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Publicada em 07 de Setembro de 2025 às 17:20

Gilberto Gil comanda o tempo em show histórico em Porto Alegre

Mais de 30 mil pessoas estiveram no Beira-Rio para prestigiar Gilberto Gil, em show da turnê de despedida 'Tempo Rei'

Mais de 30 mil pessoas estiveram no Beira-Rio para prestigiar Gilberto Gil, em show da turnê de despedida 'Tempo Rei'

BRENO BAUER/JC
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Igor Natusch
Igor Natusch Editor de Cultura
O tempo foi o grande fio condutor das emoções na noite de sábado (6), quando Porto Alegre recebeu uma das entidades máximas da música brasileira. Em um estádio Beira-Rio repleto de mais de 30 mil almas e corações, Gilberto Gil fez uma apresentação irretocável de seu espetáculo Tempo Rei, que marca a despedida do cantor e compositor das turnês. Durante cerca de 2h40min de show, a Capital foi arrebatada por um show daqueles que não se esquece - uma daquelas noites mágicas que conseguem juntar as pontas do que a gente foi, do que se é e que se pode ser, em uma memória que é eterno presente e, portanto, destinada à eternidade em cada um de nós.De fato, talvez não exista artista no mundo inteiro que possa conduzir o tempo da forma que Gilberto Gil faz. Surgindo sorridente no palco do Beira-Rio, o homem de 83 anos é, a um só tempo, menino e sábio ancião, como se fosse ele mesmo a encarnação de um Brasil musical inteiro. "Subo nesse palco / A minha alma cheira a talco / Como bumbum de nenê", canta logo nos primeiros versos de Palco, canção que abre o show - e qualquer um que olhe sorridente e hipnotizado em sua direção sabe que é verdade. Mais: a gente sente que é verdade, porque a verdade se manifesta em nós mesmos, cada ser humano na plateia magicamente rejuvenescido como uma alma que recém nasceu. Das muitas coisas sobrenaturais na música de Gilberto Gil, uma das mais marcantes é justamente essa capacidade de convencer pela convergência de sentimento: não são músicas que a gente canta junto, mas que a gente sente junto, tão logo solte a voz para cantar.
O tempo foi o grande fio condutor das emoções na noite de sábado (6), quando Porto Alegre recebeu uma das entidades máximas da música brasileira. Em um estádio Beira-Rio repleto de mais de 30 mil almas e corações, Gilberto Gil fez uma apresentação irretocável de seu espetáculo Tempo Rei, que marca a despedida do cantor e compositor das turnês. Durante cerca de 2h40min de show, a Capital foi arrebatada por um show daqueles que não se esquece - uma daquelas noites mágicas que conseguem juntar as pontas do que a gente foi, do que se é e que se pode ser, em uma memória que é eterno presente e, portanto, destinada à eternidade em cada um de nós.

De fato, talvez não exista artista no mundo inteiro que possa conduzir o tempo da forma que Gilberto Gil faz. Surgindo sorridente no palco do Beira-Rio, o homem de 83 anos é, a um só tempo, menino e sábio ancião, como se fosse ele mesmo a encarnação de um Brasil musical inteiro. "Subo nesse palco / A minha alma cheira a talco / Como bumbum de nenê", canta logo nos primeiros versos de Palco, canção que abre o show - e qualquer um que olhe sorridente e hipnotizado em sua direção sabe que é verdade. Mais: a gente sente que é verdade, porque a verdade se manifesta em nós mesmos, cada ser humano na plateia magicamente rejuvenescido como uma alma que recém nasceu. Das muitas coisas sobrenaturais na música de Gilberto Gil, uma das mais marcantes é justamente essa capacidade de convencer pela convergência de sentimento: não são músicas que a gente canta junto, mas que a gente sente junto, tão logo solte a voz para cantar.
Gilberto Gil fez primeiro show na retomada da turnê 'Tempo Rei' após o falecimento da filha Preta Gil | BRENO BAUER/JC
Gilberto Gil fez primeiro show na retomada da turnê 'Tempo Rei' após o falecimento da filha Preta Gil BRENO BAUER/JC


Gilberto Gil é um hábil condutor do tempo, e o faz de tal forma a transformar seu espetáculo em um quase manifesto de presença. Seria falso, por exemplo, a gente dizer que não sente o tempo passar. É o contrário, na verdade: cada segundo do setlist é percebido, é vivenciado na plenitude, ainda que (e aí está o mágico da coisa) sem que a percepção traga qualquer tipo de angústia. Estamos todos presentes, somos todos aquele instante a cada instante que passa, e é assombrosa a facilidade com que Gilberto Gil conquista esse pequeno milagre, fazendo uso apenas da força da presença e da canção. 

O clima dos últimos dias em Porto Alegre pesou um pouco sobre o homem-cantor dessas magias todas. A voz esteve sempre lá, mas era perceptível que, por vezes, ela oscilava, enquanto o artista lutava para manter o fôlego. Quem prestasse atenção percebia algumas luzes de um amarelo quente, distribuídas em pontos estratégicos, como se fossem enfeites de palco: na verdade, eram aquecedores, instalados meio às pressas para aliviar o frio que Gilberto Gil sentia. "Deixa eu assoar o nariz um pouquinho... Esse frio de vocês, olha", disse ele, logo após Eu Só Quero um Xodó. Em resposta, a plateia soltou um sincero coro de "Gil, eu te amo". "É recíproco, eu também amo vocês. É o amor, tão necessário para que a vida progrida", respondeu, sorrindo, já menino sábio de novo.
Estrutura no centro do palco, em formato de vórtice, encaixou bem com a temática do espetáculo | BRENO BAUER/JC
Estrutura no centro do palco, em formato de vórtice, encaixou bem com a temática do espetáculo BRENO BAUER/JC


Cuidadosamente arquitetado, o repertório de Tempo Rei é um convite para viajar na história do compositor, ao mesmo tempo que abre generosas janelas para que pensemos em nossas próprias histórias de vida. Nesse sentido, o enorme elemento central do palco, em forma de espiral e que se manifesta como um vórtice de luzes, palavras e emoções não poderia ser mais adequado. Há tempo para a memória amarga, como na interpretação espetacular de Cálice, mas também há tempo para celebrar a vida que supera qualquer opressão, como na versão encantadora de No Woman No Cry, de Bob Marley.
Momentos de poesia profunda (como a dobradinha de Refazenda e Refavela, que fazem o refinado parecer simples como uma canção de ninar) fluem com naturalidade rumo à musicalidade quase boba (no melhor sentido) de Vamos Fugir, em uma espécie de viagem no tempo que não leva de um ponto a outro, mas que se diverte na liberdade de suas idas e vindas. A  quase visceral Punk da Periferia (que contou com a participação especial de Adriana Calcanhotto) e a simplicidade de voz e violão de Se Eu Quiser Falar com Deus são extremos que, na verdade, dialogam e se complementam, aspectos de nós mesmos e do Brasil que vamos redescobrindo no decorrer da jornada proposta pelo show. 
Participação especial de Adriana Calcanhotto em 'Punk da Periferia' foi um dos momentos mais elétricos da noite no Estádio Beira Rio | BRENO BAUER/JC
Participação especial de Adriana Calcanhotto em 'Punk da Periferia' foi um dos momentos mais elétricos da noite no Estádio Beira Rio BRENO BAUER/JC
Em uma trajetória tão marcada pela ancestralidade, não surpreende que Gilberto Gil esteja cercado de familiares no palco. O filho Bem e o neto João se revezam na guitarra e baixo, o filho caçula José conduz a bateria, a filha Nara (mãe de João) é uma das vozes de apoio. A filha Preta Gil, recentemente falecida, foi lembrada de forma doce em Drão - mas a verdade é que Gilberto Gil não quis se deter muito sobre o assunto. "A última música que a Pretinha cantou comigo, para a mãe dela", comentou o cantor, emocionado mas sorrindo - e mais nada disse, talvez sabedor de que, mesmo diante da morte, o que de fato importou e importa é a vida, e é de vida que vale a pena falar e cantar.
O show Tempo Rei, como um todo, não se parece quase nunca com uma despedida. Nem mesmo na parte final, quando clássicos como Expresso 2222 e Andar com Fé se abraçam à singeleza do cover de Esperando na Janela, há a sensação de que o show está acabando, de que está chegando a hora de dizer adeus. Em cima do palco, recebendo de volta parte do amor que entregou ao mundo em forma de música durante seis décadas, o menino sábio Gilberto Gil sorri - e a gente entende que a memória vai ficar, que o tempo não é inimigo nem algo de que se tenha que ter medo. Que bela noite fomos todos e todas nós, junto com Gilberto Gil - e que bela vida seremos, junto com ele, enquanto houver voz para cantar.
Apesar de alguns problemas respiratórios causados pelo frio, Gilberto Gil foi animado e participativo durante toda a noite de sábado | BRENO BAUER/JC
Apesar de alguns problemas respiratórios causados pelo frio, Gilberto Gil foi animado e participativo durante toda a noite de sábado BRENO BAUER/JC

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