Diante de uma crise na saúde da Região Metropolitana de Porto Alegre e de diversas críticas de prefeitos locais a um suposto não cumprimento, por parte do governo do Rio Grande do Sul, dos repasses mínimos previstos na Constituição para Ações e Serviços Públicos de Saúde (ASPS), de 12% da receita, o Tribunal de Contas do Estado (TCE-RS) afirma que a gestão Eduardo Leite (PSDB) vem, sim, alcançando este dispositivo constitucional.
Acontece que a execução deste mínimo ocorre com a inclusão das despesas de inativos e pensionistas do Estado no cômputo, o que está em debate e ainda pode ser revisto.
Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, o presidente do TCE-RS, conselheiro Marco Peixoto, trata deste e de outros temas relativos às contas do RS, como o acompanhamento do tribunal diante das discussões sobre o possível ingresso do Estado no Propag e a atual situação das contas públicas diante da suspensão da dívida com a União até abril de 2027. Peixoto também trata das ações de prevenção da corte, a partir de consultorias junto a munícipios para que se evite problemas contábeis nas auditorias do TCE.
Jornal do Comércio - Tratando da questão da dívida do Estado com a União, atualmente o Rio Grande do Sul está inserido no RRF, e existe uma discussão de adesão ou não ao Propag. Como o TCE tem acompanhado?
Marco Peixoto - Como o Tribunal não tem como interferir nas decisões dessa negociação, o que acontece? Temos que ficar atentos para aquilo que for melhor para o nosso Estado. Mas estamos cumprindo rigorosamente aquilo que foi determinado quando fizeram o acordo do Regime de Recuperação Fiscal (RRF), tanto é que temos um limite de gastos aqui, que não podemos exceder em nenhum centavo sem ter anuência por parte de uma comissão que trata desse assunto na Secretaria da Fazenda. Então, nós (TCE e Piratini) estamos ainda atrelados. Lógico que se houver uma nova renegociação com o Propag, vamos cumprir exatamente aquilo que for determinado pela nova formatação desse acordo. Agora, quanto à interferência nossa em relação a esses acordos entre União e Estado, não temos, não é a nossa função. Estamos preocupados com isso, porque, na verdade, a gente sabe que a dívida está aumentando, mas, ao mesmo tempo, sabemos que o atual governo está sendo contemplado, porque não está sendo cobrada a dívida. Por isso que tem resultado positivo nos investimentos que estão sendo feitos. Então, só temos que auditar os investimentos que o governo do Estado está fazendo nas suas obras e nas suas secretarias, através do nosso grupo de trabalho, que é formado essencialmente para acompanhar as contas do governo.
JC - E seria sustentável para as contas públicas a permanência do Estado no RRF?
Peixoto - Considerando a possibilidade de permanência do Estado no Regime de Recuperação Fiscal, ao final do período de 36 meses de suspensão da dívida, o Estado retomaria o pagamento das parcelas da dívida, inicialmente no percentual de 55%. Ressalto que as prestações são calculadas mensalmente com base na Tabela Price, considerando juros nominais de 4% ao ano e atualização do saldo devedor pelo IPCA, limitada à variação da taxa Selic. Atualmente, o Estado tem cumprido as metas de resultado primário ajustado estabelecidas no Plano de Recuperação Fiscal. Essas metas anuais têm como objetivo assegurar que o Estado esteja em condições de retomar o pagamento integral da dívida ao término do Regime de Recuperação Fiscal.
JC - Qual o impacto da suspensão da dívida por três anos nas contas Estado?
Peixoto - A suspensão da dívida por 36 meses, conforme previsto na Lei Complementar número 206, de 2024, deverá resultar em um total estimado de R$ 14 bilhões em prestações postergadas ao final do período. No ano de 2024, foram pagos
R$ 1,2 bilhão referentes ao serviço da dívida. A partir da vigência da referida lei, até o final de 2024, deixou de ser pago R$ 1,9 bilhão, recursos que foram transferidos ao Funrigs.
R$ 1,2 bilhão referentes ao serviço da dívida. A partir da vigência da referida lei, até o final de 2024, deixou de ser pago R$ 1,9 bilhão, recursos que foram transferidos ao Funrigs.
JC - E o TCE tem acompanhado a situação dos recursos destinados ao Funrigs?
Peixoto - Vamos por etapas. Estamos julgando as contas de governo de 2022. O Funrigs se refere a 2024 e a 2025. Ainda está em análise, não podemos antecipar, porque temos ainda 2023 para ser julgado, que vai ser daqui a questão de um mês, para depois entrar em 2024 e 2025. Então, não podemos antecipar isso. E lembrando que cada ano tem um relator que responde pelas contas, e que não é o presidente. O relator é aquele que tem a responsabilidade de elaborar o texto do relatório que é discutido em (tribunal) pleno. Mas sim, o tribunal tem acompanhado as despesas decorrentes do Funrigs e temos um painel de controle social que trata da questão das despesas decorrentes da enchente, e logo ele vai passar a inserir também essa visualização para esse acompanhamento em relação aos valores do Funrigs.
JC - A partir das eleições municipais de 2024, houve trocas nas gestões de prefeituras, e existiram relatos de dificuldade de acesso às contas das prefeituras. Como está a situação contábil dos municípios?
Peixoto - De modo geral, não temos tido muitos problemas. Temos uma consultoria que está à disposição de todos, e temos a Diretoria de Controle e Fiscalização, que é a que trata dessas questões que envolvem os novos (prefeitos). Então, a fase mais difícil, realmente, é quando há uma transferência de gestão que não tem o contato (entre os gestores). Mas as questões políticas, ao tribunal, não nos cabem. E esse ano foi a primeira eleição que teve a obrigatoriedade de ter uma comissão de transição, que foi uma lei estadual, e o tribunal cobrou isso, orientou eles a criarem a comissão de transição. Então, essa comissão de transição foi um fator que não permitiu que houvesse qualquer 'incêndio'. Mas o que acontece? Existem problemas pontuais em qualquer lugar, às vezes o município não tem pessoas tão capacitadas, e por isso a gente oferece orientação, às vezes existem questões. Problemas pontuais vão acontecer sempre.
JC - E como foi o acompanhamento e o auxílio aos municípios mais atingidos pela enchente?
Peixoto - No período da enchente, elencamos 27 municípios em que dávamos auditoria assistida. Os mais atingidos da grande Porto Alegre foram assistidos diretamente por um auditor designado. O que aconteceu, em termos gerais? Conseguimos economias enormes para os municípios pela segurança de qualquer contrato, de qualquer contratação de material, de mão de obra, de hora máquina, porque o tribunal estava atento. Não permitíamos que houvesse valores fora da normalidade. Além do auxílio a esses municípios que estavam devastados, também se permitiu que essas contratações fossem acompanhadas, não só fiscalizadas. Foi um suporte e também um controle. Até porque elas (as contratações) se deram de forma emergencial, a maioria delas. Então, municípios que tiveram toda a sua estrutura, inclusive física, comprometida, em muitos municípios o único banco de dados que restou para eles operar eram aqueles dados que eles tinham encaminhado (ao TCE), e que tínhamos aqui. E até no Estado, a Procergs foi atingida. Além de uma medida de solidariedade, porque os municípios estavam devastados, também foi de fiscalização, foi uma atuação muito importante.
JC - No âmbito do governo do Estado, prefeitos da Região Metropolitana de Porto Alegre vêm acusando o Piratini de não cumprir o mínimo constitucional da saúde, de 12% da receita. O governo está cumprindo?
Peixoto - O próprio tribunal alertou aquilo que não vinha sendo aplicado. E isso aí, logicamente que conversando com a secretária (Arita Bergmann), a gente comunicou a ela dessa situação em questão de recomendação. Existem, na verdade, umas questões bem pontuais ali que o Estado entende que poderia utilizar a despesa. Pelos critérios nacionais, não poderia. Mas o Estado tem um parecer jurídico da PGE (Procuradoria-Geral do Estado), e isso está em discussão. Então isso é uma discussão que está lá nas contas do governador.
JC - A partir do parecer da PGE e nos anos em que o tribunal já julgou as contas, qual o percentual da receita encaminhado pelo governo Leite para a saúde?
Peixoto - Primeiramente, é importante observar que o TCE não julga as contas do chefe do Executivo do Estado. A competência constitucional é para emissão de parecer prévio, sendo o julgamento efetuado pelo Legislativo. O percentual de aplicação mínima em Ações e Serviços Públicos de Saúde (ASPS) é calculado conforme a receita líquida de impostos e transferências, e não a receita líquida corrente. Em relação ao percentual aplicado pelo Estado, existe decisão proferida nas contas relativas a 2021 para que se acompanhe o trâmite de um pedido de orientação técnica, haja vista seu potencial reflexo nos critérios empregados na apuração dos valores aplicados em ASPS. Portanto, durante a atual gestão, foram repassados 12,15% em 2019, 12,14% em 2020, e 12,19% em 2021. As contas posteriores a 2021 ainda não foram apreciadas pelo Tribunal Pleno, com exceção da referente a 2022, que teve a apreciação iniciada na semana passada e está em fase de transcrição da decisão.
JC - Que outras questões o Tribunal de Contas está trabalhando em prol das contas dos municípios gaúchos e do Rio Grande do Sul?
Peixoto - Nós colocamos um painel social que permite a qualquer cidadão acompanhar as despesas, as receitas dos municípios e do Estado durante as enchentes. Segundo: nós temos o programa Licitacom, que é uma coisa inédita. Ou seja, você é prefeito de um determinado município, você abre uma licitação de determinada compra de um material ou de um serviço, você entra em contato com a nossa equipe e nós vamos dizer se esse valor está dentro dos padrões, ou está com sobrepreço, ou tem algum erro. O Licitacom é uma ferramenta de trabalho, que também pode ser acompanhada através do painel social. Ele vai na linha desse acompanhamento concomitante que é feito pelo Tribunal, para dar segurança e garantia de que não vai haver problema com essa licitação. Os editais são inseridos pelos municípios dentro do sistema e é feito um acompanhamento pela auditoria, pelo corpo técnico. Outro fato: nós iniciamos esse ano já com uma ferramenta bem clara e objetiva, de que todos os novos prefeitos ou prefeitas que assumiram já estão de posse, que é uma cartilha das orientações do primeiro ano de mandato. Se eles seguirem as recomendações que nós colocamos nesta cartilha, seguramente, se eles não incorrerem em nenhum erro ou falha, eles vão fazer uma administração que não vai ter problema no futuro, quando for auditado.
JC - Portanto, o Tribunal está trabalhando para prevenir que gestores venham a ter problemas contábeis?
Peixoto - Desde o ano passado, têm sido editadas diversas cartilhas sobre o último ano de mandato, o que fazer, como fazer as contratações emergenciais em razão da enchente, questões de saúde, questões de RPPS (Regime Próprio de Previdência Social). Foram 14 (cartilhas) e estão sendo feitas outras. E agora, então, nós editamos duas mais recentemente, que foi exatamente o primeiro ano de mandato e outra dizendo o que não fazer, quais são os principais erros. Tudo isso faz parte desse trabalho de acompanhamento, de orientação, de prevenção e de auxílio que tem sido feito aos gestores.
JC - E quanto à transparência? A nível federal, muito tem se debatido a questão das emendas Pix...
Peixoto - Nós lançamos agora um projeto muito importante, que teve um destaque até a nível nacional, que é o acompanhamento das emendas Pix. Todos nós não tínhamos conhecimento, até agora, de onde é que surgiu o recurso, quem encaminhou o recurso e onde é que foi aplicado. E agora nós vamos ter um acompanhamento, em parceria com o Tribunal de Contas da União, que nós vamos auditar os recursos das emendas Pix, até para que esses valores não sejam distribuídos de forma incorreta. Então, você é de um município qualquer e recebeu do parlamentar uma emenda Pix, mas a prefeitura não tem conhecimento, porque essa emenda Pix foi diretamente para uma entidade, e essa entidade, às vezes, não tem como prestar contas. Então, nós queremos auditar, saber quem é o responsável por isso. Mais especificamente, os valores recebidos por prefeituras, por indiretas -órgãos da administração que tenham recebido - e o governo do Estado. Então, nós vamos ter dois tipos, o do governo do Estado e das prefeituras, e todos eles podem ser vistos através do painel social. Até que haja uma regulamentação lá em Brasília, porque ainda está muito confusa essa questão das emendas Pix, se vai permanecer ou não. Enquanto permanecer, nós vamos auditar. Que é uma ferramenta importante que nós lançamos na nossa gestão, que qualquer cidadão pode fazer o acompanhamento. Qual foi o parlamentar que patrocinou ou que está vinculado, que direcionou, o órgão que recebeu, no que foi utilizado, se já há prestação de contas, o valor.
JC - Para dar mais transparência à destinação dos recursos...
Peixoto - É uma ferramenta importante que nós lançamos na nossa gestão, que qualquer cidadão pode fazer o acompanhamento. Qual foi o parlamentar que direcionou, o órgão que recebeu, no que foi utilizado, se já há prestação de contas, o valor.
Perfil
Marco Antonio Lopes Peixoto nasceu em Santiago, em 1955. É engenheiro civil formado na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e especialista em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de Lisboa (Portugal). Foi eleito vereador de Santiago pela primeira vez em 1998 e, no ano seguinte, presidiu a Câmara Municipal. Em 1990, foi eleito para o primeiro de cinco mandatos como deputado estadual. Legislou no Parlamento gaúcho entre 1991 e 2009. Ingressou no Tribunal de Contas do Estado em 16 de dezembro de 2009. Foi presidente da Segunda Câmara, depois da Primeira Câmara, do Conselho de Qualidade Técnica até chegar à presidência do tribunal para o biênio 2016-2017. Em 14 de dezembro de 2023, foi empossado presidente do TCE pela segunda vez e, em 2024, foi reeleito para o cargo.