Interesses opostos entraram em conflito na Zona Sul de Porto Alegre. De um lado, desabrigados das enchentes de maio de 2024 celebram a conquista de um terreno que era do governo do Estado, na avenida Coronel Massot, nº 381, para a construção de um condomínio de moradias populares por meio do programa Minha Casa Minha Vida. De outro, moradores das redondezas temem a possível desvalorização da região e os impactos ambientais com as obras do terreno.
O receio, documentado em um abaixo assinado, é que as moradias populares possam gerar perda de liquidez imobiliária e dê fim à grande área verde de 18.300 m². Conforme as pessoas contrárias à construção, haveria uma nascente de água no endereço.
No terreno desocupado, que abriga muitas árvores e, por seu abandono, um certo volume de lixo, foi instalada uma placa com os dizeres: “Movimento de Luta nos Bairros, Vielas e Favelas (MLB). Este terreno foi conquistado na luta! Aqui será a moradia das famílias da ocupação Sarah Domingues. Morar dignamente é um direito humano”.
Em frente ao ponto, ocorre todos os domingos a Feira Modelo de Produtores Rurais da Coronel Massot. Gustavo Ramos, coordenador do MLB no Rio Grande do Sul, explica que famílias de desabrigados da enchente que tiveram que voltar para as áreas de risco poderão morar no local.
A Secretaria de Habitação e Regularização Fundiária (Sehab), cujo titular é Carlos Gomes (Republicanos), informa que serão 200 moradias e que não houve uma doação direta. "A cedência do terreno em questão foi por meio de edital de chamamento público, lançado no dia 31 de outubro de 2024, com período recursal cumprido como determina a lei", esclarece a pasta. A entidade vencedora tem o prazo de 24 meses para a obtenção do financiamento para a obra.
As famílias são de espaços atingidos fortemente pela chuva, como a cidade de Eldorado do Sul e os bairros Humaitá e Santa Rosa de Lima. Em junho passado, o MLB ocupou um prédio da avenida Mauá, onde houve despejo. Após negociação com o governador Eduardo Leite, surgiu a possibilidade de participar do edital do terreno.
A construção do residencial se dará por meio do Minha Casa Minha Vida Entidades, uma nova categoria do projeto do governo federal. “É importante ressaltar o caráter do Entidades, que dialoga diretamente com o movimento. Permite que as famílias fiquem protegidas da dívida com a Caixa, se libertando do aluguel e de moradias precárias”, assinala Ramos.
Endereço fica próximo à avenida Wenceslau Escobar
Mauro Belo Schneider/Especial/JC
Morador de Eldorado do Sul, o coordenador do movimento social considera que a “posição de alguns vizinhos é preconceituosa” e conta que o grupo tem ido ao local conversar com eles para tentar fazer amizade e manter o espaço limpo. A localização, para Ramos, dá o direito às famílias de "acessarem um bairro longe da água, perto de escolas e de aparelhos do Estado que resolvem vários problemas sociais".
O abaixo assinado, no entanto, afirma não ser razoável que “o Estado do RS destine para loteamento social um terreno estimado em mais de R$ 20 milhões, a 400m da avenida Wenceslau Escobar, na confluência dos bairros Cristal, Tristeza e Assunção, a 800m do Golden Lake (Multiplan), um dos grandes empreendimentos que tem valorizado a região. Escolha que levou em consideração apenas os interesses da ONG beneficiária, com perda de liquidez e desvalorização imobiliária, do meio ambiente – extinção de ecossistema, e de segurança pública”.
"Ali é uma área de reserva. Todo o pessoal do entorno está buscando o máximo de força", relata uma moradora de um prédio próximo que prefere não se identificar.
O deputado estadual Gustavo Victorino (Republicanos), que é morador da Zona Norte da Capital, tem se envolvido no assunto que tem sido muito comentado na Zona Sul, compartilhando sua opinião contrária à construção. Victorino é autor da lei estadual que pune invasores de propriedades rurais e urbanas. Além disso, preside a Frente Parlamentar Invasão Zero.
“Não sou contra que se crie conjuntos habitacionais de baixa renda, mas não podemos fazer isso em áreas nobres”, expõe. “Chamam de coletivos, mas são grupos invasores. Moradores estão protestando. Fui olhar a área. Deveria ser de preservação ambiental, pois há animais silvestres, árvores nativas. Não caberia nem um condomínio de alto luxo, devido à área verde”, opina Victorino, sugerindo que as famílias sejam alocadas em bairros como Cavalhada, Cascata, Lomba do Pinheiro ou Caminho do Meio, onde haveria muitas áreas públicas.
Homenagem à estudante de Arquitetura
O nome da ocupação é uma homenagem à estudante Sarah Domingues, que perdeu a vida no dia 23 de janeiro do ano passado. Em sua memória, foi inaugurada a placa do terreno. A estudante de Arquitetura, de 28 anos, foi morta a tiros enquanto registrava os efeitos da última tempestade que assolou Porto Alegre para seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) na Ilha das Flores. Ela teria sido morta por engano, segundo a hipótese da Polícia Civil.
O que diz o governo do Estado
A Secretaria de Habitação e Regularização Fundiária (Sehab) diz que o resultado do edital foi publicado no dia 5 de dezembro de 2024. Concorreram seis entidades e a vencedora apresentou o maior número dos requisitos exigidos, entre os quais: ser entidade civil organizada, estar habilitada pelo Governo Federal para construção dentro das regras do programa Minha Casa Minha Vida e ter projeto arquitetônico prévio. Não houve contestação ao resultado do edital.
“O terreno do Estado estava sem uso e foi incluído na lista de áreas públicas disponibilizadas para programas de habitação de interesse social e o entorno da região tem as características arquitetônicas adequadas para construção de moradias nesse formato”, detalha a nota.
Local está atualmente vazio, acumulando lixo
Mauro Belo Schneider/Especial/JC
Por meio da doação de terreno do Estado para a construção do empreendimento, os beneficiários finais das unidades habitacionais construídas por essas entidades obterão redução no valor das parcelas futuras pela aquisição do imóvel junto ao agente financeiro do programa. Com isso, o valor do terreno é utilizado como aporte do pagamento.
A cedência de áreas públicas para habitação de interesse social está prevista na Lei Estadual n° 16.138/2024, que regula a Política Habitacional de Interesse Social no RS (Pehis). Agora a entidade vencedora do edital vai buscar financiamento junto ao Ministério das Cidades, com a Caixa Econômica Federal como agente financeiro, para a construção das moradias previstas no projeto apresentado.