Quando lançou seu primeiro disco em 1968, Joyce Moreno não apenas revelava ao país uma jovem compositora, mas também abria um caminho inédito na música brasileira. Sua voz em primeira pessoa feminina, direta e lírica, destoava de um cenário dominado por homens. A naturalidade com que compunha sobre o universo da mulher provocou estranhamento e resistência, mas também inaugurou uma mudança.
Décadas depois, aquela ousadia adolescente se confirma como marco histórico: Joyce se tornou referência incontornável de uma geração e inspiração para tantas outras que vieram depois. Seu álbum Feminina ocupa um lugar especial nessa trajetória. Lançado em 1980, o disco se tornou um marco principalmente por afirmar o ponto de vista feminino em sua obra. “Foi o álbum em que realmente assumi minha identidade, em que pude dizer sem medo o que pensava e sentia como mulher”, afirma a compositora carioca.
Nesta sexta-feira (12), a artista volta a Porto Alegre para apresentar Canções da Vida, uma entrevista-show, conduzida por Felipe Antunes, em que interpreta e comenta 12 músicas que marcaram sua trajetória. O espetáculo começa às 20h, no Centro Cultural 25 de Julho (Germano Petersen Júnior, 250). Ingressos podem ser adquiridos via Sympla a partir de R$ 50,00. Segundo a artista, este não é um show convencional, mas uma conversa com o público misturada por canções que, segundo ela, mudam de significado a cada fase da vida. “Essas são as canções da vida daquele dia, do dia 12”, explica, bem humorada.
Entre as escolhidas, estará também parte do repertório de seu álbum mais recente, O Mar é Mulher, lançado em junho. O disco nasceu de uma necessidade urgente de reafirmar a importância da voz feminina num momento em que a violência contra mulheres cresce, com a alta dos feminicídios, e discursos de ódio se espalham. “Percebi que era hora de voltar a esse lugar de fala e levantar, mais uma vez, a questão feminina. Nosso gênero tem uma importância enorme no mundo, e a música pode ajudar a lembrar disso”, afirma.
Ainda na produção de O Mar é Mulher, uma história curiosa marca a faixa Um Abraço do João, feita em parceria com Jards Macalé. Velho amigo e primeiro parceiro musical de Joyce, ele encontrou, em plena pandemia, um número secreto de telefone de, ninguém mais, ninguém menos do que João Gilberto. Comovido, deixou um recado na secretária eletrônica, mesmo sabendo que o cantor já havia falecido.
Dessa lembrança nasceu a inspiração da canção, à qual Joyce escreveu, musicou e que ambos gravaram juntos — coincidentemente, no aniversário de João, em 10 de junho. “Ele me ligou e falou: ‘Ah, faz essa letra aí para mim, e bota esse título, ‘Um Abraço do João’’. Que é o João abraçando a gente, nós, os discípulos dele. Então, é claro que fiz, e é claro que chamei o Macalé para cantar comigo. Foi um reencontro afetivo e musical, uma homenagem ao mestre que nos abraça até hoje”, relembra a cantora.
Sobre sua discografia, Joyce fez diálogos curiosos entre diferentes momentos da carreira. Para ela, O Mar é Mulher (2025) conversa muito mais com Feminina (1980), álbum em que consolidou sua voz em primeira pessoa, do que com o disco de estreia, de 1968. Este, se conecta diretamente a 50 (2018), disco em que regravou as faixas do repertório do trabalho de 1968, porem, com arranjos próprios e uma maturidade de cinco décadas. “Quis refazer o álbum como eu o faria hoje, com a autonomia que conquistei como cantora, arranjadora e instrumentista”, explica.
A carreira de Joyce é também marcada por encontros com grandes nomes, como Vinicius de Moraes, de quem foi parceira em turnês pela América do Sul e Europa. Foi o poeta quem primeiro apontou o caráter feminista de sua obra, ainda quando ela mesma não havia se dado conta. Reconhecida por Tom Jobim, Caetano Veloso e tantos outros ícones, Joyce se mantém fiel à essência brasileira de sua música mesmo diante de uma carreira internacional consolidada. “O que atrai o público estrangeiro é justamente essa brasilidade. Não busco um internacionalismo. Levo comigo o samba, a bossa, a nossa forma de criar”, afirma.
Atenta à nova geração, Joyce celebra a vitalidade da que ela mesma chama de “MCB - Música Criativa Brasileira”, destacando intérpretes como Mônica Salmaso e compositores como Tiago Amude e Breno Ruiz. Segundo ela, o desafio não é a falta de talento, mas a carência de espaço. “Criatividade não falta, falta exposição. Seria importante democratizar essas gerações de criadores e criadoras da música brasileira”.
Além da apresentação de Canções da Vida, Joyce participa, no domingo (14), às 16h, de um bate-papo sobre Vinícius de Moraes no Clube de Mães (Caeté, 150), também na Capital, com ingressos a R$ 60,00 pelo WhatsApp (51) 99912-9975. A artista recordará momentos de convivência com o poeta e discutirá a importância do elo entre a literatura e a canção popular. Dois mundos que ela própria, desde sempre, ajudou a aproximar.