Dando continuidade à série sobre os 200 anos da Independência do Brasil por meio de um passeio por vias e locais de Porto Alegre, a segunda matéria traz um personagem-chave no processo de separação brasileira de Portugal: o patriarca da Independência, José Bonifácio de Andrada e Silva.
Capítulo 2: Avenida José Bonifácio
Via ao lado da Redenção recebe o tradicional brique aos domingos
LUIZA PRADO/JCMargeando o Parque da Redenção, uma avenida discreta, densamente arborizada, vibra cheia de vida nos finais de semana quando as bancas do tradicional brique ocupam os seus cerca de 800 metros. Na placa nas suas esquinas, o nome de um homem que foi fundamental para a independência brasileira: José Bonifácio de Andrada e Silva.
Considerado um dos mais brilhantes – se não o mais brilhante – político que já viveu neste país, José Bonifácio foi tão importante para os acontecimentos do 7 de Setembro de 1822 que ganhou o título de Patriarca da Independência. Não é pouca coisa.
Bonifácio era um ser político em sua essência. Articulador hábil, era mais do que um conselheiro para Dom Pedro I. Apesar de ter sido figura primal no processo que resultou na separação oficial do Brasil de Portugal, o paulista nascido na cidade de Santos tinha dúvidas a respeito da possibilidade de nos tornarmos uma nação coesa sendo uma terra com tantas diferenças e desigualdades. “Amalgamação muito difícil será a liga de tanto metal heterogêneo, (...) em um corpo sólido e político”, disse em 1812, uma década antes do grito do Ipiranga.
A emancipação brasileira coordenada por Bonifácio não era sangrenta como a norte-americana, tampouco caótica como a revolução que viu nascer in loco em Paris no fim do século 18.
A vida de Bonifácio era política. Para ele, as disputas, insatisfações, as rixas, os desentendimentos se resolviam na mesa de debates, e não por meio das armas. E foi pensando e agindo assim que se tornou o ideólogo da independência.
O trabalho do patriarca também foi primordial para que o Brasil mantivesse sua unidade territorial, diferentemente do que ocorreu na América espanhola, que se dividiu em quase uma dezena de nações.
Em artigo publicado em 1965, o célebre sociólogo Gilberto Freyre definiu assim o papel de Bonifácio na formação do estado nacional brasileiro:
"Não haveria o Brasil, tal como existe hoje, tão plural e tão uno, se no momento justo Bonifácio não tivesse agido, máscula e decisivamente, sutil e quase femininamente, juntando a arte dos grandes políticos à firmeza de ânimo dos grandes homens, contra os radicais de sua época, contra os desvairados nacionalistas da sua época, contra os furiosos anti-europeus dos seus dias.”
Os anos – três décadas e meia, de 1783 a 1819 – vivendo na Europa arejaram as ideias de Bonifácio, que chegou ao Brasil e não gostou de ver o atraso da sua terra natal. Após a independência, como deputado da Assembleia Geral, apresentou projetos que previam a extinção da escravidão negra e incentivavam a incorporação de indígenas à sociedade brasileira. Além disso, era um defensor da reforma agrária, com maior distribuição de terra para mais gente.
A solução monárquica, única entre os países do continente, também tem o dedo de Bonifácio. Um imperador teria muito mais ascensão sobre as províncias para manter a unidade nacional, evitando a fragmentação vista nas repúblicas vizinhas. “Não concorrerei para a formação de uma Constituição demagógica. Há 14 anos que se dilaceram os povos da América espanhola, os quais saíram de um governo monárquico para estabelecer uma liberdade sem limites”, disse na tribuna da Assembleia Constituinte, já após o 7 de Setembro.
Responsável por articular a solução plantada por Dom João VI antes mesmo de deixar o Brasil em abril de 1821, ele semeou a ideia da permanência de Pedro no país como a forma de manter a nação unida e forte e que somente uma monarquia seria capaz de evitar o esfacelamento visto nas novas repúblicas do continente.
A parceria rompida
Dom Pedro II bebê
Arnaud Pallière/Reprodução/JCSem Bonifácio, muito provavelmente, Dom Pedro I não teria proclamado a Independência ou, se o tivesse, o processo teria sido completamente diferente. Bonifácio foi o esteio político no qual o príncipe se apoiou para vir a ser imperador.
Pois, a parceria durou pouco tempo. Ministro das Relações Exteriores do país recém-criado, Bonifácio presidia a Assembleia Constituinte instalada em 3 de maio de 1823. O imperador não estava gostando muito dos rumos que as deliberações dos constituintes estavam tomando, reduzindo cada vez mais os seus poderes. A pressão contra o gabinete do ministro aumento com o atentado contra o jornalista Luís Augusto May, redator do jornal Malagueta, de oposição ao regime, que teve sua casa invadida por um grupo de pessoas que lhe aplicaram uma surra. A autoria do ato foi falsamente atribuída à Bonifácio, quando, na verdade, fora realizado por homens próximos ao imperador.
Na prática, porém, o atentado foi uma desculpa perfeita para que Bonifácio fosse descartado em razão de suas proposições progressistas. Os grandes donos de terras os senhores de escravos não estavam nem um pouco satisfeitos com as ideias antiescravagistas (ele proporá a abolição do tráfico negreiro e a abolição gradual da escravidão) e pró reforma agrária defendidas pelo ministro.
As elites rurais da época de maneira nenhuma aceitariam mudanças na estrutura socioeconômica que havia lhes tornado ricos e poderosos. Para os latifundiários e senhores de escravos, tudo poderia ser debatido e mexido, menos os seus privilégios.
Fora do governo, Bonifácio e seus irmãos criaram um jornal oposicionista, O Tamoio, azedando de vez a relação com o imperador.
As pressões sobre a Assembleia Constituinte aumentaram e Dom Pedro I deu um ultimato aos parlamentares na manhã do dia 12 de novembro de 1823. Se suas exigências – restrição da liberdade de imprensa e expulsão de Bonifácio e seus irmãos da Constituinte – não fossem cumpridas, iria tomar providências. As providências, no caso, foram adotadas horas depois. Com a negativa dos deputados em acatar os pedidos de Pedro, o Parlamento foi dissolvido pelo imperador.
Bonifácio e os dois irmãos foram presos e exilados em 20 de novembro de 1823. Viveu na França até 1829, quando, após permissão para retornar à terra natal, chegou ao Rio de Janeiro em 23 de julho de 1829. Cinco anos e oito meses depois, pisava novamente no Brasil que ajudara a criar.

Perdoado pelo imperador, Bonifácio se tornou tutor do bebê Dom Pedro II (Reprodução/JC)
Perdoado pelo imperador, voltou-se a aproximar dele e por ele foi escolhido para ser o tutor de seu filho de cinco anos, após sua abdicação em 7 de abril de 1831. No documento que oficializou a nova função de Bonifácio, Pedro I o citava como “muito probo, honrado e patriótico cidadão” ao qual chamava de “verdadeiro amigo”. O patriarca da independência, por fim, completava sua jornada, preparando aquele que consolidaria o país como uma nação soberana.