Mais de 289 mil denúncias de violência contra crianças e adolescentes foram registradas pelo Disque 100 apenas em 2024 no Brasil. A cada hora, 13 meninas e meninos sofrem agressões físicas, sexuais ou psicológicas. O número é alarmante, mas não surpreendente. No País, a infância segue sendo um território de risco e, com frequência, o maior perigo vem de dentro de casa.
Embora o Dia Mundial Contra a Agressão Infantil, lembrado neste 4 de junho, seja uma data de repercussão internacional, o tema está longe de ser pontual. A violência infantojuvenil persiste como fenômeno cotidiano, muitas vezes silencioso. Estima-se que 80% das agressões sofridas por crianças sejam praticadas por familiares ou pessoas próximas, o que dificulta as denúncias e perpetua o ciclo de abusos.
No Rio Grande do Sul, os impactos das enchentes de 2024 agravaram esse cenário. Crianças desalojadas, vivendo em abrigos improvisados ou em casas superlotadas, passaram a enfrentar riscos ainda maiores. Em um Estado que já notificava, em média, 27 casos diários de violência contra menores de idade no ano anterior, a sobrecarga emocional e a fragilidade das redes de apoio só ampliaram a vulnerabilidade.
Segundo Paula Simões, dirigente do Núcleo de Defesa da Criança e do Adolescente (Nudeca) da Defensoria Pública do Estado, o principal desafio da rede de proteção não está na falta de leis, mas na insuficiência da estrutura para colocá-las em prática.
"Há profissionais muito qualificados, mas em número insuficiente. Isso compromete a resposta rápida e agrava situações que poderiam ser resolvidas com intervenções precoces", explica.
Os números reforçam essa complexidade. Dados do Atlas da Violência 2025 mostram crescimento de todas as formas de agressão a crianças de 0 a 4 anos entre 2022 e 2023: 50% a mais de casos físicos e sexuais, 15,6% de aumento nos homicídios. Em 11 anos, os registros de violência psicológica saltaram 396%. A violência sexual cresceu 383%.
Paula ressalta, porém, que a violência direta, embora grave, não é a única face do problema. A negligência, causada por desassistência básica em áreas como saúde, educação e assistência social, também figura entre as principais causas de encaminhamentos da Defensoria do Estado.
"A maior parte dos afastamentos de crianças do convívio familiar poderia ser evitada se houvesse apoio à família antes da situação se agravar", afirma a defensora. Ela ainda enxerga na alta nos números um fator que pode ser positivo: as pessoas estão, agora, denunciando os crimes.
A atuação do Nudeca, por sua vez, tem como foco a prevenção e a educação em direitos. Por meio de rodas de conversa, palestras e distribuição de materiais informativos, o núcleo busca orientar as famílias para que reconheçam sinais de abuso e saibam como e onde denunciar. A articulação com outras instituições, como o Ministério Público, conselhos tutelares e secretarias, é vista como um pilar fundamental desse trabalho.
No entanto, apesar dos esforços conjuntos, o Rio Grande do Sul foi marcado, entre o fim do ano passado e o início deste, por uma sequência de episódios extremos de violência contra crianças. Casos como o das gêmeas assassinadas pela mãe, em Igrejinha, da menina morta, em Guaíba, da criança sequestrada e abusada, em Tramandaí e do menino jogado de uma ponte pelo pai, em São Gabriel, causaram comoção no Estado.
Escolas e unidades de saúde estão entre os principais pontos de identificação e denúncia dessas violências. São nesses espaços que sinais como mudanças de comportamento, lesões físicas ou sofrimento emocional costumam se tornar mais evidentes. Professores, em especial, têm contato próximo com os alunos e desempenham papel crucial nesse processo.
"Mas é fundamental que estejam preparados para agir", ressalta Paula. "Muitos profissionais ainda hesitam por medo de errar ou por não saberem a quem recorrer. Isso precisa mudar", conclui.