Nos dias 15 e 16 de agosto, o Instituto Horizontes promoveu, em Porto Alegre, mais uma edição da sua Jornada Científica. Desta vez, com o tema Psicanálise e Epigenética: Clínica de bebês em risco de TEA. Entre as principais atrações, estava a psicanalista Marie-Christine Laznik, que é referência internacional no campo do diagnóstico e tratamento precoce do Transtorno do Espectro Autista (TEA).
O Jornal do Comércio conversou com a pesquisadora franco-brasileira, que estuda os sinais de risco para a condição em bebês entre quatro e nove meses. Na entrevista, a psicanalista destacou a importância de estar atento aos movimentos gerais dos pequenos, intervindo desde cedo de maneira transdisciplinar.
Jornal do Comércio - Antes de mais nada, quem é Marie-Christine Laznik? E, em qual momento o estudo do Transtorno do Espectro Autista (TEA) entra na tua trajetória?
Marie-Christine Laznik - Então, eu sou uma psicanalista. Dizem que eu sou franco-brasileira. Eu tive que fugir do Brasil, em 1972. Eu não tinha roubado o banco, não. Tem um filme bonito que ganhou um Oscar de melhor filme estrangeiro, chama-se Ainda Estou Aqui, e mostra por que quem ficava morria. Então, eu faço parte dos que estão vivos. E, bom, aí, quando eu cheguei na França, eu comecei a trabalhar em um serviço para crianças autistas. A nossa equipe tinha 12 crianças e 30 adultos cuidando. E o preço por criança era o mesmo que em um serviço de neurocirurgia. Você tinha muito dinheiro para poder pagar. Cada criança tinha duas enfermeiras, tinha cinco médicos residentes, tinha eu de jovem psicanalista lá, tinha educador, fono… tudo o que você pudesse imaginar. Mas, não deu certo. Porque a ideia que a gente tinha na época, que era uma ideia totalmente errônea, era de que alguma coisa provinha dos pais. Então, se a gente fizesse um serviço maravilhoso e tirasse as crianças da segunda até sexta noite da família dos pais, eles melhorariam, o que é completamente errado. A partir daí, eu cheguei à conclusão de que a gente precisava pensar de outro jeito de trabalhar com os pais. No início dos anos 1980, comecei a atender crianças com os pais, crianças de risco. Isso deu num livro que saiu em 1995. Se a gente atendesse com meses, antes de um ano, será que isso não mudaria tudo? O problema é que, na época, ninguém sabia como avaliar sinal de risco em bebê. E aí eu ficava suplicando a todos os pesquisadores que eu conhecia na área de psiquiatria da criança para procurarem grades. Não existia. Acabou que, se ninguém faz, nós fazemos. E fizemos uma grade de pesquisa com 600 médicos da rede pública e 14.500 bebês. Hoje, penso que é completamente louco. E, bom, avaliamos, descobrimos que tinha sinais que a gente podia notar entre os quatro e os nove meses. E aí começavam a acontecer as grades de avaliação. Hoje em dia, o mundo explodiu. A gente sabe avaliar com três dias, porque hoje a gente conhece sinais motores de risco.
JC - Nos últimos anos, tem se falado bastante sobre um aumento do número de casos de autismo. Esse aumento realmente existe?
Laznik - O critério de avaliação do espectro autístico é muito largo hoje. Tenho colegas que pensam que pode haver mais fatores de poluição na vida fetal. Mas, eu e muitos professores de medicina achamos que o fator da expansão do espectro é o fator mais dominante. Eu trabalhei durante 45 anos no Centro de Atendimento de Crianças e Adolescentes em Paris. Hoje, acho que 95% das crianças que eu atendi, estariam no espectro de uma maneira ou de outra. Então, há um alargamento grande do espectro.
JC - Em uma entrevista à Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, comentaste sobre as relações entre a ciência e a psicanálise. Psicanálise é ou não é ciência?
Laznik - Eu penso que não é ciência. É uma práxis para mim. Mas, o fato que nós tenhamos essa práxis não nos impede de estar a par do que os cientistas fazem no campo das neurociências, no campo da genética… nos campos que nos interessam. Agora, por exemplo, eu estou interessadíssima em certos campos da neurologia que estão estudando fragilidades em fetos ou em bebês, fragilidades de todo o sistema neurovegetativo. Eu tenho uma práxis, que é a psicanálise, mas eu posso dialogar com eles. Não precisa a psicanálise ser uma ciência para eles. Para mim, não precisa.
JC - Fizeste psicanálise com o Jacques Lacan por oito anos. Embora ele não tenha se debruçado diretamente sobre o autismo, é possível aplicar os conceitos lacanianos na pesquisa sobre o tema? Se sim, quais?
Laznik - Eu roubo alguns dele, viu? O Lacan me ensinou uma coisa. Ele ia buscar no Freud aquilo que interessava a ele, só modificava um pouco em função do que ele estava trabalhando. Eu faço a mesma coisa. Se tem conceitos que me interessam muito, eu pego. Tem coisas que não me são úteis. Sabe? É como ferramenta. Você vai fazer uma obra numa casa. Você usa as ferramentas que te são úteis. Um exemplo é o conceito de pulsão, que ele desenvolveu em 1964 e já era uma releitura de Freud, porque ele mostrava que nós temos três tempos da pulsão. Um deles, o “eu” da gente, busca se fazer objeto do outro. Esse tempo da pulsão é muito importante e diz respeito ao prazer do outro. E os bebês de risco que vão se tornar autistas não conseguem fazer isso.
JC - Quem são esses bebês de risco?
Laznik - Como é que a gente sabe que um bebê é de risco? A partir dessa análise dos movimentos gerais. O movimento geral é uma coisa autônoma do bebê, que a gente vê muito bem. Vê no feto, tem toda uma pesquisa agora sobre feto. Mas, vê na criancinha até quatro ou cinco meses. Depois desaparece, porque vão aparecer os movimentos voluntários no lugar. Os movimentos gerais são como um equipamento. O seu equipamento motor é de uma maneira ou de outra desde a vida fetal, certo? Hoje em dia, a gente sabe que os bebês que aos quatro meses têm problemas nesses movimentos gerais também terão problemas aos 18 meses. Só que aos 18 meses é tarde. E outra forma do risco é quando você nasceu de irmão ou irmã de autista. Se, além disso, ele tiver um equipamento motor frágil, então o risco é maior. É claro que nenhum desses sinais isoladamente faz com que você vire autista. Tem um monte de fatores que colaboram para você ter um bebê que vai se tornar autista, por exemplo, a dor. Ninguém vira autista se não foi doloroso como bebê. Essa dor é ligada a fatores internos epigenéticos, porque podem ser mudados nos primeiros meses.
JC - Em um evento na Universidade Federal de Juiz de Fora, comentaste que "o autismo é uma doença neurodesenvolvimental que demora para se manifestar e que, se a gente intervém antes de se desenvolver, esse bebê não vai chegar a ser autista". O que isso significa?
Laznik - A gente não nasce autista, vai se tornando. Isso acontece muito rapidamente. O próprio cérebro vai se modificar, porque, para construir cérebro típico, você precisa de estar interagindo. Se você tem dor, se você está muito desorganizado no teu corpo, se você tem medo da preocupação do outro... como é que você vai olhar para o outro? Não tem como. Então, o teu cérebro não vai se construir como o do outro. A gente está acostumado que pega o bebê no colo, ele se aninha. Agora, se um bebê te empurra, o que a gente pensa? Que ele não quer a gente, não é? A mãe diz "ele não gosta de mim", quando, na verdade, é um bebê doloroso.
JC - Isso quer dizer que é possível "curar" ou "reverter" um quadro do autismo?
Laznik - Não tem cura. Mas, você pode tentar não entrar no buraco. Entende? Não é bem cura. É evitar a catástrofe iminente. Você está diante de um bebê já doloroso, ele nasceu com dificuldades inatas. Mas, elas não precisam se tornar autismo, desde que a gente tem intervenha de maneira transdisciplinar e muito rapidamente.
JC - Como seria essa intervenção?
Laznik - Na França, o psicanalista nunca trabalha sozinho. Tem o pessoal da integração sensorial ou psicomotricistas que têm uma formação sensório-motora. Psicomotricidade sozinha não basta. Tem todo um aspecto sensorial muito difícil. Tem osteopata. Tem gastropediatra, porque esses bebês têm muito distúrbio gastroesofágico. A gente aprende também a trabalhar com todo o sistema neurovegetativo deles. Então, a gente tem toda uma maneira de trabalhar com o aspecto doloroso e depois temos que sustentar os pais. Qualquer pai, qualquer mãe, se desorganiza nessa situação.
JC - Quais benefícios a identificação desses sinais pode trazer benefícios para os bebês a curto e a longo prazo?
Laznik - A identificação só serve se for para poder intervir. Identificar para ficar arrancando os cabelos adianta não adianta. A gente tem que tirar o bebê da dor, organizar o corpinho dele para ele poder comunicar com o outro. A grande maioria das crianças que se tornaram autistas não engatinharam direito. Eles andam direto, mas não têm nenhuma noção de corpo construído. Então, se a gente trabalha tudo isso, podemos fazer uma suplência das dificuldades que o bebê tinha de maneira inata. Isso também ajuda os pais a não desabarem na frente dessa criança. Qualquer ser humano desaba na frente de uma criança assim sozinha.
JC - Qual é o papel dos pais nesse tratamento?
Laznik - Eles são co-terapeutas. Eles trabalham com a gente direto. Em todas essas intervenções, os pais estão juntos. Por exemplo, gente, toda parte motora, os pais fazem também. Aprendem a fazer em casa.
JC - Tem uma idade ideal para se identificar o autismo?
Laznik - Hoje em dia, com três dias, a gente sabe para bebês de risco. Mas três, quatro meses é uma excelente idade.
JC - E se a pessoa identifica na fase já adulta, tem o que fazer?
Laznik - Você vai aceitar teu autismo, vai lidar com ele. Você vai ver como é que você pode explicar para as pessoas porque você é diferente deles. Mas, já não é mais possível reverter o quadro. Com dois, três, quatro anos também não é mais possível reverter o quadro. Mas você pode fazer daquela criança uma criança que se desenvolva bem. A gente citou pesquisadores, citou homens riquíssimos, citou Einstein. O prognóstico de um autista pode ser o mais variado. Têm muitos pesquisadores, grandes professores de física ou matemática que devem ter uma relação com o espectro. Têm grandes músicos também. Diagnóstico não é prognóstico, tá?
JC - Qual é a diferença entre um e outro?
Laznik - Diagnóstico é uma foto daquele momento. O prognóstico é aquilo que você vai fazer na vida. Tem autistas que fazem coisas muito mais bacanas que pessoas típicas.
JC - E qual é o papel do psicanalista nessa história toda, especialmente com os recém-nascidos?
Laznik - É um pouco de coordenar as equipes. Não é os pais que vão naquele lugar, depois naquele, depois naquele. A gente tem que estar numa coordenação propondo a eles. O psicanalista pode ser aquele que centraliza, porque muitas vezes foi ele que iniciou.
JC - Por fim, há quem diga que os primeiros mil dias são os mais importantes da vida de uma criança. O que pensas sobre essa frase?
Laznik - No autismo era melhor intervir nos primeiros 100. Quanto mais rápido, melhor, porque você vê o cérebro está se constituindo. Se o bebê está tão doloroso, tão desorganizado, ele não vai possuir a interação. Cérebro humano se constitui na interação com o outro. Ou seja, as janelas em que o cérebro se constitui vão estar perdidas.