Ricardo Gruner
Vinte vezes Almodóvar. Julieta, longa-metragem em cartaz desde ontem na capital gaúcha, completa a segunda dezena na filmografia do mais conhecido diretor espanhol. O título chega ao Brasil ainda na crista da onda: há dois meses, era exibido dentro da mostra competitiva do Festival de Cannes, arrancando aplausos do público. Apresentado em cores contrastantes, o trabalho explora o sentimento de culpa e a maternidade - temas que aparecem com pinceladas de suspense e muito melodrama.
Na narrativa, o realizador de Mulheres à beira de um ataque de nervos, Má educação e A pele que habito se debruça sobre a história de uma mãe cuja vida sofre nova reviravolta. Quando o público conhece a personagem-título, ela está prestes a esbarrar em uma amiga da filha. Acontece que a jovem Antía sumiu da vida de Julieta há 12 anos, sem dar nenhuma justificativa. Com uma pista sobre o paradeiro da garota, a protagonista vê também os fantasmas do passado retornarem.
O roteiro passa a se valer, então, de uma série de flashbacks para destacar a trajetória desta mulher. Entram em pauta sua relação com filha, marido, pais e até com locais que remetem a afeto e memória. De um realismo que só se desmente na própria ideia de ficção em longa-metragem - onde tudo ou quase tudo tem um porquê narrativo -, o filme acompanha o desenvolvimento de uma mente perturbada pela complexidade da culpa.
Nesse sentido, Julieta não deixa de ser um estudo sobre a obliquidade no elo entre ações e reações. Seja no cotidiano, em situações-limites ou no somatório do convívio, tanto o que foi dito quanto o que não foi dito são capazes de dar origem a faíscas incendiárias. É neste mar de incerteza que tateia a protagonista, interpretada por Adriana Ugarte e Emma Suárez em diferentes fases da vida. E a troca das atrizes, aliás, acontece de maneira peculiar sem deixar de denotar uma transformação emocional e psicológica.
A personagem entra para o rol de mulheres atormentadas às quais o cineasta vem se dedicando ao longo da carreira. Entretanto, a diferença, conforme o próprio realizador já afirmou, é que esta pode ser vista como a mais vulnerável de suas personagens. Se, por um lado, a sobriedade narrativa ressalta o que há de mais humano em Julieta, por outro, pouco a pouco, quebra a aura de mistério indicada no começo do filme.
E mesmo que o relacionamento com a filha esteja no cerne da discussão, a questão da maternidade não fica atrelada às duas, assim como os tópicos levantados sobre casamento não têm foco apenas na protagonista e Xoan (papel de Daniel Grao). No panorama apresentado pelo espanhol, pais e filhos se movem entre a ausência, desapego e o esquecimento em uma unidade quase cíclica.
Para desenvolver este trabalho, o espanhol teve como base um material já publicado - algo que não é comum em sua cinematografia. O roteiro da obra é inspirado em três dos oito contos que compõem o livro Fugitiva (Biblioteca Azul, 352 págs., R$ 44,90), de Alice Munro, escritora canadense contemplada com o Prêmio Nobel da Literatura em 2013. Já o elenco inclui também nomes como Michelle Jenner, Rossy de Palma, Darío Grandinetti e a atriz-mirim Blanca Parés.
Quinto título com o qual Pedro Almodóvar concorreu à Palma de Ouro, o longa-metragem saiu do festival francês sem nenhum dos principais prêmios. Como consolação, o realizador foi considerado o melhor diretor do evento pela International Cinephile Society - formada por jornalistas, pesquisadores e outros profissionais ligados à indústria do cinema.