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Publicada em 03 de Julho de 2025 às 18:12

Nenung une o budismo e a meditação ao espírito revoltado do rock gaúcho

Equilibrando a sensibilidade de compositor com a devoção ao budismo tibetano, ex-integrante de Os the Darma Lóvers é uma das figuras singulares do rock gaúcho

Equilibrando a sensibilidade de compositor com a devoção ao budismo tibetano, ex-integrante de Os the Darma Lóvers é uma das figuras singulares do rock gaúcho

TÂNIA MEINERZ/JC
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Karine Dalla Valle
Caçula de três irmãos criados em uma família de Novo Hamburgo, Luis Fernando Kirsch cresceu sendo chamado de Neno. Na adolescência, o apelido sofreria influência por conta do atacante Pedro Verdum, contratado sob altas expectativas pelo Internacional no início da década de 1980, mas que jogou aquém do esperado. Neno passou a ser chamado de Nenum, o ponteiro "falhado", a promessa que não desabrochou.
Caçula de três irmãos criados em uma família de Novo Hamburgo, Luis Fernando Kirsch cresceu sendo chamado de Neno. Na adolescência, o apelido sofreria influência por conta do atacante Pedro Verdum, contratado sob altas expectativas pelo Internacional no início da década de 1980, mas que jogou aquém do esperado. Neno passou a ser chamado de Nenum, o ponteiro "falhado", a promessa que não desabrochou.
Introspectivo, Neno destoava da energia colérica de Marco e Cristina, os irmãos mais velhos que engatavam brincadeiras vigorosas e, às vezes, caíam na briga. Certa vez, descobriu, no jardim da casa da avó, entre canteiros de roseiras, um refúgio da algazarra provocada pelas crianças. Ao sentar-se no cantinho do pátio, próximo ao portão, teve a sensação de que ali, protegido do burburinho, havia encontrado o melhor lugar do mundo.
De temperamento sensível, virou artista e liderou a banda Barata Oriental, onde compunha, cantava e extravasava suas contrariedades com o mundo. Credita ao tio, o pintor Ernesto Frederico Scheffel (1927-2015), a missão de ter tornado possível trilhar um caminho totalmente diferente do que se espera de alguém que vem de uma família de origem alemã do interior do Rio Grande do Sul. "Já tinha um ET no histórico da família. Então, quando eu nasci, já estava liberado ser esquisitinho. Minha família só deve ter pensado: 'Ah, tá bom, mais um'".
Fazendo um tipo de rock questionador, a Barata Oriental ganhou destaque no cenário do rock gaúcho entre os anos 1989 e 1995. Mas Nenum, ao perceber que cantava para quem só queria sacudir a cabeça, ignorando o que dizia a letra, começou a ficar entediado com a brincadeira. "Aquele sonho de rock and roll era muito cansativo. Fui me desvinculando, e o universo da música foi se tornando algo dominado pelo corporativismo".
Uma gravidez frustrada, seguida pela desolação de Irinia Taborda, sua companheira e produtora da Barata Oriental, o levou a procurar respostas em uma figura que mudaria sua vida: Chagdud Tulku Rinpoche, o guru tibetano de cabelos e barba grisalhos que vinha a Três Coroas para fundar um dos maiores centros de meditação da América Latina. Aprendeu a libertar a mente dos pensamentos e a recitar mantras. Pouco a pouco, a vida na cidade foi perdendo o sentido.
A sensação que teve no jardim da casa da avó se repetiu quando sentou no gramado do templo criado por Rinpoche em Três Coroas, o Chagdud Gonpa Khadro Ling, e contemplou os montes que formam o Vale do Paranhana. Mudaram endereço e paisagem, mas era o mesmo fascínio por estar um lugar de segurança, longe da confusão. "Aqui estou em casa. É aqui que me encontro, e não correndo, estudando, fazendo coisas", diz.
Acrescentando um "g" no fim do apelido, Nenum tornou-se Nenung e aderiu ao budismo tibetano. Virou o músico e compositor que usava batas coloridas e unia o rock à meditação. Ao lado de Irinia, criou Os the Darma Lóvers, banda que conquistou as rádios brasileiras no início dos anos 2000 fazendo um pop psicodélico com letras sobre paz, amor e autodescoberta. Lançaram cinco discos de estúdio e um ao vivo, e se apresentaram até mesmo na França.
Em uma singular demonstração de desapego, deixou a banda de lado no auge do sucesso, logo após lançarem o segundo álbum, Básico, de 2002. Fora convidado pelo mestre tibetano a fazer um retiro onde seria submetido a um jejum social. Cumpriu o compromisso de fazer um show no Theatro São Pedro, algo que se tornara histórico para Os the Darma Lóvers, que também contava com Thiago Heinrich no baixo e piano e Marcelo Fornazzo na guitarra. No dia seguinte, desapareceu por um ano e meio.
Recluso, enquanto aprendia a encontrar a paz, viveu o luto pela morte do guru Rinpoche. No retorno à vida em sociedade, descobriu que o relacionamento com Irinia, namorada e parceira de banda, também estava submetido ao samsara, o processo contínuo de nascimento, morte e renascimento, variando entre afeto e desavenças, até transformar-se em algo diferente do amor romântico. Como cantam em Simplesmente, do disco homônimo lançado em 2009: "O amor é muito mais do que cabe nessas convenções/ O amor é sempre muito mais."
Apaixonaram-se por outras pessoas; ele engatou outras parcerias musicais, inclusive compondo para artistas de calibre nacional, como Paula Toller e Frejat, e seguiram com Os the Darma Lóvers até 2022, quando as mortes de seu irmão mais velho e do namorado de Irinia sinalizaram que o ciclo d'Os the Darma Lóvers também precisava acabar.
 

A vida é uma busca

Nenung deixou Os the Darma Lóvers em plena ascensão ao sucesso, optando por ficar um ano e meio em retiro

Nenung deixou Os the Darma Lóvers em plena ascensão ao sucesso, optando por ficar um ano e meio em retiro

TÂNIA MEINERZ/JC
Nenung passou bastante tempo flertando com misticismos e filosofias orientais até se encontrar no budismo. Ao mesmo tempo em que era um roqueiro na Barata Oriental, também dava aulas de tai chi chuan, arte marcial chinesa que alia movimentos lentos do corpo à respiração e à meditação. Leu os livros de Carlos Castañeda, envolveu-se com bruxaria e até aprendeu a tirar tarô.
A notícia de uma gravidez enchendo Irinia de alegria e o consequente desengano - não havia feto algum - foi fonte de sofrimento intenso, a ponto de procurarem alguém que pudesse trazer alívio. Foram a Três Coroas conversar com Rinpoche, figura que atraía atenção naqueles meados da década de 1990 por ter erguido um templo de arquitetura asiática pintado de vermelho no meio de uma região de colonização alemã onde vigorava a indústria coureiro-calçadista.
"Ele nos disse coisas que não eram o que a Irinia queria ouvir. Nos deu uma prece, que ele tinha recebido naquele momento, e pediu que ela repetisse 300 mil vezes. Para mim, pediu que fossem 600 mil vezes. A Irinia ficou furiosa. No dia seguinte, parecia que a dor tinha sido tirada do nosso coração", lembra. 

Nenung e Irinia Taborda (Yang Zam) foram a força criativa por trás do conjunto folk-psicodélico Os the Darma Lóvers | RAUL KREBS/DIVULGAÇÃO/JC
Nenung e Irinia Taborda (Yang Zam) foram a força criativa por trás do conjunto folk-psicodélico Os the Darma Lóvers RAUL KREBS/DIVULGAÇÃO/JC

A ilusão de uma gravidez soou como uma pegadinha do destino para que ele encontrasse o mestre pelo qual ansiava. Alguém que pudesse ensiná-lo um estilo de vida com mais entrega e sabedoria. "Quando li o Castañeda, pensei que precisava encontrar o meu veio que iria me puxar para essa corrente. E quando fiquei na frente do Rinpoche, ele olhou me atravessando. É isso o que chamo de guru, uma palavra muito demonizada atualmente, porque há muito picareta por aí. Mas alguns são sensacionais".
Era novembro de 2002 e Nenung estava no sexto mês do retiro em Três Coroas. Acordava todos os dias às três horas da madrugada para entoar mantras e meditar. Certa noite, o telefone tocou no alojamento onde morava com outros cinco recém iniciados. Todos sabiam do que se tratava. Rinpoche falecia aos 72 anos.
 
A reclusão durou até 2004. Havia se afastado de Irinia, dos the Darma Lóvers, dos palcos e da badalação dos bares e casas de show onde se acostumara a tocar. Também não tinha mais o guru para lhe dizer o que fazer. Teria ao menos conseguido encontrar todas as respostas, retornando mais sábio para a vida em sociedade? Ele afasta a chance de uma resposta envolta em grandes pretensões. "Só me aproximei um pouco mais de ser um praticante do budismo", diz.

Conexões

Formação da banda Os the Darma Lóvers (2011)

Formação da banda Os the Darma Lóvers (2011)

DANILO CHRISTIDIS/DIVULGAÇÃO/JC
Interromper uma carreira que conquistava o cenário nacional para se dedicar à espiritualidade teve o efeito de aumentar o entusiasmo em torno d'Os the Darma Lóvers. Uma prova de que cantavam aquilo que acreditavam. Que os versos do refrão "Tanto chão para andar/ O céu, a terra e as pessoas/ Você pode me estranhar/ Mas eu prefiro ir para Três Coroas" foram criados com base no que viviam, não somente para que a rima funcionasse.
"A banda decolou no imaginário das pessoas", reconhece Nenung. "Porque a rádio seguiu tocando as nossas músicas, e as pessoas comentavam: 'Essa é a banda daquele maluco que interrompeu a carreira e está em um retiro'".
Saiu de lá com uma mão na frente e outra atrás. Retomou a banda, mas o dinheiro estava escasso. Buscou contatos fora do Rio Grande do Sul. Queria compor para artistas nacionais. "Liguei para um diretor musical no Rio e falei: 'Velho, não tem ninguém gravando para quem eu possa oferecer uma música?' Ele mencionou a Paula Toller, naquela época já fora do Kid Abelha, mas disse que ela só gravava músicas de parceiros muito próximos, como o Herbert Vianna".
Pediu o contato de Paula para um amigo ilustre, Dado Villa-Lobos, ex-guitarrista da Legião Urbana que havia se encantado com Os the Darma Lóvers e decidido incluir Diamante em seu primeiro disco solo, Jardim de Cactus, de 2006. Mandou um e-mail para a cantora, apresentando uma música que havia criado pensando especialmente na voz de uma mulher. Meu amor se mudou pra lua entrou no segundo disco da carreira solo de Toller, o conceituado Só Nós, de 2007. É um álbum cheio de parcerias raras. Paula abre o disco cantando Erasmo Carlos, uma música que o 'Tremendão' compôs para ela, O Q é Q Eu Sou. Divide vocais com Donavon Frankenreiter quando o boa pinta da Califórnia, meio cantor, meio surfista, estourava nas rádios brasileiras com Free; e apresenta canções do então desconhecido argentino Kevin Johansen.
Mas a música escolhida pela gravadora para divulgar o disco não foi de nenhum compositor badalado, e sim a de Nenung. "Era a única música que eu tinha para oferecer para a Paula, e bati um bolão. Minha música tocou em supermercado, aeroporto, era a número um no Brasil."

Nenung com o Projeto Dragão, uma de suas bandas mais recentes | ANDY MARSHALL/DIVULGAÇÃO/JC
Nenung com o Projeto Dragão, uma de suas bandas mais recentes ANDY MARSHALL/DIVULGAÇÃO/JC

Meu amor se mudou pra lua fez tanto sucesso que a Samsung a incluiu no repertório de músicas inseridas em um novo modelo de celular, algo inédito na época. Só que a empresa não pediu autorização para o autor, muito menos pagou direitos autorais. Nenung acionou a Justiça e saiu vitorioso. Com o dinheiro, comprou um terreno perto do templo de Três Coroas. Ali, ergueu uma casa.
"A Paula Toller me salvou", diz. "E foi uma música que fiz pensando nas mulheres. Hoje, quando toco essa música e vejo as mulheres cantando, fico feliz. O que existe de machismo invisível nessa sociedade dita bacana, dos playboys, das pessoas ditas de bem... E essa música me conectou com um monte de gente com quem eu jamais me conectaria. Isso também é budismo. Porque o budismo fala sobre aprimorarmos nossa capacidade de compreender a realidade e abrir a consciência, liberando a mente do casulo neurótico."
Os versos "Eu quis te ter como sou/ Mas nem por isso ser sua" e "Já não quero mais ser posse/ Fosse simples como fosse/ Um dia partir, sem ganchos nem correntes" trazem um grito feminino por liberdade, mas também o desapego para aceitar a impermanência, preceito do budismo. É Nenung mantendo a essência muito além de Os the Darma Lóvers.

Composições de Nenung foram gravadas por grandes nomes da música nacional | TÂNIA MEINERZ/JC
Composições de Nenung foram gravadas por grandes nomes da música nacional TÂNIA MEINERZ/JC

A partir daí, o leque de parcerias aumentou. Em 2012, Dado Villa-Lobos gravou O homem que calculava. Em 2016, enviou Pergunta Urgente a Frejat, incluída pelo ex-Barão Vermelho no disco Ao redor do precipício, de 2020. O zen-budista gaúcho que deixara os palcos pelo compromisso com a meditação era regravado pelas estrelas do pop nacional.
"São pessoas que tocaram com o Renato Russo e com o Cazuza, meus ídolos. Que conexão boa. Pautei a minha vida pela meditação, sem impasse nenhum por não ter me tornado um grande artista", diz. Pura modéstia budista.
 

Foco no agora

"Existe uma indisposição das pessoas para ouvir qualquer coisa que não seja Os the Darma Lóvers", lamenta Nenung

"Existe uma indisposição das pessoas para ouvir qualquer coisa que não seja Os the Darma Lóvers", lamenta Nenung

TÂNIA MEINERZ/JC
A lista de sucessos que saíram de sua cabeça é extensa. Ainda assim, Nenung evita levar o passado para o palco, fazendo um cover de si mesmo. Criou outras bandas, como Nenung & Projeto Dragão e o atual grupo com o baixista Juliano Pereira e o guitarrista Luciano Albo. Nunca quis apenas repassar os clássicos que lhe renderam fama. Sempre buscou oferecer algo diferente à plateia.
Mas ressente-se com o desinteresse do público em ouvir o que há de novo. "Existe uma indisposição das pessoas para ouvir qualquer coisa que não seja Os the Darma Lóvers. E isso foi o que mais me cansou. Quando a música cai no campo da domesticação, não tem mais arte. Originalmente, a arte surgiu para tirar as pessoas da monotonia da sobrevivência. E a música foi totalmente sequestrada pelas grandes corporações", diz.
O estereótipo mais difundido sobre pessoas que aderiram ao budismo e à meditação diz que elas procuram a paz. Nenung não é pacífico do tipo bonachão, que evita o confronto e deixa o incômodo passar para não criar desentendimentos. Faltando apenas um ano para completar seis décadas de existência, ele recusa a automação da vida. O dia a dia banalizado. A repetição de escolhas e comportamentos que levam à perda de sentido.

Nenung segue se apresentando ao vivo, como no projeto ao lado de Juliano Pereira (centro) e Luciano Albo: "não faço revival nem que me paguem" | JULIANO PEREIRA/DIVULGAÇÃO/JC
Nenung segue se apresentando ao vivo, como no projeto ao lado de Juliano Pereira (centro) e Luciano Albo: "não faço revival nem que me paguem" JULIANO PEREIRA/DIVULGAÇÃO/JC

"Há pessoas que gostam muito do que a gente faz, mas elas chegam no fim do dia muito cansadas e não têm disposição para ir num show a fim de ouvir músicas novas. Elas gostam mesmo de Os The Darma Lóvers e dos Cascavelletes. Elas querem ouvir um revival, mas eu não faço show de revival nem que me paguem".
A resistência em se acomodar foi o que o levou a encerrar a Barata Oriental para fundar Os the Darma Lóvers. O que o levou a ficar isolado da sociedade quando suas músicas tocavam nas rádios. A mandar e-mails oferecendo composições para artistas nacionais quando o público gaúcho estava satisfeito em ouvi-lo repetir os mesmos refrãos pelos bares em Porto Alegre.
Não é que dê as costas para o passado. Está satisfeito com um documentário dirigido por Theo Tajes que celebra os 25 anos de Os the Darma Lóvers, recheado de depoimentos e imagens históricas. Nutre a expectativa de ver o filme circulando pelos festivais. Mas foca no presente, sem apego ao que já foi. "O desapego é uma grande liberdade. Não tem como prender as coisas".

Embora siga se dedicando à música, Nenung tem focado na divulgação de Silensoar, livro inspirado pela meditação | TÂNIA MEINERZ/JC
Embora siga se dedicando à música, Nenung tem focado na divulgação de Silensoar, livro inspirado pela meditação TÂNIA MEINERZ/JC

Enquanto pensa em como retornar para os palcos com novos formatos de apresentações que possam provocar o público, em vez de mantê-lo bovino, domesticado, foca em divulgar seu novo livro, Silensoar, em que reúne poemas sobre meditação. Sente que, na escrita, ainda tem muito para explorar. "Decidi me dedicar a escrever, porque a poesia é minha primeira força. Na música, dentro do meu limite técnico, eu já fiz tudo da melhor maneira. Não tenho disposição técnica de ficar aprendendo coisas. E, se em um disco cabem 10 poesias, em um livro cabem 150".
Quando precisa sair da natureza que circunda o templo em Três Coroas e vir a Porto Alegre de trem, exerce um prazer curioso em observar o ritmo da grande cidade e as expressões de urgência e preocupação estampadas no rosto das pessoas. Enxerga uma felicidade condicionada, que surge de prazeres pontuais. Mas não se aliena, nem se coloca acima dos outros. Acredita, inclusive, em exercer o mínimo de cidadania. "Se eu puder votar em um político menos pior que outro, se um cara vai dar uma biblioteca para as pessoas em vez de aulas de tiros, então vou tentar favorecer esse cara. Sempre fui muito indignado. Meu budismo vem da indignação."

* Karine Dalla Valle é jornalista freelancer formada pela Unisinos. Atuou por nove anos no jornal Zero Hora, onde cobriu temas como saúde, educação e meio ambiente, com especial dedicação à cultura.

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