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Publicada em 04 de Maio de 2025 às 10:22

Pescadores de Rio Grande vivem dificuldades mesmo após um ano da enchente

Marcos Adriel é pescador artesanal na Lagoa dos Patos e ficou 40 dias longe de casa, após perder quase todos os seus bens em maio de 2024

Marcos Adriel é pescador artesanal na Lagoa dos Patos e ficou 40 dias longe de casa, após perder quase todos os seus bens em maio de 2024

Josimara Megiato
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Josimara Megiato
Uma das atividades econômicas mais importantes do município de Rio Grande, que integra a chamada Economia Azul, é a pesca. O município é considerado o maior produtor de pescados do Rio Grande do Sul, e a pesca artesanal, principalmente no Estuário da Lagoa dos Patos, é relevante tanto para a economia da cidade quanto para o sustento de milhares de famílias em cidades da região Sul gaúcha.
Uma das atividades econômicas mais importantes do município de Rio Grande, que integra a chamada Economia Azul, é a pesca. O município é considerado o maior produtor de pescados do Rio Grande do Sul, e a pesca artesanal, principalmente no Estuário da Lagoa dos Patos, é relevante tanto para a economia da cidade quanto para o sustento de milhares de famílias em cidades da região Sul gaúcha.
Porém, fatores como mudança climática, legislação, políticas públicas e, em especial, a ocorrência da enchente de 2024 que assolou todas as regiões do RS, estão ameaçando uma das ocupações mais tradicionais do município, a de pescador.
 
Essa transformação afeta em cheio a vida de pescadores artesanais como Marcos Adriel, morador de Rio Grande e no ofício desde os 11 anos de idade. A enchente levou todos os bens de sua residência, e ele teve de ficar fora de casa por 40 dias, abrigado na casa de parentes. Como a cheia atrapalhou sua principal atividade, durante o período, Marcos sustentou sua família fazendo pequenos serviços. Embora há alguns meses tenha retomado sua rotina na pesca, algo mudou. “A gente está vendendo, aos poucos vamos indo. Mas não como era antes”, desabafa.
Entre as dificuldades está o próprio impacto das cheias, que diminuiu o volume da pesca de espécies como o camarão. Outro aspecto está nos regramentos impostos a pescadores artesanais, como a cota para a captura da tainha. “A lei prejudica muito o pescador pequeno, aí ele fica com medo de tudo”, pontua.
Em entrevista ao Jornal do Comércio, o pescador contou o que a enchente representou para sua vida pessoal e profissional, e como vê o futuro na pesca. “Eu vou morrer mesmo na pesca. Mas meu filho, eu tentei tirar dela. Acho que, daqui a um tempo, não vai mais existir pescador. Os filhos da gente não vão mais querer isso aqui”, diz.
Jornal do Comércio – Como era sua rotina antes da enchente?
Marcos Adriel - Era uma rotina normal: a gente trabalhava, pescava, e fazia um serviço por fora quando parava a pesca, nesses quatro meses de defeso em que a gente não pode pescar, né?
JC – E como ficou depois?
Marcos - Quando veio aquela enchente... a gente esperava que aquela água iria chegar em nós, a gente via, para o lado de cima (do estado) o que estava acontecendo, sabia que tudo iria passar por nós, que não tinha como escapar. Aí, deu água dentro da minha casa, pela cintura. Eu perdi tudo, não deu para salvar muita coisa. Eu perdi quase tudo mesmo. Aí, depois da enchente, a gente começou a fazer nossa rotina de novo. Claro, está difícil retornar ao que tínhamos. A pescaria está pouco, e o que a gente ganha usa mais para comer, hoje em dia, do que para fazer compras, ajeitar a casa.
JC – O senhor teve de sair de sua casa?
Marcos – Eu estive 40 dias fora, (abrigado) na casa da tia da minha esposa. Quando a água baixou, eu comecei a lavar a casa, a limpar, mas mesmo assim nós levamos três meses para irmos nos arrumando. A gente via na televisão e pensava: “ah, coitados, teve gente pior que a gente. Passamos por uma crise feia, mas teve gente que foi pior. Mas passamos por um sufoco muito grande aqui. Até hoje eu não terminei de arrumar.
JC – E como o senhor soube da enchente? Saiu antes de casa, esperou? Como foi?
Marcos - A gente sabia que essa água iria vir para nós. Somos o final da lagoa, toda água que cair lá em cima (no Norte), iria vir em nós. Mas não esperávamos que ela chegaria tão longe quanto chegou. Ela subiu três quadras além da praia. Foi uma água “expansiva”, não foi algo que chegou arrasando e foi embora. Ela se expandiu por toda a área, pela cidade, a lagoa, as vilas, os pescadores nem se fala. Teve gente que perdeu caiaques, bote, redes, sabe? Perdeu muita coisa, afetou muito, foi demais. Foi uma coisa terrível mesmo.
JC – O senhor saiu de casa imediatamente?
Marcos – Não. Eu tirei minha esposa, minha sogra e meu filho de casa e levei lá para a tia da minha esposa. Eu fiquei dois dias em casa, ainda. Mas o que aconteceu é que, cada vez que eu levantava os móveis, cada vez a água “buscava” mais. Aí não deu mais tempo. Eu consegui um caminhão, mas aquele caminhão grande não conseguiu entrar na rua, o quartel já não entrava mais aqui também. Não adiantou mais nada, já tinha perdido guarda-roupa, já tinha caído na água, pias... essas coisas de madeira, foi tudo pro chão. Não teve o que fazer.
JC - O senhor teve alguma auxílio?
Marcos - Sim, tivemos ajuda do governo. Esses R$ 5 mil, a minha esposa pegou. Eu não peguei porque eu sou do cadastro dela, o cadastro único, né? Eu não tenho. Claro, a gente mora na mesma casa. Foi a ajuda que a gente teve. Mas não que esses R$ 5 mil dessem. Deu para dar uma recuperadinha em alguma coisa, mas dizer que... mas não podemos nos queixar, pois ainda recebemos R$ 5 mil.
JC – E teve alguma ajuda da família?
Marcos - Não, a gente ganhava sacolão. Sacolão eles davam para a gente. Quem ficou aqui na vila, na nossa rua, ganhava uma marmita. Mas eu saí daqui, não aguentei, ui embora, fechei a porta. Eu vinha todos os dias olhar a casa, mas só olhar, pois não tinha o que fazer. Foi um troço desesperador. As pessoas não esperam, eu imaginava aquelas pessoas lá para cima, que levou as casas. A gente aqui foi um desespero, né? E temos um desespero ainda, que tem muita gente aqui, que não se recuperou ainda da enchente. Eu também, ainda não, não consegui terminar tudo. As marcas que a enchente deixou, não consegui terminar tudo. Eu tenho duas casas para arrumar, minha e da minha sogra. E ela, coitada, recebe um salário (mínimo). E eu dependo da pesca, então não dá para fazer tudo como a gente quer. E depois, não tivemos mais nada (de ajuda). Depois ficou... fica tudo no esquecimento. A verdade é essa aí. Fica tudo no esquecimento. Mas vamos agradecer que não aconteceu nada com a nossa família.
JC – Do ano passado para cá, o que o senhor percebe que mudou? Que vestígio a enchente deixou para a comunidade?
Marcos - Parece que deixou o povo mais assustado, mais isolado, sabe? O pessoal tem medo, começa a chover lá para cima, o pessoal já fica com medo. Ah, será que vai vir essa água? Agora mesmo, essas chuvas todas que aconteceram aí, lá pra cima, o pessoal está tudo com medo, já. Temos medo porque a gente já sentiu muita enchente aqui, entendeu? Mas era uma enchente de chegar, assim, a levantar os móveis a 40 centímetros, e a água não chegar neles. Mas não de a gente levantar um metro e a água ainda alcançar. Mais ali para cima o pessoal está com medo demais. É uma coisa que nós não esperávamos. Muita gente não acreditava (na gravidade do que viria). Achamos que ela chegaria hoje aqui e iria embora amanhã, como várias vezes aconteceu aqui. De os pátios, no outro dia, secarem, mas ela “aguentou” 30 dias, foram 30 e poucos dias com água em cima dos pátios. Ela não secava nunca.
JC - O que a pesca significa para o senhor?
Marcos – Eu comecei com 11 anos. O meu pai é pescador, a minha família toda é pescadora. Essa é a minha profissão, não tenho outra. Foi isso o que a gente aprendeu por toda a vida, e eu tenho pouco estudo. A pesca para mim significa tudo, eu não tenho o que fazer sem ser ela, entendeu? E está cada vez ficando pior para nós que somos pescadores artesanais... está ficando difícil de sobreviver dela (a pesca artesanal).
JC – Em relação ao preço do camarão, do siri, do peixe... como ficaram as vendas depois da enchente?
Marcos - O povo fica com medo, né? A água do mar é corrente, ela veio lá de Porto Alegre, mas não parou, ela chegou aqui e esgotou. Não prejudica o peixe, o camarão, pode-se comer tranquilamente. Mas o pessoal fica com medo. Ficou uma coisa que... foi um desastre da natureza que ninguém esperava. Mas a gente está vendendo, aos poucos vamos indo. Mas não como era antes.
JC – E como foi para trabalhar nesse período?
Marcos – O mais difícil foi ter de correr de um lado para o outro. Eu tinha de trabalhar para trazer o alimento para a família, e tinha de cuidar da casa aqui. Mas a pesca, não havia. Se a gente está na casa dos outros, tem que ajudar. Aí o que a gente faz? Vai trabalhar de biscate, de servente, para trazer uma comida para casa.
JC – Quando voltou para a pescaria?
Marcos – Apareceu pescaria uns quatro, cinco meses atrás. Demorou muito tempo. Achamos que não ia ter mais pescaria.
JC – E o senhor conseguiu voltar para sua rotina habitual?
Marcos – A água ficou muito diferente. Ela não é mais a mesma coisa. Ficou algum resíduo da enchente no chão. Não está prejudicando, mas a água não voltou a ficar clara como era. Nós não tivemos safra de camarão. Infelizmente. Mas eu não perdi minhas embarcações. Consegui arrumá-las de novo e fui à luta. É o que a gente faz sempre, né? A gente vive disso.
JC – Que desafios o senhor enfrenta hoje, para continuar pescando?
Marcos – Tem tantos desafios... mas o que manda na nossa rotina de pesca é a natureza. É a natureza que controla a nós. Nós não controlamos a pesca. Deu enchente e não teve pescaria. A gente fica desde as duas horas da tarde no mar, para trazer uns 10, 12 quilos de camarão. O que a gente ganha, é no dia a dia. Ganhamos hoje para comer amanhã.
JC – E com essas dificuldades, pretende continuar na pesca?
Marcos – Ah, eu vou morrer mesmo, na pesca. Dessa, eu não saio mais. Mas meu filho, eu tentei tirar dela. Eu acho que, daqui a um tempo, não vai mais existir pescador. Quando a minha geração terminar. Os filhos da gente não vão querer mais isso aqui. Não tem mais o que tirar. Está ficando cada vez mais difícil, e as leis estão muito em cima de nós. A lei prejudica muito o pescador pequeno, aí ele fica com medo de tudo. Eles pedem muita coisa que a gente não tem.
JC – Que mensagem o senhor deixa para outras pessoas que passaram pela mesma situação?
Marcos – Que elas tenham fé quando isso acontecer. Que não desanimem. A vida é uma só e a gente tem de lutar por ela. Perder alguém da família é triste, fica mais difícil para se recuperar. Mas não desistir nunca. Eu não vou desistir. Enquanto eu tiver força, vou lutar sempre, aconteça o que acontecer. É acreditar em Deus e seguir em frente. Nunca se entregar.
Colaborou Lívia Araújo

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