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Publicada em 14 de Agosto de 2025 às 18:42

Quadrinista Paula Mastroberti dá novo sentido para os clássicos em suas HQs

Artista multifacetada, Paula Mastroberti se especializou em recriar contos de fadas e textos consagrados da literatura mundial como Adormecida, que ganha nova edição após 13 anos

Artista multifacetada, Paula Mastroberti se especializou em recriar contos de fadas e textos consagrados da literatura mundial como Adormecida, que ganha nova edição após 13 anos

/PAULA MASTROBERTI/REPRODUÇÃO/JC
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Daniel Sanes
Adaptar uma história pode ser uma armadilha perigosa. Prova disso são os infinitos remakes cinematográficos, que, quando não seguem fielmente as versões originais, logo viram alvo dos críticos de internet. Mas e quando um livro oferece um olhar completamente inusitado sobre uma obra consagrada? Ou vira de ponta-cabeça um “inocente” conto de fadas?Há mais de três décadas, a porto-alegrense Paula Mastroberti cria narrativas que transcendem o mero conceito de adaptação. Responsável tanto pelas ilustrações quanto pelos roteiros, essa multiartista tem a capacidade de subverter textos consagrados em obras que provocam e ampliam o protagonismo feminino em relação ao original.Tudo começou nos anos 1980, quando, entre trabalhos com publicidade e como cenarista da Otto Desenhos Animados, ela decidiu desenvolver uma história em quadrinhos livremente inspirada nas versões de A bela adormecida compiladas por Charles Perrault e pelos irmãos Grimm. No entanto, algumas dificuldades a obrigaram a engavetar o projeto.“Eu não conseguia publicar por dois motivos: pelo simples fato de que era mulher e porque o tipo de quadrinho que fazia não agradava o mercado”, conta Mastroberti. “Lembro de certas conversas com quadrinistas da época, com pessoal de editoras. Era uma dificuldade me levarem a sério, para não dizer coisa pior.”Uma tentativa de publicar por uma editora argentina também não deu certo. Somente em 2012, quando Paula já era figura reconhecida no mundo das artes plásticas — e iniciava a carreira docente no Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) —, é que a publicação viu a luz do dia, pela editora 8Inverso. Adormecida -— Cem anos para sempre traz um traço exuberante, influenciado por quadrinistas como Moebius e Philippe Druillet, da revista Heavy Metal (ou Métal Hurlant, no original em francês), e, sobretudo, por Gustave Doré, mestre da ilustração em obras de literatura fantástica. No roteiro, as referências da autora vão de Hans Christian Andersen a Oscar Wilde.Recentemente, o livro ganhou uma nova versão, pela Hipotética. De acordo com a jornalista Iriz Medeiros, sócia da editora, a iniciativa visa recuperar a importância da HQ e da autora no cenário de quadrinhos. Ela lembra que a artista gaúcha foi uma das pouquíssimas mulheres brasileiras a produzir uma narrativa gráfica longa entre o final dos anos 1980 e o início dos 1990. “A Paula tem uma trajetória de proximidade com os clássicos da literatura e com o livro como objeto artístico e cultural. E sempre esteve sintonizada com os quadrinhos e as artes gráficas. Seus trabalhos são lugares onde esses universos se encontram, com um olhar muito particular”, destaca.Antes disso, porém, a artista já tinha uma vasta produção ligada a esse imaginário — só que não em quadrinhos. Entre 1995 e 2004, desenvolveu a série Reconto, com obras que recriam contos de fadas, em texto e nas ilustrações: Os sapatinhos vermelhos (Troféu Açorianos de 1996), Cinderela — Uma biografia autorizada (Açorianos de 1998), O flautista de Hamelin, A outra história de Rapunzel e Uma princesa e uma ervilha? Na sequência, de 2004 a 2010, veio a série Reversões, baseada em quatro clássicos da literatura mundial: Fausto, de Johann Von Goethe, Dom Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes, Odisseia, de Homero, e Hamlet, de William Shakespeare. E quem pensa que as homenagens param por aí, se engana: além de produzir mais uma série (Livros Impossíveis, em que utiliza instalações para reverenciar personagens como Molly Bloom, de Ulysses, de James Joyce), Paula trabalha no quarto volume de uma HQ sobre Peter Pan, personagem que a fascina desde a infância. Mas ela faz questão de ressaltar: nunca se trata de uma releitura, e sim de uma recriação. “Eu não tenho o mínimo respeito pelas obras originais”, ironiza a quadrinista. “Já li muitos clássicos nessa vida, e sei que vários deles foram criados em cima de outras narrativas. Dostoievski escreveu O idiota com base em Dom Quixote. Fausto foi inspirado em uma peça de Christopher Marlowe e em um poema medieval ainda mais antigo. Então, não sou a única. O que eu faço é assumir que bebi na fonte”, pondera.Recriar clássicos pode parecer um trabalho divertido, mas, para Paula, também passa por uma missão importante: ressignificar o papel atribuído às personagens femininas. “Na minha versão de Goethe (Angústia de Fausto), tem a Guida, que é uma heroína inconsequente. Em Retorno de Ulisses, é Penélope quem segura as pontas. Eu amo esses livros, mas entendo que tenho algo novo a dizer sobre eles. E meu jeito de fazer isso é empoderando as mulheres da literatura.”
Adaptar uma história pode ser uma armadilha perigosa. Prova disso são os infinitos remakes cinematográficos, que, quando não seguem fielmente as versões originais, logo viram alvo dos críticos de internet. Mas e quando um livro oferece um olhar completamente inusitado sobre uma obra consagrada? Ou vira de ponta-cabeça um “inocente” conto de fadas?

Há mais de três décadas, a porto-alegrense Paula Mastroberti cria narrativas que transcendem o mero conceito de adaptação. Responsável tanto pelas ilustrações quanto pelos roteiros, essa multiartista tem a capacidade de subverter textos consagrados em obras que provocam e ampliam o protagonismo feminino em relação ao original.

Tudo começou nos anos 1980, quando, entre trabalhos com publicidade e como cenarista da Otto Desenhos Animados, ela decidiu desenvolver uma história em quadrinhos livremente inspirada nas versões de A bela adormecida compiladas por Charles Perrault e pelos irmãos Grimm. No entanto, algumas dificuldades a obrigaram a engavetar o projeto.

“Eu não conseguia publicar por dois motivos: pelo simples fato de que era mulher e porque o tipo de quadrinho que fazia não agradava o mercado”, conta Mastroberti. “Lembro de certas conversas com quadrinistas da época, com pessoal de editoras. Era uma dificuldade me levarem a sério, para não dizer coisa pior.”

Uma tentativa de publicar por uma editora argentina também não deu certo. Somente em 2012, quando Paula já era figura reconhecida no mundo das artes plásticas — e iniciava a carreira docente no Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) —, é que a publicação viu a luz do dia, pela editora 8Inverso.

Adormecida -— Cem anos para sempre traz um traço exuberante, influenciado por quadrinistas como Moebius e Philippe Druillet, da revista Heavy Metal (ou Métal Hurlant, no original em francês), e, sobretudo, por Gustave Doré, mestre da ilustração em obras de literatura fantástica. No roteiro, as referências da autora vão de Hans Christian Andersen a Oscar Wilde.

Recentemente, o livro ganhou uma nova versão, pela Hipotética. De acordo com a jornalista Iriz Medeiros, sócia da editora, a iniciativa visa recuperar a importância da HQ e da autora no cenário de quadrinhos. Ela lembra que a artista gaúcha foi uma das pouquíssimas mulheres brasileiras a produzir uma narrativa gráfica longa entre o final dos anos 1980 e o início dos 1990.

“A Paula tem uma trajetória de proximidade com os clássicos da literatura e com o livro como objeto artístico e cultural. E sempre esteve sintonizada com os quadrinhos e as artes gráficas. Seus trabalhos são lugares onde esses universos se encontram, com um olhar muito particular”, destaca.

Antes disso, porém, a artista já tinha uma vasta produção ligada a esse imaginário — só que não em quadrinhos. Entre 1995 e 2004, desenvolveu a série Reconto, com obras que recriam contos de fadas, em texto e nas ilustrações: Os sapatinhos vermelhos (Troféu Açorianos de 1996), Cinderela — Uma biografia autorizada (Açorianos de 1998), O flautista de Hamelin, A outra história de Rapunzel e Uma princesa e uma ervilha?

Na sequência, de 2004 a 2010, veio a série Reversões, baseada em quatro clássicos da literatura mundial: Fausto, de Johann Von Goethe, Dom Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes, Odisseia, de Homero, e Hamlet, de William Shakespeare.

E quem pensa que as homenagens param por aí, se engana: além de produzir mais uma série (Livros Impossíveis, em que utiliza instalações para reverenciar personagens como Molly Bloom, de Ulysses, de James Joyce), Paula trabalha no quarto volume de uma HQ sobre Peter Pan, personagem que a fascina desde a infância. Mas ela faz questão de ressaltar: nunca se trata de uma releitura, e sim de uma recriação.

“Eu não tenho o mínimo respeito pelas obras originais”, ironiza a quadrinista. “Já li muitos clássicos nessa vida, e sei que vários deles foram criados em cima de outras narrativas. Dostoievski escreveu O idiota com base em Dom Quixote. Fausto foi inspirado em uma peça de Christopher Marlowe e em um poema medieval ainda mais antigo. Então, não sou a única. O que eu faço é assumir que bebi na fonte”, pondera.

Recriar clássicos pode parecer um trabalho divertido, mas, para Paula, também passa por uma missão importante: ressignificar o papel atribuído às personagens femininas. “Na minha versão de Goethe (Angústia de Fausto), tem a Guida, que é uma heroína inconsequente. Em Retorno de Ulisses, é Penélope quem segura as pontas. Eu amo esses livros, mas entendo que tenho algo novo a dizer sobre eles. E meu jeito de fazer isso é empoderando as mulheres da literatura.”

Mosca na sopa

Inquieta, Paula Mastroberti foi estimulada a seguir o caminho das artes desde a infância

Inquieta, Paula Mastroberti foi estimulada a seguir o caminho das artes desde a infância

/ACERVO PESSOAL PAULA MASTROBERTI/DIVULGAÇÃO/JC
Bacharel em Artes Plásticas pela Ufrgs. Doutora em Letras pela Pucrs. Artista gráfica e plástica. Escritora e professora. Essas são apenas algumas das facetas de Paula Mastroberti, uma mente tão inquieta que, em seu site (mastroberti.art.br), apresenta-se da seguinte forma: "Nasci em 1962 em Porto Alegre, Brasil. Eu sou a mosca na sopa da cultura, da arte e da educação".
A afinidade da "mosca" com essas áreas começou cedo. Ao contrário do que ocorre na maioria das famílias, a menina sempre foi estimulada a seguir o caminho criativo. "Meus pais insistiam que eu deveria ser artista. Não tive muita escolha", lembra, com orgulho.
Na casa da família, de origem italiana, tudo era arte. Com talento para carpintaria, o pai, Ernani, confeccionou uma lousa para a pequena Paula — primogênita de cinco irmãos —, esboçar os primeiros desenhos. "Minha formação se deve muito a essa experiência, porque ali desenvolvi uma dinâmica. Como dava para apagar e tentar de novo, eu podia tentar sem medo do erro", observa.
Já a mãe, Maria de Lourdes, foi sua primeira inspiração artística. "Por incrível que pareça, não fui tão influenciada pelos quadrinhos, e sim por ela. Minha mãe desenhava muito bem. Gostava de escutar ópera e de ilustrar os concertos", afirma. "Tanto ela quanto meu pai eram cantores de coral. Isso me levou a ter grande afinidade com a música também."
E a bagagem cultural só aumentava. A menina devorava desde contos de fadas a fascículos da Abril Cultural sobre gênios da pintura, livros de mitologia grega e… enciclopédias. "Eu lia uma enciclopédia com a mesma curiosidade que lia um livro de ficção. Se fosse ilustrada, ainda melhor", garante.
O interesse pelas HQs viria por meio de tios colecionadores de gibis clássicos como Flash Gordon, Príncipe Valente e Tarzan. Depois, descobriu heróis mais contemporâneos, como Homem-Aranha, Mestre do Kung Fu e Surfista Prateado.
Mas a obra que realmente a impactou foi Peter Pan, animação da Disney de 1953. Curiosa, foi atrás do livro de J. M. Barrie, Peter Pan e Wendy (1911), e percebeu que a história do menino que não queria crescer era bem mais complexa, pois explorava diferentes arquétipos femininos, representados por Wendy Darling e Tinker Bell.
"A Disney pasteurizou bastante a trama, mas dava pra sentir que havia algo ali. O protagonista não era um herói comum de desenho infantil. Mas só fui entender isso ao ler o livro", diz. Nascia, ali, uma paixão — e seu futuro objeto de estudo.

Peter Pan no Brasil

Uma das obras favoritas de Paula ganhou protagonista feminina; na trama, Peter é confundido com o Curupira

Uma das obras favoritas de Paula ganhou protagonista feminina; na trama, Peter é confundido com o Curupira

/PAULA MASTROBERTI/REPRODUÇÃO/JC
Em 2017, Paula Mastroberti deu início a Peter Pan — Uma história de meninas. É uma narrativa gráfica longa, desenvolvida a partir de sua pesquisa no Programa de Pós-Graduação em Letras na Pucrs. Durante o mestrado e o doutorado, ela mergulhou na obra de Barrie e suas diferentes versões.
A identificação sempre foi forte. Tanto que, nas brincadeiras infantis, ela sempre fazia o papel de Peter. "Era muito difícil eu me identificar com personagens femininas. E, quando isso acontecia, era com bruxas, como a Malévola (de A bela adormecida). Mulheres que pareciam ser mais fortes."
Na versão de Paula, Peter vem parar no Brasil, é confundido com o Curupira e vive em uma floresta similar à amazônica. E o jogo vira a favor das meninas: a protagonista é Janice, uma anglo-brasileira tataraneta de Wendy.
"Se você for ler o texto original do Barrie, vai perceber que a heroína é Wendy. Mas a aventura acabou prevalecendo sobre as questões existenciais", analisa Paula. Nesse sentido, desconstruir a obra revela nuances que nem sempre vêm à tona.
"Peter Pan lida com o amadurecer e o nunca amadurecer, e com questões muito femininas, embora não pareça. É uma declaração de que as mulheres são seres fantásticos, que sabem como gerenciar suas vidas e a experiência de viver, enquanto os homens têm dificuldades com relação a isso", afirma.
A história tem seis capítulos, sendo que os três primeiros estão disponíveis em issuu.com/projetopeterpan. Atualmente, a autora trabalha no quarto volume, previsto para 2026. "Se tudo der certo, nesse ritmo, concluo o projeto em 2032. Espero estar viva até lá", brinca, ressaltando que um dia ainda quer publicar a graphic novel em versão física.

Censura de Quixote

Premiada com o Jabuti, recriação da obra de Cervantes causou polêmica

Premiada com o Jabuti, recriação da obra de Cervantes causou polêmica

/PAULA MASTROBERTI/EDITORA ROCCO/DIVULGAÇÃO/JC
Heroísmo de Quixote é uma das obras mais marcantes de Paula Mastroberti — para o bem e para o mal. Publicado em 2005 pela editora Rocco, o livro conquistou o segundo lugar na categoria Juvenil do cobiçado Prêmio Jabuti. O que a autora não poderia imaginar é que ele seria alvo de censura.
A polêmica se deu em 2011, quando a mãe de um aluno do 6º ano da Escola Municipal Benedito Ottoni, no Rio de Janeiro, ficou indignada com o fato de a obra — que aborda temas como drogas e prostituição e tem "linguagem inadequada" — estar disponível para uma criança de 11 anos.
A mulher chegou a escrever uma carta à direção, mas esta só agiu quando a briga foi parar na delegacia. A professora responsável pela distribuição dos livros admitiu que não conhecia a obra. Resultado: Quixote foi retirado imediatamente do acervo das escolas de Ensino Fundamental do Rio.
"Hoje nem sei como seria, talvez fosse bem pior. Mas o que eu concluo dessa história é que muitas vezes as escolas adquirem obras literárias sem saber qual é o conteúdo delas, e nem para qual público é voltado. A série da qual Quixote fez parte não era direcionada para o público infantil", ressalta.

Da animação à pintura

Produção da artista inclui pinturas em acrílico e pastel, como A Baleia

Produção da artista inclui pinturas em acrílico e pastel, como A Baleia

/PAULA MASTROBERTI/REPRODUÇÃO/JC
Na efervescência cultural da Porto Alegre dos anos 1980, Paula Mastroberti experimentou a arte em suas diversas formas. Estreou no mercado editorial fazendo ilustrações para livros da L&PM, a convite da professora Maria da Glória Bordini, que integrava o conselho editorial.
Durante cerca de 15 anos, trabalhou na Otto Desenhos Animados, de Otto Guerra. Era a única mulher em cargo de destaque, o que a levou a adotar um figurino à la David Bowie (cantor britânico que, aliás, foi homenageado pela artista em Bowing, exposição de fanarts realizada em 2016, quando ele faleceu).
"Essa segmentação era sintomática em todos os espaços — na publicidade também. Então, para encarar as reuniões, eu ia com um visual bem andrógino: paletó, camisa social e cabelo raspado, tipo punk/dark. Era uma defesa estética, como se dissesse: 'não se metam comigo'", ri.
Otto lembra que a estreia dela foi na criação de cenários do segundo curta-metragem da produtora, As cobras (1985), baseado nas tiras de Luis Fernando Verissimo. Depois, Paula se tornaria a primeira diretora de arte da produtora.
"Ela trouxe uma proposta de trabalho muito à frente do seu tempo", elogia. "Além do estilo único, cheio de personalidade e força, a menina Paula jogou luz de tal forma que moldou a percepção que eu tinha do mundo, quebrou com meus paradigmas de valores arcaicos e me fez dar valor para a constante evolução, tanto na técnica quanto nas ideias."
Em paralelo, a artista começou a pintar, realizando exposições de sucesso na galeria Arte&Fato a partir de 1989. Dois anos antes, já havia chamado atenção por uma mostra de objetos no Museu de Arte do Rio Grande do Sul (Margs), intitulada Um Dia na Vida de Beto e de Bia, que parodiava a rotina de um casal 'modernoso'. "Essa exposição teve muita repercussão na mídia, e começaram a aparecer colecionadores querendo comprar o meu trabalho", recorda.
Os objetos e instalações voltariam a fazer parte de sua rotina a partir de 1994, quando se desiludiu com a pintura. "Não estava feliz nesse meio. Coisas pouco éticas aconteceram comigo e, às vezes, eu até polemizava com relação à arte contemporânea. Revendo hoje, nem faria mais esse tipo de comentário. Mas a gente tem que se perdoar por ser jovem e imatura."

Livros impossíveis

Uma das obras favoritas de Paula ganhou protagonista feminina: a anglo-brasileira Janice

Uma das obras favoritas de Paula ganhou protagonista feminina: a anglo-brasileira Janice

/PAULA MASTROBERTI/REPRODUÇÃO/JC
Muito além de livros e pinturas, Paula Mastroberti cria obras difíceis de descrever com palavras. Como as do projeto Livros Impossíveis, que pode ser visualizado em uma playlist no YouTube.
Em 2014, a artista iniciou uma investigação sobre o livro como objeto poético. Um bom exemplo dessa pesquisa é a instalação Penélope Bloom Espartilhada, que conecta a personagem Molly Bloom, do romance Ulysses, a Penélope, de Odisseia.
Nela, uma encadernação da obra de James Joyce funciona como um espartilho que sufoca o monólogo de Molly no desfecho. "Ao cair, esse livro-objeto se desestrutura, em uma espécie de desabafo. É uma obra muito interessante, que revisita a tradição da narrativa a partir do olhar de uma artista que dialoga com duas personagens femininas emblemáticas", destaca Paula Ramos, coordenadora de acervo da Pinacoteca Barão de Santo Ângelo, da Ufrgs.
Segundo a professora, o objetivo é levar mais obras da artista para o espaço — especialmente de ilustração, área em que considera a produção da xará "excepcional". "Ela diz que é ciumenta em relação a esses trabalhos em particular, o que eu compreendo perfeitamente. Mesmo assim, prometeu doar os originais de um dos livros, talvez Os sapatinhos vermelhos ou Cinderela, juntamente com uma obra impressa", afirma Paula Ramos.

Referência para diferentes gerações

Escritora e artista plástica Paula Mastroberti em 2007, na época do lançamento de O Retorno de Ulisses

Escritora e artista plástica Paula Mastroberti em 2007, na época do lançamento de O Retorno de Ulisses

MARCO QUINTANA/ARQUIVO/JC
A obra de Paula Mastroberti marcou quadrinistas de diferentes estilos e gerações. Uma delas é Ana Luiza Koehler, sua amiga e parceira de Mulheres em Quadrinhos, extinto grupo de Facebook que discutia a presença feminina no universo das HQs.
Ana conta que conheceu o trabalho da artista ainda na adolescência, quando leu Os Sapatinhos Vermelhos. De imediato, ficou impressionada com o estilo marcante do desenho.
“A Paula sempre foi um exemplo para mim. É uma artista completa, tanto pela maestria da técnica quanto pela criatividade narrativa. Eu, particularmente, gostaria de vê-la mais em debates e painéis, porque a considero uma pessoa brilhante, com muito a contribuir”, enaltece.
Guilherme Smee teve o primeiro contato com a obra de Paula em Osmose (2012), coletânea do Goethe-Institut que promoveu um intercâmbio entre artistas brasileiros e alemães. Depois, fez um curso de quadrinhos com ela na Ufrgs e, posteriormente, a convidou para participar de eventos que organizou.
Para ele, o amor de Paula pela experimentação fica nítido em suas obras. “Talvez seja essa verve sentimental que a aproxima da predileção pelos contos de fadas e outros que fazem parte do seu arcabouço de referências, mas que são trabalhados por ela de uma forma muito própria”, acredita.

Entre sonhos concretizados e projetos futuros

Um dos volumes da série de livros-arte JULIA!, de Paula Mastroberti

Um dos volumes da série de livros-arte JULIA!, de Paula Mastroberti

/PAULA MASTROBERTI/DIVULGAÇÃO/JC
É comum que artistas recorram a outras profissões para sobreviver, mas, no caso de Paula Mastroberti, a docência é uma vocação. "Não consigo nem imaginar a Paula artista sem a Paula professora", confessa.
Na adolescência, ela pensou em cursar o magistério, mas foi convencida pela mãe a seguir o caminho das artes. Realizou esse sonho aos 50 anos, quando foi aprovada em um concurso da Ufrgs.
"Eu gosto de ensinar, sempre gostei. Mesmo quando comecei a trabalhar como artista, dava aulas na Escola Nacional de Desenho. Fui demitida porque queria ensinar o pessoal a fazer quadrinhos. Hoje, a única disciplina que trabalha com ilustração e HQs no curso de Artes é a minha", diz.
Paula compara o ato de lecionar ao de escrever uma história. "Amo fazer planos de ensino, preparar aulas e estar em contato com os alunos."
Falando em planos, ela continua produzindo em diferentes frentes. Na série Livros Impossíveis, a personagem da vez é Dafne, do mito Apolo e Dafne, narrado por Ovídio em Metamorfoses. Nos quadrinhos, pensa em criar uma obra que una ilustração e poesia.
Por fim, a artista espera finalizar Julia!, uma série de quatro livros-arte feitos à mão, cada um contando um acontecimento na vida de uma menininha inspirada em sua própria filha, Julia, hoje com 27 anos.
"Uma editora manifestou interesse, mas não houve acordo sobre a formatação", lamenta. "São livros artesanais, pesados e grossos. Eu até pensei em expor esse material um dia, só não sei como as pessoas poderiam folhear. De todo modo, gosto muito deles e ainda quero concluir o último volume."

*Daniel Sanes é jornalista formado pela Universidade Católica de Pelotas. Já foi
repórter e editor no Jornal do Comércio. Hoje, trabalha na República – Agência de
Conteúdo e atua como freelancer.

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