se reconstruindo, a academia acaba não sendo uma prioridade."
Eles contam que os primeiros meses após o evento foram críticos, mas que as coisas foram melhorando com o tempo. "Muitas regiões ainda estão bem destruídas. Lugares que não reabriram, que as pessoas não puderam voltar, nem mesmo para limpar. Aqui, a água nunca tinha chegado", descreve Henrique. Ele se refere ao histórico de cheias da região. A 12 km da Capital, Eldorado do Sul integra a área de preservação ambiental do Delta do Jacuí e é rodeada pelo rio Jacuí e lago Guaíba. Conforme os moradores, não é incomum a água invadir alguns bairros após fortes chuvas. Yago explica que este não era o caso do Centro Novo, onde a Yes Fitness está localizada. "A água demorou mais para subir aqui e o pessoal de outros bairros acabou migrando para cá", conta.
Em maio de 2024, o Rio Jacuí atingiu níveis recordes, com um metro e meio acima da cota de inundação. "Decidi ir para Porto Alegre, insisti que o Henrique fosse junto. Ele estava com a família, com um bebê de quatro meses na época", conta. O colega permaneceu na academia, que possui dois andares. Mas logo percebeu que as águas estavam subindo na região. "Disse para ele: 'abre as portas e ajuda quem tu achas que deve ajudar', e assim fizemos", descreve Yago sobre o espaço, que passou a ser abrigo. "Priorizamos acolher famílias. Também estava com a minha. Meu filho completou o quarto mês aqui dentro", diz Henrique. O segundo andar foi organizado com tatames. As roupas da academia também serviram para aquecer os abrigados.
Na hora de retomar, haviam perdido boa parte dos equipamentos e móveis. "São equipamentos pesados, não tinha o que fazer. Foi difícil e ainda é. Ficamos com um pé atrás sobre como serão os próximos anos. Mas precisamos retomar, não podemos abandonar o que é nosso. É o nosso trabalho", diz Yago.
Em um mês, a Yes Fitness estava aberta novamente. "No início, havia poucos alunos, mas eles estavam aqui. E é uma questão de saúde mental retornar à academia. Para o futuro, queremos melhorar o espaço, o atendimento e retomar tudo que a enchente ainda deixou de marcas. Manter a equipe, valorizar o pessoal e dar assistência à cidade de Eldorado", diz esperançoso.
Casal que viu sonho ruir na enchente de 2024 se recupera e amplia negócio
Proprietários da galeteria Casa Eldorado mantiveram o otimismo através da fé
Uma das operações mais de Eldorado do Sul, a Casa Eldorado foi severamente atingida pela enchente de 2024. Por lá, a água chegou a ultrapassar a marca de 2 metros. Hoje, a galeteria está de pé, com a mesma essência, mas sob nova direção.
Alexandre e Franciele Custódia, casal que hoje administra o negócio, vivia um cenário bem diferente em abril de 2024. Após iniciar uma lancheria delivery em casa, Alexandre alugou o espaço ao lado da tradicional galeteria visando ampliar o Família Lanches, nome do negócio. Quando tudo parecia ir bem, Franciele saiu do emprego para se dedicar ao negócio junto ao marido. Uma semana depois, tudo ficou embaixo d'água. "Fomos para a casa do meu sogro, em Guaíba, e ficamos 30 e poucos dias lá", relata Alexandre, que resume a retomada em uma frase: "nossa história é de milagres". Ao voltar para Eldorado do Sul, o empreendedor conversou com o locatário do prédio, que era proprietário da Casa Eldorado, para retomar o aluguel, mas teve uma surpresa. "O dono da galeteria era um ex-chefe da minha esposa. Quando ele soube que nós estávamos com a lancheria aqui do lado, veio falar com a gente e disse que tinha uma proposta para sermos sócios. Então, começamos a trabalhar juntos", conta Alexandre, que posteriormente comprou a parte do sócio, assumindo 100% da operação.
Alexandre encarou o desafio, apesar da insegurança em mudar de ramo. "Precisava trabalhar, só que tinha feito cursos e me preparado para uma lancheria, com hambúrguer. E aí tivemos que fazer buffet, uma lógica totalmente diferente, mas penso que precisamos aproveitar as oportunidades", pontua.
A retomada na Casa Eldorado foi bem movimentada no começo, mas caiu à medida que os voluntários deixavam a cidade. O casal acredita que só foi possível se reerguer a partir da fé. "Essa enchente teve propósitos, de ensinar as pessoas a serem solidárias", afirma Alexandre. "Voltamos para começar tudo do zero. O que a gente tinha? Fé e coragem", diz Franciele.
Para o futuro, o casal pretende ampliar a Casa Eldorado, criando um espaço kids e trocando alguns móveis. Além disso, o Família Lanches não foi deixado de lado. Pelo contrário, deve ter sua reinauguração ainda no mês de maio. "Agora vou poder usar aquilo que aprendi nos cursos", brinca Alexandre.

