Passar os serviços relacionados à gestão dos resíduos sólidos urbanos, o lixo, para um parceiro privado por 35 anos é a proposta da prefeitura de
Porto Alegre para lidar com uma política pública que enfrenta dificuldades há anos na Capital e que não alcançou as
melhorias esperadas pelo prefeito Sebastião Melo (MDB) na sua primeira gestão.
A coleta convencional (orgânicos e rejeitos), a seletiva (materiais recicláveis secos), o tratamento, o transporte e a disposição final dos resíduos ficarão, caso avance a ideia do governo, sob responsabilidade de uma empresa ou de um consórcio de empresas. A intenção é reunir em um único contrato o que hoje é realizado por diferentes prestadores de serviço - cerca de 70, segundo a prefeitura.
Documentos sobre a
parceria público-privada (PPP) estão disponíveis no site da
Secretaria Municipal de Parcerias. Neles consta que, à parte dos serviços acima listados, as
Unidades de Triagem (UTs) hoje instituídas na cidade, formadas por cooperativas de catadores que realizam manualmente a separação do que é recolhido na coleta seletiva, poderão firmar contrato com o concedente do serviço, que é a prefeitura, ou com a concessionária, que é a empresa.
"No entanto, não há nenhuma especificação de como serão os contratos", alertam especialistas que apresentam nesta quarta-feira uma análise sobre a proposta da PPP. O grupo técnico é composto por um conjunto de profissionais ligados à temática da gestão de resíduos em diferentes áreas de conhecimento, vinculados à Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), à Unisinos, integrantes de organizações sociais e representantes do Movimento dos Catadores e Catadoras de Materiais Recicláveis (MNCR).
Por meio de nota, a prefeitura manifestou que "no prazo de 35 anos do contrato, estão previstos investimentos de R$ 92 milhões em modernização das Unidades de Triagem (UTs) de Porto Alegre. As associações e cooperativas continuarão responsáveis pela operação e gestão das UTs, mais modernas e com condições de trabalho apropriadas".
Além dos atuais grupos que atuam na triagem de recicláveis, a proposta da PPP prevê a construção de Unidades de Tratamento e Valorização de Resíduos Sólidos, sistema que fará a triagem dos materiais de forma mecanizada. Isso, na avaliação dos especialistas, "traz implicações tanto em termos do números de postos de trabalho a serem criados quanto em termos da qualidade do processo de triagem do material reciclável".
Conforme a análise, a concessionária poderá ter a comercialização como uma potencial fonte de receita alternativa ao contrato, o que "tende a gerar uma competição" com os catadores que têm neste serviço sua fonte de renda. Como a empresa fará também a coleta e a destinação dos resíduos, "o cenário da PPP, conforme foi instituído, gera monopólio comercial e desmonta a cadeia de gestão de resíduos existente", avaliam os especialistas.
O documento que questiona a realização da PPP cita dado do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) de 2022, segundo o qual 1.934 pessoas trabalhavam como assalariadas em 121 endereços profissionais na realização de coleta, tratamento e disposição de resíduos em Porto Alegre (nem todos são contratados pela prefeitura).
Já o número de catadores autônomos, que realizam uma coleta considerada pelo poder público como "informal", é desconhecido. Mas em volume, "estima-se que a coleta informal recolhe até quatro vezes" em comparação com a coleta seletiva oficial, do DMLU - informação esta que consta no Plano Municipal de Gestão Integrada de Resíduos Sólidos (PMGIRS).
A preocupação com o trabalho dos catadores é central na análise, que tece outras críticas à proposta da prefeitura. Por exemplo, o modelo de concessão é apontado como um risco pela falta de flexibilidade e pelos altos valores monetários envolvidos. "PPP é um modelo de gestão preditivo, não adaptativo; são mais apropriados para projetos que têm baixa incerteza", o que não seria o caso da gestão dos contratos do lixo.
No entanto, o grupo não apresenta alternativas ao modelo ou aos pontos que são alvo de questionamento, e aponta para isso a falta de "tempo hábil". A crítica é ao prazo para a
consulta pública, período disponibilizado pela prefeitura para a análise dos documentos da PPP, entre o início de dezembro e o dia 21 de fevereiro (prazo este prorrogado após
demanda judicializada).
Para os especialistas, "um período marcado por feriados de final de ano e férias impõe diversos obstáculos a uma efetiva participação social". Além disso,
são 23 documentos do edital e seus anexos, que somam 399 páginas. Na conclusão, a análise do grupo sugere que a consulta pública seja suspensa, "realizando assim a discussão da gestão de resíduos de forma mais inclusiva e eficaz".
A apresentação desta quarta-feira, dia 22, terá início às 9h, em evento aberto ao público na Sala Araucária do Centro Cultural da Ufrgs (Rua Eng. Luiz Englert, 333 - Campus Centro), com transmissão pelo
canal do YouTube da Frente pela Gestão de Resíduos Sólidos Participativa de Porto Alegre, à qual o grupo que redigiu a análise é vinculado. O documento pode ser consultado na íntegra
neste link.
Setores interessados em participar das decisões sobre a gestão dos resíduos em Porto Alegre pelos "impactos sociais, econômicos, urbanísticos e ambientais de longo prazo (...) não foram ouvidos no processo de construção da proposta", alegam os autores da análise da PPP.
A prefeitura da Capital, por meio de nota, afirma que "o projeto já foi apresentado para o Ministério Público, o Tribunal de Contas do Estado e para integrantes do Fórum de Catadores de Porto Alegre".
Ainda, a Secretaria Municipal de Parcerias sustenta que "o projeto de parceria com o setor privado para o gerenciamento de resíduos sólidos busca qualificar a limpeza da cidade e também promove a integração socioeconômica dos trabalhadores e das cooperativas de reciclagem". Aponta que, para isso, "a parceria abrangerá todos os serviços, desde a coleta dos resíduos sólidos urbanos até o tratamento e disposição final dos rejeitos".
A nota encerra com a defesa de que "a necessidade de modernizar e ampliar as práticas de manejo de resíduos é cada vez mais evidente, considerando o aumento populacional, a geração crescente de resíduos e os impactos ambientais associados".
Tratada pelo governo Melo
desde 2021, a proposta de conceder a gestão dos resíduos sólidos urbanos (lixo) para a iniciativa privada é um dos projetos prioritários do programa de parcerias do município.
A parceria público-privada (PPP) prevê que a licitação seja realizada através de concorrência pública, tendo como critério de julgamento o menor valor da contraprestação a ser paga pelo concedente.
A parceria abrangerá desde a coleta dos resíduos até o tratamento e disposição final dos rejeitos, inclusive resíduos da construção civil.
De acordo com a prefeitura, o investimento é estimado em R$ 1,2 bilhão ao longo de 35 anos, financiado integralmente pela taxa de coleta do lixo (paga com o IPTU), que não teria aumento.