Há um ano, Canoas - assim como diversas cidades do Rio Grande do Sul - foi severamente impactada pelas enchentes de maio. Famílias desabrigadas, doações, resgates, animais em cima de telhados: são muitas as imagens que ficaram marcadas na memória dos gaúchos. Aqui no GeraçãoE, acompanhamos as perdas e o recomeço de alguns empreendedores que tiveram que se reconstruir do zero, ou como alguns relatam, "a partir do negativo". Filipe Lopes, empreendedor que já passou por diversos segmentos, mas que há quatro anos apostou no setor de lazer e gastronomia ao criar o Rancho Boiadeiros no bairro Fátima, em Canoas, foi um desses empreendedores.
O espaço nasceu de uma ideia simples e apaixonada: unir o churrasco campeiro ao tradicionalismo gaúcho com uma experiência rural completa. Filipe, que já havia atuado com transporte executivo, impactado pela chegada do Uber, encontrou na gastronomia e no contato com os animais uma nova forma de empreender. "Meu irmão tinha uma hamburgueria e resolvi criar algo diferente, com hambúrguer assado na brasa", conta. O diferencial virou marca registrada. E o que começou pequeno, com poucos almoços aos fins de semana, rapidamente ganhou proporções inesperadas. Um vídeo divulgado por uma influenciadora fez o rancho saltar de oito para quase 1 mil refeições servidas em um único domingo. "Não tinha nem cerca, o pessoal invadiu. Era gente por tudo que era lado."
Além da culinária, o Rancho Boiadeiros oferece a chamada Fazendinha, com mais de 100 animais entre ovelhas, cabritos, vacas, pôneis, patos, galinhas e porcos. A proposta é proporcionar às famílias, especialmente às crianças, uma vivência com o ambiente rural no meio da cidade. "Acordamos às 6h todo dia para cuidar dos bichos. Isso aqui é paixão."
Em maio de 2024, tudo virou de cabeça para baixo. Na madrugada do dia 4, a água começou a invadir o rancho. Filipe e o filho correram para salvar os animais. Foram várias viagens, muitas delas feitas com apoio da comunidade de um bairro não afetado. "Só conseguimos salvar todos os bichos porque as pessoas do Jardim do Lago adotaram temporariamente", conta. Apenas um animal, o porco batizado de Tenório, acabou morrendo.
O prejuízo foi de mais de R$ 200 mil. "Não sobrou nada. Cozinha, móveis, freezers, tudo foi perdido", lembra. A água atingiu até o teto do primeiro piso e destruiu praticamente toda a estrutura. Felipe precisou recorrer à criatividade e à solidariedade para reerguer o negócio. Com apoio da Heineken, que forneceu freezers, chopeiras e chope, o rancho voltou a funcionar no dia 12 de junho, pouco mais de duas semanas após as águas baixarem. "Não podíamos esperar. Tinha que voltar logo, ou ia perder ainda mais."
A reabertura coincidiu com o Dia dos Namorados e teve casa cheia. No dia seguinte, um show intimista com o cantor nativista Jairo Lambari Fernandes marcou o retorno. A programação musical, aliás, é um dos pilares do espaço, que já recebeu artistas como Baitaca em seu projeto Quinta Nativa. "Queríamos levantar a casa cantando", diz Filipe. Hoje, o Rancho Boiadeiros voltou a atender com força total, recebendo até 500 pessoas aos domingos, dia de maior movimentado. O inverno, especialmente, é o ponto alto, com grande procura por parte de famílias que buscam experiências autênticas ligadas à tradição gaúcha. Filipe já vislumbra expandir para outras cidades, como Gramado. O passaporte para ingressar no rancho durante os almoços de fim de semana custa R$ 97,00 e inclui churrasco à vontade, além de um passeio pelo rancho com interação com os animais. O estabelecimento também funciona de terça a domingo, a partir das 18h.
Apesar dos obstáculos, Filipe segue firme com um sentimento de gratidão e pertencimento. "Em 2018, perdi um bar em um incêndio. Com a enchente, perdemos tudo de novo. Mas o que nos levantou foi a família. Meu pai, meu filho, minhas filhas, todo mundo trabalha aqui. Se não fosse isso, não teríamos voltado. A enchente foi como uma poda. Nos podou para crescermos mais forte e melhores."
Xis resiste com esperança na retomada da Mathias Velho
Quase um ano após a primeira visita do GeraçãoE à lancheria, retornamos para conversar com Élder Vieira, empreendedor à frente do I-perX. Entre algumas mudanças no espaço físico e na rotina, uma transformação chama atenção de imediato: a expressão de Élder. Na primeira entrevista, ele encarava um cenário de destruição com um olhar cansado, apreensivo e perdido. Hoje, apesar dos desafios ainda presentes, há esperança nos olhos e uma firme vontade de seguir adiante.
"Não foi fácil, claro. Ainda estamos longe de ter tudo como era antes, mas hoje consigo ver o quanto conseguimos recuperar. Aos poucos, estamos reconstruindo", afirma. O I-perX, que há quase duas décadas é referência em xis no bairro Mathias Velho, em Canoas, reabriu as portas com uma estrutura enxuta, mas funcional. O salão voltou a receber clientes, embora boa parte do movimento tenha migrado para a tele-entrega. "Hoje, é 80% delivery e 20% presencial. Mudou bastante, o pessoal ainda tem receio de sair, mas aos poucos estão voltando", relata.
Na fase inicial de retomada, o apoio da comunidade foi fundamental. Muitos clientes passaram a consumir no local enquanto ainda reconstruíam suas casas. Além disso, Élder recebeu suporte de uma grande marca. "A Heineken apareceu aqui sem pedirmos nada. Mandaram uma equipe com lavadora, gerador, gente para limpar. Aquilo foi o que me fez não desistir. Eles abriram caminho para começarmos a recuperação", conta. Apesar das perdas, inclusive um prejuízo estimado em R$ 150 mil, Élder decidiu não parar. "Poderia ter fechado, seguido outro rumo. Mas pensei nos funcionários, que também tinham perdido tudo. Nos apoiamos mutuamente. Mesmo com o negócio parado, paguei os salários. E eles ficaram comigo", afirma com orgulho.
Um ano depois da enchente, o bairro Mathias Velho ainda sente os impactos. Muitos moradores e comerciantes não retornaram. "Nós andamos por aqui e vemos lojas fechadas, casas vazias. Mas quem voltou, voltou com vontade de reconstruir", diz Élder. Ainda assim, ele percebe sinais de esperança. "Essa semana mesmo, clientes antigos disseram que terminaram de limpar a casa e vieram matar a saudade do nosso xis. Isso mostra que ainda existe vínculo, que vale a pena continuar."
Apesar das limitações e da incerteza sobre o futuro, ele mantém o foco em seguir com prudência. "Ainda sentimos o medo de que tudo possa acontecer de novo, porque pouca coisa foi feita de concreto para evitar. Mas enquanto não tiver solução definitiva, seguimos com cuidado e planejamento", pontua. Élder acredita que a reconstrução passa não apenas por obras físicas, mas por restabelecer vínculos e confiança. "O movimento caiu bastante depois dos primeiros meses, mas percebo que quem volta quer recuperar um pouco do que era antes. Tentamos oferecer isso: um lugar familiar, acolhedor, onde as pessoas sintam que estão retomando a vida", diz. A lancheria segue sendo, para muitos moradores, um ponto de referência afetiva no bairro.
O empreendedor também acompanha com atenção os colegas da região. "Todo mundo aqui perdeu alguma coisa. Mas o que vejo é que ninguém está reclamando, todos estão trabalhando. Existe um sentimento coletivo de reconstrução, mesmo que aos poucos, com medo. Isso é o que nos mantém com esperança", reforça Élder. O que se manteve intacto durante todo esse tempo foi esse espírito coletivo. "Não é só um negócio, é um lugar onde as pessoas se sentem acolhidas. E isso vale mais que qualquer estrutura. É o que mantém a gente de pé."
Negócios do bairro Fátima percebem mudança no público da região
Quem chega na rua Rui Barbosa, altura com a Paes Leme, no bairro Fátima, em Canoas, se vê rodeado de pequenos negócios. Esses empreendimentos formam uma parte importante do comércio local e viveram juntos os estragos das águas há um ano.
O supermercado Vitória, que conta com padaria e fruteira, é administrado por Sandra Regina Rodrigues e seu marido, Sandro. Ela conta que precisaram começar do zero. "Não sobrou nada, e o que daria para salvar, foi saqueado. As laterais de portas de vidros se soltaram com o balançar da água e, quando baixou, foram levadas. Foram os freezers inteiros e uma geladeira. Mesmo tudo embarrado", descreve Sandra.
Hoje, o mercado está aberto com 100% das suas operações, mas ela conta que foram 45 dias para a limpeza completa e que há apenas cinco meses o estabelecimento conseguiu se refazer. Sobre o movimento, ela conta que todos os negócios do entorno conseguiram se reerguer, e afirmou que a clientela está voltando. "Muita gente foi embora, mas veio muita gente nova. No início, não tínhamos balança, por exemplo, mas os clientes entendiam. As pessoas são compreensivas, todos passaram pela mesma coisa", recorda. Ao falar sobre a comunidade, Sandra conta que foi a clientela quem deu forças para continuar. "Uma cliente chegou e disse 'que bom ver vocês aqui!' Outro dia, às 6h, tudo estava escuro e um cliente gritou 'vizinha que bom lhe ver! Que bom que a senhora está aqui', nos deu um abraço apertado. Isso foi nos animando", emociona-se.
No entanto, as mudanças na região pós-enchente levaram a empreendedora a mudar o ramo. Sandra percebeu o aumento de mercados de rede pela região, o que trouxe uma ideia: abrir uma cafeteria e restaurante. "Ainda estamos nos recuperando, não deu para fazer essa transformação, mas pretendemos terminar de reformar aqui e abrir. É algo que faria mais sentido no bairro", conta Sandra, que segue acreditando na região. "Parece que não é verdade que tudo isso estava debaixo d'água. Me abalou, mas eu consegui", orgulha-se.

A Casa de Carnes JS foi um dos negócios atingidos no bairro Fátima
TÂNIA MEINERZ/JC
Ao atravessar a rua, encontra-se outro negócio popular entre a vizinhança, a casa de carnes e minimercado JS. Joelma Aguiar da Silva, empreendedora que comanda o negócio, conta que as atividades voltaram rápido. Receber a ajuda de parentes e amigos foi a chave para a retomada. "Foi um ano complicado. Mais de 20 pessoas vieram ajudar na limpeza e isso nos deu forças", recorda.
A empreendedora conta que a lembrança ainda é angustiante e que a cidade não é a mesma. "Sentimos falta de alguns clientes que nunca mais vimos", percebe a empreendedora, que toca o negócio ao lado do marido, Sergio Rodrigues da Silva, responsável pelo açougue, carro-chefe da casa. Naturais de uma região próxima a Torres, eles contam que a perda foi dupla, pois as águas levaram o que tinham em casa e no negócio. "Pensamos em largar tudo e voltar para o interior. Mas fizemos amigos e isso me fez ter força para voltar", diz. Sobre o movimento, Joelma conta que a clientela mudou muito. De acordo com ela, alguns não retornaram, mas muitos vieram de bairros ainda mais atingidos. Esperançosa, a empreendedora afirma orgulhosa: "nos reerguemos e somos milhares".