É uma típica manhã de quarta-feira no Centro de Porto Alegre. Corre-corre de pedestres, ambulantes tentando ganhar a vida, servidores em passeata por melhores salários. Desço apressado a General Paranhos e me dirijo para um café na antiga Rua do Comércio, onde fiquei de encontrar a entrevistada para esta reportagem.
À primeira vista, o cenário pode parecer estranho para quem lê — e com razão. Porque essa era a paisagem da capital gaúcha um século atrás. Se hoje General Paranhos é o nome de uma ruazinha no bairro Santa Cecília, antigamente batizava uma via entremeada por diversos becos, alargada para dar origem à avenida Borges de Medeiros. Naqueles tempos, a Rua do Comércio recém havia sido renomeada como Uruguai — antes disso, também fora um beco, primeiro da Ópera, depois dos Ferreiros.
Acomodada junto a uma mesa logo na entrada da cafeteria, está a arquiteta e quadrinista Ana Luiza Koehler. Cumprimento-a, revelando que nunca havia entrado ali. Com um sorriso, ela observa que aquele era um prédio histórico onde, por muitos anos, funcionou uma tradicional loja de tecidos.
Essa Porto Alegre do passado é, ao mesmo tempo, cenário e personagem das obras da artista, que escolheu a linguagem dos quadrinhos para registrar o processo de urbanização da Capital a partir da década de 1920. Seus livros com a temática, Beco do Rosário e Viaduto, lhe renderam uma série de troféus HQ Mix, a maior premiação dos quadrinhos brasileiros.
Antes da consagração em casa, Ana construiu uma curiosa carreira no mercado editorial europeu. Produziu muita coisa sob encomenda, especialmente para o circuito franco-belga de quadrinhos, e também ilustrações arqueológicas para exposições na Alemanha. "Trabalhava bastante com a reconstituição de paisagens que já não existem mais, fazia todo um cruzamento de dados de literatura, restos de sítios arqueológicos, mapas. Foi então que pensei: e se eu fizesse isso num quadrinho sobre Porto Alegre?", lembra.
Em 2013, veio o impulso que faltava para desenvolver um trabalho mais regional. Ana foi convidada a criar as ilustrações da exposição 12.000 Anos de História — Arqueologia e Pré-história do Rio Grande do Sul, para o Museu da Ufrgs, destacando a presença humana em território gaúcho e as relações dos migrantes com as populações já existentes.
Em sua dissertação, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional da Faculdade de Arquitetura da Ufrgs, Ana decidiu mergulhar na história dos antigos becos de Porto Alegre, espaços excluídos do processo de modernização da cidade. Os resultados da pesquisa podem ser vistos no blog Beco do Rosário, alimentado com recortes de jornais, mapas e fotografias, entre outros registros coletados pela quadrinista ao longo de uma década.
Além de chamar atenção para as aceleradas transformações na paisagem urbana, o livro Beco do Rosário expõe o tratamento recebido por populações historicamente marginalizadas e removidas das áreas centrais. Não à toa, a protagonista é uma jovem negra, Vitória, que sonha em ser jornalista para expor as injustiças sociais. "Essas pessoas foram obrigadas a sair de suas casas 'em nome do progresso'", reflete Ana. “Os personagens podem ser fictícios, mas houve muitas histórias semelhantes às deles, de racismo e outras formas de discriminação.”
Foram tantas histórias apagadas que Beco do Rosário ganhou uma sequência. Em Viaduto, já na década de 1930, Vitória e os demais protagonistas se veem diante da tumultuada construção do viaduto Otávio Rocha, o viaduto da Borges — obra faraônica que envolveu altos empréstimos, falhas de execução e até acidentes (um deles, fatal) com dinamite, usado para remover uma pedreira da avenida que nascia.
Só que o trem do progresso não para, e o próximo capítulo dessa história vai se passar durante o Estado Novo (1937-1945) de Getúlio Vargas. Ana acredita que o livro ficará pronto em 2027. "É um processo trabalhoso, pois envolve muita investigação, mas também apaixonante. Depois que a gente mergulha na história, fica difícil parar."
Uma arquiteta dos quadrinhos

Ana Luiza Koehler na mostra A Modernização de Porto Alegre em Quadrinhos, em cartaz no Goethe-Institut de Porto Alegre
/ANTONIO MAINIERI/GOETHE-INSTITUT/DIVULGAÇÃO/JCAna Luiza Goulart Koehler nasceu em 12 de maio de 1977, no bairro Petrópolis. Filha de um cardiologista e de uma bibliotecária, herdou o amor pelos quadrinhos dos pais. "Os dois sempre cultivaram esse hábito, e passaram pra mim. Li muito Tio Patinhas, Tintim, Turma da Mônica", diz.
O desenho acompanhou a leitura. Desde pequena, Ana já tinha em mente que queria criar histórias. Porém, percebia que os quadrinhos, como profissão, não seriam tão estimulados. "Naquela época não tinha essa coisa de colocar em uma escola de artes, de encarar como algo sério. A arte não era vista nesse nível — era, inclusive, desencorajada. O pensamento das pessoas era: 'na hora que precisar trabalhar, ela vai fazer outra coisa'."
O fato é que Ana nunca parou de desenhar. Entre os colegas do Colégio Farroupilha, ficou conhecida como a artista da turma. Seu talento logo chamou atenção de uma professora, que precisava de alguém para ilustrar um livro de idioma alemão. Foi seu primeiro trabalho na área, aos 16 anos. "Fiz isso durante algum tempo. Essa experiência me ajudou a entender como funciona o mercado editorial, a questão dos prazos, entre outros aspectos", explica.
Na hora de escolher uma graduação, viu-se diante de um velho dilema. "Tinha dificuldade de encarar o desenho como profissão, de ser valorizada e de convencer as pessoas de que aquilo iria dar certo. Cheguei a fazer teste para Artes Plásticas, mas sabia que não era exatamente o meu ramo. Optei por cursar Arquitetura na Ufrgs, meio na 'força do ódio'", brinca. "No fim das contas, acabei utilizando esse conhecimento de uma forma que não imaginava."
Mesmo assim, os quadrinhos nunca saíram de seu radar. Pelo contrário: já em 2003, depois de um "mochilão" na Europa, teve contato com as HQs francesas e ficou impressionada com a temática dos roteiros. "Eu só conhecia Mônica, Disney, super-heróis e um pouco de mangá. E os quadrinhos que descobri por lá falavam de história — das cidades, dos acontecimentos do país —, algo que sempre gostei."
Empolgada, Ana começou a acompanhar o site da Dargaud, uma tradicional editora francesa que abria espaço para os leitores publicarem os próprios desenhos. Sem grandes pretensões, resolveu postar amostras de seu trabalho. "Cerca de um ano e meio depois, dois roteiristas belgas (Fuat Erkol e Christian Simon) entraram em contato comigo, dizendo que viram meu trabalho no site e que ele se encaixava no projeto que eles queriam oferecer para algumas editoras. E assim fiz meu primeiro livro para o mercado franco-belga", conta.
Publicado em dois volumes, em 2009 e 2010, Awrah é um romance gráfico que se passa em Bagdá, por volta do ano 800 — algo no estilo As Mil e Uma Noites. A partir dessa saga, a artista começou a ser requisitada para outros trabalhos, como Carthage e Une Génération Française, sempre com ambientação histórica e cenários ricos em detalhes.
Embora a qualidade dessas obras seja inegável, as tramas retratam realidades bem distintas da brasileira. Além disso, as publicações nunca receberam tradução para o português, ficando à margem do mercado nacional de HQs. Essas questões foram determinantes para que a carreira de Ana tomasse um novo rumo. "Entendi que a história em quadrinhos que eu queria que existisse só iria existir se eu mesma escrevesse."
Nova história, novo visual

Trecho da HQ 'Beco do Rosário', assinada pela artista gaúcha Ana Luiza Koehler
/ANA LUIZA KOEHLER/RUMOS ITAÚ CULTURAL/DIVULGAÇÃO/JCSe nos trabalhos sob encomenda os desenhos de Ana Luiza Koehler são realistas, em Beco do Rosário e Viaduto ganham contornos mais soltos, mas nem por isso menos expressivos. Para criar suas obras autorais, ela trocou o lápis pelo bico de pena — uma transição que não se mostrou nada fácil. "Foram dois anos de experimentações até me sentir confortável com essa técnica", revela.
A mudança também é reflexo de sua pesquisa de mestrado. A artista se encantou com os desenhos utilizados para ilustrar anúncios publicitários, revistas e charges nos jornais do início do século XX.
No blog Beco do Rosário, Ana dá detalhes sobre como tomou essa decisão: ela queria contar uma nova história e, para isso, precisava desenvolver um estilo que se relacionasse com o momento histórico retratado. "Inconscientemente ou não, fui naturalmente me dirigindo a reproduzir essa estética da época, cujo traço forte do nanquim sempre me fascinou e agradou muito."
Olhar diferenciado

Ilustrações de Ana Luiza representam operários trabalhando na construção do viaduto Otávio Rocha
/ANA LUIZA KOEHLER/REPRODUÇÃO/JCPara os colegas de profissão, o reconhecimento de Ana Luiza Koehler é mais do que merecido. Edgar Vasques, que também tem em comum com a quadrinista a formação em Arquitetura, a considera uma artista clássica, "no sentido tradicional do termo".
"Tudo no trabalho dela colabora para um resultado harmônico: pesquisa, roteiro, texto, desenho, projeto gráfico, edição. Com sensibilidade e talento, Ana Koehler vem fazendo nos quadrinhos o que alguns autores têm feito na literatura escrita: registrar a memória de Porto Alegre com a pegada do romance", observa o pai do icônico personagem Rango.
A artista plástica, escritora e ilustradora Paula Mastroberti destaca a atuação de Ana como defensora das HQs e, especificamente, das quadrinistas. Tanto que em 2012 convidou a amiga para integrar o grupo Mulheres em Quadrinhos, página do Facebook que surgiu com a proposta de discutir a representatividade feminina tanto na criação quanto dentro das histórias.
"A Ana é uma força dentro desse universo, que, infelizmente, ainda é muito machista. Sou fã de seu traço e de sua capacidade de elaborar cenários. E ela tem uma qualidade rara no mundo dos quadrinhos, que é conseguir contextualizar social e culturalmente os personagens, dando vivacidade às histórias", ressalta.
Outra integrante do Mulheres em Quadrinhos, a colorista Cris Peter também não poupa elogios à amiga. "Admiro demais o foco e a disciplina da Ana. Fora o trabalho fantástico que ela faz e que, por alguma razão, não alcança todo mundo que deveria. Tenho certeza de que todo o porto-alegrense ficaria feliz de ver a cidade pelas aquarelas dela."
O que foi o Beco do Rosário
O Beco do Rosário foi uma antiga via localizada no Centro de Porto Alegre. No início do século XX, essa região era habitada por uma população diversa, incluindo negros libertos, imigrantes europeus e trabalhadores de baixa renda.
O beco ficou conhecido por sua intensa vida comunitária e por abrigar a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, que foi inaugurada em 1827 e serviu como importante centro religioso e social para a comunidade negra.
Nos anos 1920, como parte de um projeto de modernização urbana da Capital, o Beco do Rosário foi demolido para dar lugar à avenida Otávio Rocha. Esse processo resultou na desapropriação de imóveis, afetando significativamente as comunidades que ali residiam.
Reconhecimento nacional

Ilustração retirada de 'Beco do Rosário', obra consagrada pelo Troféu HQ Mix
/ANA LUIZA KOEHLER/RUMOS ITAÚ CULTURAL/DIVULGAÇÃO/JCLançado de forma independente em 2015, Beco do Rosário é uma obra multipremiada. A primeira versão, com apenas um volume, faturou o Troféu HQ Mix, considerado o "Oscar dos quadrinhos brasileiros", na categoria de melhor publicação independente. Uma exposição sobre a obra, promovida pela Galeria Hipotética, também recebeu a honraria.
Em 2020, o segundo volume foi publicado, juntamente com o primeiro, pela editora Veneta, em edição viabilizada pelo projeto Rumos Itaú Cultural. Na esteira dessa obra, mais quatro troféus HQ Mix: edição especial nacional, desenhista, colorista e arte-finalista.
No ano passado, Ana repetiu os feitos como colorista e desenhista, por Viaduto. Além disso, foi uma das vencedoras da categoria Mestres do Quadrinho Nacional na 40ª edição do Troféu Angelo Agostini, a mais antiga premiação de quadrinhos do Brasil.
Exposição destaca obra autoral

Ana Luiza Koehler prepara novo livro, que será ambientado durante o Estado Novo de Getúlio Vargas
/ANTONIO MAINIERI/GOETHE-INSTITUT/DIVULGAÇÃO/JCUma ótima chance de conhecer mais sobre o trabalho de Ana Luiza Koehler é a exposição A Modernização de Porto Alegre em Quadrinhos, em cartaz no Goethe-Institut (Rua 24 de Outubro, 112) até o dia 31 de maio. Com entrada gratuita, a mostra conta com páginas originais de Beco do Rosário e Viaduto, além de diversas informações sobre a história da cidade.
Responsável pela programação cultural do instituto, o jornalista e roteirista Augusto Paim lembra que conheceu Ana em 2010, quando os dois fizeram uma reportagem em quadrinhos sobre o Esporte Clube Juventude, de Caxias do Sul. Na ocasião, ficou impressionado ao receber os primeiros esboços que a quadrinista fez para o roteiro dele.
"Uau! Eram só esboços, mas feitos com tanta técnica e cuidado, que por mim já daria para publicar do jeito que estava", revela.
Para Paim, é um orgulho ser conterrâneo e contemporâneo de uma artista dessa magnitude. "É incrível o carinho e a atenção que ela está dando à nossa cidade. A memória e o futuro de Porto Alegre só têm a ganhar com o trabalho desenvolvido por Ana Luiza Koehler ao longo da última década."
Na exposição, os visitantes também podem ver materiais de trabalho e vídeos da artista produzindo suas histórias em quadrinhos. Ainda é possível participar de um percurso com desenho e mediação histórica no Quarto Distrito, dia 10 de maio, com a presença da autora. As inscrições, limitadas, podem ser feitas pelo e-mail [email protected].
Uma artista multitarefas

Detalhes do maquinário revelam preocupação da artista com precisão histórica
/ANA LUIZA KOEHLER/REPRODUÇÃO/JCAlém de criar suas próprias HQs e ilustrar trabalhos para outras pessoas, Ana Luiza Koehler dá aulas de desenho e pintura. Os cursos são oferecidos online, na loja virtual analuizakoehler.iluria.com, assim como livros, originais, gravuras e outros produtos. Ela ainda conta com um site pessoal, analuizakoehler.com, onde também fica hospedado o blog Beco do Rosário.
E não para por aí: no Instagram e no YouTube, Ana faz questão de registrar seu processo de criação, com vídeos em que demonstra as técnicas e os materiais utilizados. "Acredito que, dessa forma, a gente consegue aproximar mais as pessoas da arte. Só não consigo fazer mais porque dá um trabalhão", justifica.
Sócia da Editora Hipotética, a jornalista Iriz Medeiros pôde testemunhar de perto esse envolvimento entre a artista e o público. A extinta galeria que hoje dá nome à editora não só sediou a premiada mostra sobre Beco do Rosário como recebeu vários cursos de desenho e aquarela conduzidos por Ana - sempre com turmas cheias e grande troca com os alunos, como ressalta Iriz.
"Além de excelente desenhista e aquarelista, ela tem uma grande motivação por trás de todo o seu trabalho: a pesquisa histórica. É essa paixão que envolve tudo, é essa paixão que transborda das páginas que ela cria. Porto Alegre tem sorte de contar com uma artista tão apaixonada pela história da cidade", diz a editora.

Ilustração para a exposição 12.000 Anos de História — Arqueologia e Pré-história do RS
ANA LUIZA KOEHLER/REPRODUÇÃO/JC*Daniel Sanes é jornalista formado pela Universidade Católica de Pelotas. Já foi repórter e editor no Jornal do Comércio. Hoje, trabalha na República – Agência de Conteúdo e atua como freelancer.