A expansão das contratações via pessoa jurídica, fenômeno conhecido como pejotização, está no centro de um dos debates mais sensíveis do Direito do Trabalho contemporâneo. O presidente do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (TRT-RS), desembargador Ricardo Martins Costa, alerta que a prática, quando utilizada de forma fraudulenta, ameaça direitos constitucionais e compromete o financiamento da seguridade social.
Em entrevista ao Jornal do Comércio, o magistrado explica que a pejotização é legítima apenas quando há autonomia real na prestação de serviços — situação comum entre profissionais liberais, como médicos e advogados. “O problema é quando vemos trabalhadores como empacotadores ou garis contratados como pessoa jurídica. Isso é fraude”, afirma.
Para o presidente do TRT-4, a distinção entre a pejotização lícita e a fraudulenta será decisiva no julgamento que o Supremo Tribunal Federal (STF) deverá concluir em breve sobre o tema. A decisão tem potencial para redefinir o mercado de trabalho e o modelo de arrecadação da Previdência Social.
Ricardo Martins Costa destaca ainda que a pejotização fraudulenta “gera um rombo na Previdência e cria passivos trabalhistas impagáveis para as empresas”. O desembargador lembra que os encargos sociais — como FGTS e contribuições previdenciárias — sustentam políticas públicas e a própria estrutura do Estado Social instituído pela Constituição de 1988.
O magistrado pede cautela aos empresários e gestores diante do cenário de incerteza jurídica. Segundo ele, quem adotar práticas fraudulentas agora pode enfrentar uma enxurrada de ações trabalhistas após o julgamento do Supremo. “Tão logo o STF decida, veremos uma multiplicação de processos contra empresas que usaram a pejotização como forma de burlar direitos”, alerta. A seguir, a entrevista completa.
JC Contabilidade – Presidente, para iniciarmos: o que exatamente se entende hoje por pejotização?
Des. Ricardo Martins Costa – A pejotização é a prática de contratar um trabalhador individual como pessoa jurídica, em vez de um empregado com carteira assinada. Essa forma de contratação é legítima quando o trabalhador tem autonomia real para definir sua jornada, o modo e os métodos de trabalho, o valor dos serviços e as condições da atividade. O problema surge quando a empresa exige as mesmas obrigações de um empregado, com subordinação, habitualidade e controle. Aí há fraude.
O Supremo Tribunal Federal vem discutindo essa questão desde os debates sobre a terceirização das atividades-fim. O tribunal reconheceu que é possível terceirizar, desde que não haja fraude. O mesmo raciocínio vale para a pejotização. Quando o profissional tem autonomia, como ocorre com médicos, advogados e outros liberais, a prática é legítima. O problema é quando vemos casos de empacotadores, garis e outros trabalhadores sem autonomia, sendo contratados como PJ. Isso é fraude.
JC Contabilidade – Quais são os principais riscos trabalhistas da pejotização?
Des. Ricardo Martins Costa – Precisamos diferenciar a pejotização legítima da fraudulenta. A primeira é uma expressão da livre iniciativa, garantida pela Constituição. Mas a pejotização fraudulenta traz prejuízos graves. O trabalhador perde direitos fundamentais previstos no artigo 7º da Constituição, como 13º salário, férias remuneradas, FGTS e proteção previdenciária — aposentadoria, auxílio-doença e seguro-desemprego. Isso gera um rombo na Previdência Social e compromete o princípio da solidariedade que sustenta o sistema. Para as empresas, o risco é enorme: cria-se um passivo trabalhista e fiscal que pode se tornar impagável. Ainda que muitos processos estejam suspensos aguardando decisão do Supremo, quem adotar práticas fraudulentas hoje pagará essa conta adiante.
JC Contabilidade – E quanto ao impacto tributário dessas práticas?
Des. Ricardo Martins Costa – Quando legítima, a pejotização não representa um problema tributário relevante. A empresa recolhe os tributos devidos como pessoa jurídica. Mas quando é fraudulenta, há grave impacto na arrecadação previdenciária e, portanto, na manutenção do Estado Social. A Constituição de 1988 estruturou um modelo baseado na solidariedade e no valor social do trabalho. A fraude, ao desvirtuar essa lógica, quebra a espinha dorsal da Constituição. Os encargos sociais — como a contribuição previdenciária e o FGTS — não são apenas custos. Eles alimentam políticas públicas de moradia, saúde, transporte e programas como o Minha Casa, Minha Vida. Quando se frauda essas contribuições, compromete-se toda a estrutura social construída pela Constituição.
JC Contabilidade – O Supremo Tribunal Federal realizou recentemente uma audiência pública sobre o tema. O que o senhor espera desse julgamento?
Des. Ricardo Martins Costa – O Supremo terá de encontrar um equilíbrio entre a pejotização legítima e a fraudulenta. E quem define se há fraude é o Poder Judiciário Trabalhista, como determina a Constituição. O perigo é grande: estamos diante de uma possível ruptura da estrutura constitucional que garante um Estado social, justo e igualitário. Acredito, como juiz, que o STF será equilibrado e estabelecerá parâmetros claros para diferenciar as formas legítimas das fraudulentas. Essa decisão é aguardada por todos, porque afetará profundamente o mundo do trabalho e o financiamento da Seguridade Social.
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JC Contabilidade – Que orientações o senhor daria aos gestores e empresários diante desse cenário?
Des. Ricardo Martins Costa – O principal conselho é: cautela. Evitem cair na armadilha de contratações fraudulentas. Se o profissional contratado realmente tiver autonomia, sem subordinação e com liberdade para organizar o próprio trabalho, a pejotização é legítima. Mas se ele exercer atividades típicas de empregado, com horários, ordens e metas impostas, isso é fraude — e trará consequências jurídicas severas. Tão logo o STF julgue a matéria, veremos uma enxurrada de ações trabalhistas contra empresas que praticam a fraude. Por isso, os gestores devem agir com responsabilidade e prudência.
JC Contabilidade – O senhor gostaria de deixar uma mensagem final?
Des. Ricardo Martins Costa – O momento exige cautela e responsabilidade. Estamos em um ponto decisivo, e qualquer mudança precipitada pode abalar o modelo constitucional que nos garante direitos e equilíbrio social. A liberdade de contratar e de empreender é fundamental, mas tem limites fixados pela própria Constituição e pela ordem econômica.