Corrigir texto

Se você encontrou algum erro nesta notícia, por favor preencha o formulário abaixo e clique em enviar. Este formulário destina-se somente à comunicação de erros.

reportagem cultural

- Publicada em 17 de Fevereiro de 2022 às 17:53

Arte de Ernesto Scheffel permanece viva em museu de Hamburgo Velho

Ernesto Frederico Scheffel deixou obra ampla e multifacetada

Ernesto Frederico Scheffel deixou obra ampla e multifacetada


/ACERVO FUNDAÇÃO ERNESTO FREDERICO SCHEFFEL/DIVULGAÇÃO/JC
Domingo, 3 de maio de 2015. O telefone toca, Ernesto Frederico Scheffel atende. Do outro lado da linha, a então presidente da República, Dilma Rousseff. Dilma informava que os quase 70 prédios do Centro Histórico de Hamburgo Velho, em Novo Hamburgo, e o acervo de cerca de 400 obras do referido artista, haviam sido tombados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). O decreto foi publicado no Diário Oficial da União cinco dias mais tarde.
Domingo, 3 de maio de 2015. O telefone toca, Ernesto Frederico Scheffel atende. Do outro lado da linha, a então presidente da República, Dilma Rousseff. Dilma informava que os quase 70 prédios do Centro Histórico de Hamburgo Velho, em Novo Hamburgo, e o acervo de cerca de 400 obras do referido artista, haviam sido tombados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). O decreto foi publicado no Diário Oficial da União cinco dias mais tarde.
A consumação do tombamento foi talvez uma das últimas realizações em vida do artista, reconhecido pintor, escultor, músico e poeta, em sintonia com seu "mundo mágico", como ele próprio dizia. Scheffel faleceu no Hospital de Clínicas, em Porto Alegre, no começo da manhã de 16 de julho do mesmo ano, vítima de um câncer biliar. Nunca casou ou teve filhos. "Ele não gostava de rótulos", afirma o curador da Fundação Scheffel, amigo pessoal por mais de 20 anos e eterno admirador, Angelo Reinheimer.
Ainda que Scheffel rejeitasse qualquer tentativa de qualificação de seu trabalho em meio às diferentes correntes artísticas, é sabido que suas criações, em geral, beberam de diversas fontes, especialmente as clássicas, mas também contemporâneas. Parte desta inspiração se justifica pelo fato de haver residido por 37 de seus 87 anos em Florença, na Itália, capital mundial do Renascimento. Antes de falecer, Scheffel concluiu a autobiografia Scheffel por ele mesmo, publicada em 2013 pela editora Um Cultural.
Em 1890, um casarão antigo em alvenaria e estilo neoclássico, hoje no número 911 da rua General Daltro Filho, em Hamburgo Velho, teve sua construção autorizada pelo agrimensor Adão Adolfo Schmitt. O salão, após ser inaugurado, foi utilizado como local para bailes, casa comercial, projeção de filmes, hospital particular, teatro e igreja. Em 1937, ano do falecimento de Schmitt, o governo do Estado alugou o local para ali instalar um colégio. Anos mais tarde, ainda criança, Scheffel dizia que era "o lugar mais bonito do mundo".

Um pequeno prodígio se mostra no Vale do Sinos

Nascido em família inclinada à música, artista começou a se destacar ainda nos tempos de escola

Nascido em família inclinada à música, artista começou a se destacar ainda nos tempos de escola


FREDY VIEIRA/ARQUIVO/JC
Scheffel nasceu em 8 de outubro de 1927, em Campo Bom, então 2º Distrito de São Leopoldo, filho de Albano Hans Scheffel, sapateiro, barbeiro e músico amador, e Hilda Feltes Jacobus, cuja família era também de músicos. Foi o terceiro de quatro filhos - dois homens e duas mulheres, dos quais Albano Nelson, com 97 anos, morador de Morro Reuter, e Lia Scheffel Kirsch, de 87, que mora em Hamburgo Velho, ainda estão vivos. Em 1935, se transferiu com a família para o bairro histórico. "Ele já desenhava na areia quando criança", relata Angelo. Scheffel conta que ficou encantado com a arte de sua tia, Irene Dick, que pintava a óleo na antiga Sociedade Concórdia, hoje Clube 15 de Novembro, e o ensinava a produzir suas próprias pinturas.
Em 1940, estudando na Escola Evangélica de Hamburgo Velho, criou o quadro Casa do prefeito Odon Cavalcanti, em óleo sobre madeira. A obra chamou a atenção do próprio Cavalcanti, prefeito de Novo Hamburgo, que o convidou a participar das comemorações da Semana da Pátria, em Porto Alegre. Mas, antes disso, Scheffel foi levado a uma tradicional loja hamburguense, onde ganhou roupas e tênis novos. Depois, foi de trem à Capital, onde ficou hospedado no Palácio Piratini junto com outros 300 meninos de origem germânica, e participou do desfile cívico.
Suas obras ficaram conhecidas e foram elogiadas pelo interventor do Estado, coronel Oswaldo Cordeiro de Farias. O governo, então, trouxe os professores Angelo Guido, do Instituto de Belas Artes, e João Cândido Canal - Scheffel se considerava discípulo e se dizia sempre grato a ele -, da Escola Técnica Parobé, para avaliar o material. Após aprovado por ambos, o próprio interventor chamou Scheffel ao seu gabinete e o questionou se o menino gostaria de ser um pintor de profissão, ao que o menino assentiu em tom encabulado.

O artista conhece seus mestres

Após destaque na arte do Estado e do País, Ernesto Frederico Scheffel foi desenvolver novas habilidades na Europa

Após destaque na arte do Estado e do País, Ernesto Frederico Scheffel foi desenvolver novas habilidades na Europa


/ACERVO FUNDAÇÃO ERNESTO FREDERICO SCHEFFEL/DIVULGAÇÃO/JC
Scheffel acabou frequentando duas escolas: de manhã e à noite, morava no Parobé e, à tarde, ia ao Belas Artes, onde concluiu o curso em 1946, com 18 anos. Ingressou no Serviço Militar Obrigatório, no 3º Batalhão de Engenharia do Partenon. Entre seus professores no instituto, destacam-se João Fahrion, Benito Castañeda, Fernando Corona e José Lutzenberger - pai do ecologista José Antônio Lutzenberger -, aquarelista e arquiteto do Palácio do Comércio, em Porto Alegre, e da Catedral São Luiz Gonzaga, em Novo Hamburgo, entre outros.
Em 1947, participa do II Salão Militar de Artes Plásticas, no Rio de Janeiro, onde contata Oswaldo Teixeira, diretor do Museu Nacional de Belas Artes. O campo-bonense vai a seu encontro, antes do início da mostra, e exibe a ele algumas obras. Teixeira reage positivamente. Impressionado, redige uma declaração ao governo do Estado gaúcho. "O futuro dirá o que afirmo: será um grande artista!", escreve Teixeira. O jovem gaúcho, que levou 15 trabalhos ao Rio, recebe a Medalha de Ouro com Natureza-morta em uma decisão controversa, mas acaba por dividir a Prata com um sargento do Exército.
Recebe também uma bolsa do governo do Estado para estudar por seis meses, porém, por intermédio de Teixeira, permanece por mais tempo. Em 1951, expõe Jesus no Museu Nacional de Belas Artes, e conquista o Bronze no Salão Nacional de Belas Artes, com Meditação. Um ano depois, pinta uma de suas obras mais emblemáticas, Rixa gaúcha, de 4,54m de largura por 1,94m de altura. O trabalho não é aceito no Salão de 1952, devido a seu tamanho. Isto frustra a crítica e faz surgir um evento alternativo no Rio, o 1º Salão Nacional Livre de Belas Artes, ou Salão dos Recusados, onde a obra é exposta junto a outras e recebe o reconhecimento devido.
Em 1955, Scheffel participa novamente do Salão Nacional, levando a Prata com Apartamento 202, o que, teoricamente, o faria concorrer ao Prêmio de Viagem ao Estrangeiro. Mas Scheffel acaba não habilitado. Dois anos mais tarde, a Academia Brasileira de Belas Artes confere o Ouro a Tríptico, painel único em três partes. Finalmente, e após muitos debates, o artista é agraciado pela organização com uma viagem à Europa, em 1958. Parte de navio rumo a Lisboa em maio do ano seguinte.
 

Novos horizontes em solo europeu

Encomendada pelo Itamaraty, efígie de Pedro Américo é obra marcante

Encomendada pelo Itamaraty, efígie de Pedro Américo é obra marcante


/ACERVO FUNDAÇÃO ERNESTO FREDERICO SCHEFFEL/DIVULGAÇÃO/JC
Chegando ao Velho Mundo, visita vários países e ruma à Itália. Em Florença, aprende as técnicas do afresco, mosaico e gravura. De 1960 a 1962, trabalha no Laboratório de Restauro da Galeria dos Ofícios, museu onde estão expostas obras de artistas renascentistas conceituados, como Botticelli, Michelangelo e Dürer. Estabelece no centro da cidade um ateliê, onde se permite ousar ainda mais. "Scheffel é o único americano com afrescos em Florença", conta Angelo Reinheimer.
Scheffel tinha especial interesse em encontrar Adelina Figueiredo Montesi, neta do pintor Pedro Américo, que, por sua vez, faleceu em Florença em 1905. O encontro ocorre em dezembro de 1959, dois meses após o artista gaúcho chegar em terras florentinas, por meio do consulado brasileiro. Ambos se tornam grandes amigos e Scheffel retrata Adelina em 1961. O artista também se matricula no curso de escultura da Academia de Belas Artes.
Em 1963, submete uma de suas partituras ao maestro Pablo Komlós, da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (Ospa), cuja apresentação estava programada para a 1ª Festa Nacional do Calçado (Fenac), em Novo Hamburgo. Komlós aceita executá-la, e Novembro é incluída no programa oficial de concertos da Ospa daquele ano. A obra é apresentada no auditório da Pucrs, e Scheffel sobe ao palco ao final da audição. Mais tarde, desenvolve a escultura O sapateiro para a 1ª Fenac.
Em Porto Alegre, expõe, a convite da Casa das Molduras, na Rua dos Andradas, em 1963, junto a obras de Américo e Teixeira, e em Florença, no ano seguinte, na Casa de Dante Alighieri. Desenvolve a efígie de Pedro Américo, sob encomenda do Itamaraty, hoje exposta na casa onde Américo viveu, na Via Maggio, e cuja réplica é parte do acervo da Fundação Scheffel. Pinta o Sagrado coração de Jesus, em 1965, e seu primeiro afresco, Madonna del Pitto, em 1966. Nesta época, trabalha em mosaicos. Em 1967, compõe Adágio para pequena orquestra, obra incluída posteriormente em concerto realizado no Salão de Atos da Ufrgs.
 

Primeiros movimentos de preservação de Hamburgo Velho

Artista atuou para preservar patrimônio histórico em Hamburgo Velho

Artista atuou para preservar patrimônio histórico em Hamburgo Velho


/ACERVO FUNDAÇÃO ERNESTO FREDERICO SCHEFFEL/DIVULGAÇÃO/JC
Em 1970, conhece o maestro italiano Arrigo Benvenuti, aprimorando sua veia musical. Cria Prelúdio e Fuga, para orquestra de câmara, e Toccata e Fuga, reinterpretação do Hino Nacional Brasileiro, executada na Ospa em 1974. Em meados de 1973, o vice-prefeito de Novo Hamburgo, Ivo Strimitzer, visita Scheffel, o convidando às celebrações dos 150 anos da imigração alemã. Nesta época, o artista elabora os primeiros projetos de criação do museu que levaria seu nome. Em 74, expõe no Sesquibral, evento com a presença do presidente do Brasil, general Ernesto Geisel, cinco ministros, além do governador do Rio Grande do Sul, Euclides Triches.
Havia tempos, o prédio em Hamburgo Velho construído em 1890 por Adão Schmitt estava deteriorado e desocupado. O edifício é, então, desapropriado pela prefeitura de Novo Hamburgo, para que fosse recuperado e o museu instalado. A casa é indicada pelo próprio Scheffel, após o prefeito Miguel Schmitz convidar o artista a escolher um prédio disponível e de seu agrado para abrigar sua vasta coleção. Scheffel relata um "prazer secreto de conseguir salvar esta bela edificação". A Galeria Municipal de Arte Ernesto Frederico Scheffel é finalmente inaugurada em 5 de novembro de 1978.
Antes, em 1976, o artista traz parte de seu acervo florentino e expõe na Pinacoteca Aplub. Nesta época, se envolve em buscar soluções para a conservação do prédio ao lado da fundação, a Casa Schmitt-Presser, construída por volta de 1830, e cuja demolição completa era questão de tempo. No começo da década de 1980, fortalece a necessidade de preservação do patrimônio histórico em Hamburgo Velho. Inicia-se um plano de embelezamento, limpeza e pintura dos edifícios centenários.
No entanto, em 1983, começam as reviravoltas. Em um movimento que o artista descreve como de "difamação contra o nosso trabalho de voluntariado, atividade social que causava admiração e inveja ao mesmo tempo", a prefeitura rompe com a fundação. O museu fecha as portas; Scheffel alega falta de segurança e descontentamento com a comunidade. A medida durou apenas 15 dias; os contentamentos retornam com a Administração.
 

Uma causa vencida e as merecidas homenagens

Pintada em 1952, Rixa Gaúcha é uma das obras mais emblemáticas da carreira de Scheffel

Pintada em 1952, Rixa Gaúcha é uma das obras mais emblemáticas da carreira de Scheffel


/ACERVO FUNDAÇÃO ERNESTO FREDERICO SCHEFFEL/DIVULGAÇÃO/JC
No final de 1983, Scheffel produz, com a Orquestra de Câmara da Ospa, um disco com 10 peças chamado Música para Orquestra de Cordas, "o primeiro registro exclusivo de música erudita de um compositor rio-grandense realizado pela Ospa", segundo ele. Suas pinturas do período retratam especialmente a Guerra dos Farrapos. Em março de 1991, Scheffel é confundido com um assaltante pela polícia italiana, e vê os carabinieri invadirem seu ateliê em Florença. Em Novo Hamburgo, a cena cultural ferve. A Casa Schmitt-Presser, tombada pelo Iphan em 1985, é mantida em pé e restaurada, tornando-se Museu Comunitário. "É o primeiro bem relacionado à imigração alemã tombado no Brasil", conta Angelo.
Scheffel visita o local, mas se dedica à restauração de sua nova casa, em Vallico Sotto, também na Toscana, para onde se muda em 1996, deixando a cidade grande. Antes, em 95, é homenageado pelo município de Campo Bom, onde nasceu, acompanhado por Revolução Farroupilha, painel pintado durante 10 anos, de 1985 a 1995, e que mede 4,92m por 2,10m. Na celebração, reencontra sua tia Irene Dick, então com 84 anos, uma das inspirações para que Scheffel descobrisse sua arte na infância. Na Europa, revisita Berghausen, na Alemanha, buscando suas raízes. Em 1998, Adão Adolfo Schmitt, fundador do prédio da fundação, é escolhido patrono do auditório do museu.
Em 2001, integra a 32ª Semana Internacional de Música, na cidade alemã de Bad Berleburg. Nesta época, recebe honrarias no Brasil e Europa. Em 2004, é condecorado cidadão honorário do município italiano de Fabbriche di Vallico, e ainda de Novo Hamburgo, pela Câmara Municipal. Em outubro, o governador do Rio Grande do Sul, Germano Rigotto, sanciona lei estadual que torna o Museu Scheffel e todo seu acervo como Patrimônio Cultural do Estado. No ano de 2008, a Fundação é modernizada, sem perder sua originalidade.
O projeto da autobiografia é aprovado pelo Ministério da Cultura, e documentos históricos são adquiridos e incorporados ao museu. Em 2009, as discussões sobre o patrimônio de Hamburgo Velho são retomadas. Scheffel, novamente envolvido no assunto, permanece na cidade até 2010, e de 2011 a 2013. Lutou bravamente pela preservação de seu legado e o do bairro histórico, até seus últimos momentos de vida. Junto a ele, pessoas como a historiadora e pesquisadora Angela Tereza Sperb, atuante na causa preservacionista de Hamburgo Velho desde o final da década de 1970. O corpo de Scheffel foi velado na sede da fundação que tanto amou e sepultado no cemitério da Comunidade Evangélica de Hamburgo Velho.
Na ocasião, a ex-presidente Dilma emitiu nota de pesar. "O Brasil perdeu hoje um artista plástico de imenso talento. Um gaúcho que ganhou o mundo com seus traços", registrou ela. Scheffel tinha um pequeno apartamento no último andar do museu, onde morava quando vinha a Novo Hamburgo. Ali, seguia o estilo minimalista, lavando e passando roupas, cozinhando e limpando a casa. Caminhava regularmente por Hamburgo Velho e nunca quis contratar uma diarista.
 

Família e admiradores falam sobre o artista

"Nós, da família, temos muito orgulho", conta Lia Scheffel Kirsch, irmã mais nova do artista

"Nós, da família, temos muito orgulho", conta Lia Scheffel Kirsch, irmã mais nova do artista


ACERVO CRISTINA BERGONSI/DIVULGAÇÃO/JC
A professora de História da Arte, artista visual e escritora Maria Helena Bernardes, avalia Scheffel como “um artista dos mais sólidos que a arte moderna do Rio Grande do Sul produziu”. Embora já o conhecesse, assim como à Fundação, mergulhou de vez em seu trabalho mais recentemente, a partir do convite de Angelo e de Ana Hauschild, ex-diretora do museu. “A obra de Scheffel é carregada de força, ela é potente em conteúdos artísticos e existenciais que têm, sem dúvida, a vocação para serem ‘legados’ e bem desfrutados por artistas que vieram depois dela”, avalia Maria Helena, que está colaborando com a fundação no desenvolvimento de projetos futuros.
“Nós, da família, temos muito orgulho de termos sido presenteados e convivido com o autor destas obras maravilhosas”, conta Lia Scheffel Kirsch, irmã mais nova de Frederico. “Ele era um artista completo. Como era a caçula, fui privilegiada de conviver mais perto dele, junto com nossos pais. Isto nos tornou mais amigos e confidentes”. A irmã de Scheffel foi modelo em obras como Tríptico e Rixa gaúcha. Ele era tão grato a Lia que dedicou a última frase de sua autobiografia a ela: “Presença constante em minha vida, meu eterno anjo da guarda."
A filha de dona Lia, a psicóloga Cristina Elisa Kirsch Bergonsi, complementa: “‘Fritz’, como carinhosamente nos referíamos ao Scheffel, foi um tio que conviveu toda a vida muito próximo como referência. Ele nos ensinou que a arte é uma linguagem que transcende a alma, produzindo figuras e significado. Um tio presente, questionador, criativo, com qualidade e seriedade com tudo o que produziu”. As duas filhas de Cristina, Luisa e Fernanda, são atuantes no meio artístico, especialmente a primeira, hoje com 23 anos de idade, e que desenha com traços parecidos com o de Scheffel.
Lia diz que a neta descobriu seu talento pouco depois da morte de seu irmão. Seja pelo legado ou pela coincidência, o que vem por aí é visto com bons olhos pela irmã do artista. “Há algumas coisas a serem feitas na fundação, mas penso que existe um bom futuro para o acervo dele”, afirma ela. Conforme Angelo, um projeto encaminhado em 2021 à Secretaria Estadual da Cultura, por meio da Lei de Incentivo à Cultura (LIC), deverá “requalificar” a casa em questões como acessibilidade.

Museu de arte que projeta o futuro

Fundação Scheffel, em Hamburgo Velho, guarda boa parte da produção do artista gaúcho

Fundação Scheffel, em Hamburgo Velho, guarda boa parte da produção do artista gaúcho


LUIZA PRADO/JC
Três estagiários compõem atualmente a equipe da fundação, e a intenção é ampliar o número. São duas alunas da graduação em Artes Visuais da Universidade Feevale, e mais Guilherme Matos, estudante do curso de História da Unisinos, que estagia no local há pouco mais de um ano. "Realizar o estágio na Fundação Scheffel me proporcionou diversas experiências extraordinárias. A cada visita que guio, percebo algum detalhe que outrora havia passado batido. É incrível como a compreensão da genialidade do Scheffel como artista e ser humano é reforçada a cada dia", comenta Matos.
Scheffel sempre foi afeito e solícito às crianças. Em 2018, a Secretaria Municipal de Educação hamburguense criou o projeto #PartiuNovoHamburgo - depois, Descobrindo Minha Cidade -, em que estudantes das escolas municipais visitavam, com seus professores e o auxílio de guias, espaços de lazer e culturais, entre eles, a Fundação Scheffel. O projeto iniciou com ações presenciais, e depois, com a pandemia, virtuais. Somente em 2019, 8 mil alunos estiveram no museu. "É interessante que as crianças hoje sabem quem é Scheffel e até o que é um tombamento. A criança vem, depois traz o pai e a mãe para ver também", conta o curador.
O site da Fundação Scheffel foi o primeiro de um museu no Rio Grande do Sul. A página, inaugurada no ano 2000, hoje está fora do ar. No ano passado, a Fundação foi contemplada em um edital da Lei Aldir Blanc para reformulá-lo, o que será realizado ao longo deste ano. "Scheffel gostava dessa ideia do digital. Hoje em dia, deve-se pensar em uma outra linguagem para o site. Estamos também flertando com as novas mídias. Já temos o Instagram da Fundação. E em agosto do ano passado, tivemos 32 mil consultas na Internet", cita Angelo.

O legado de Scheffel acessível a todos

Espaço prepara para este ano celebrações dos 95 anos de Ernesto Frederico Scheffel

Espaço prepara para este ano celebrações dos 95 anos de Ernesto Frederico Scheffel


LUIZA PRADO/JC
O nascimento do artista completa 95 anos em 2022. Para lembrar a data, haverá a temporada cultural com entrada franca - como ocorre desde sempre -, desejo dele. A partir do final de março, o museu abre todos os finais de semana, e não mais apenas um sábado e domingo por mês, como é atualmente. Os andares do edifício, que guardam grande parte de seu acervo, estão divididos por ordens cronológicas: o térreo, hoje fechado para obras, abriga o período da infância e adolescência. Acima, a estadia no Rio e peças feitas na Europa. E no andar superior, obras mais contemporâneas, a maioria feitas em Florença.
Os desafios do espaço seguem enormes, a começar por manter a essência de Scheffel, pensando, por exemplo, no centenário do artista, em 2027. "A casa ainda funciona como o Scheffel pensava. Ela foi realmente o QG de preservação do patrimônio histórico da região", comenta o curador. Há quem questione porque Ernesto Frederico Scheffel não é mais conhecido ou famoso do que deveria. Para estes, Angelo tem a resposta. "Foi uma opção dele. Mas, ao mesmo tempo, ele foi um artista que vendeu suas obras e viveu da arte, mas não tinha interesse em comercializar 30 quadros em uma exposição. E tinha uma grande intuição: as coisas que gostava, não vendia." Quem fizesse uma encomenda, corria o risco de não receber o quadro, e, por isso, Scheffel jamais cobrava o valor de um cliente antes que a obra estivesse pronta.
Dentre as grandes amizades cultivadas pelo artista ao longo das décadas, uma das mais carregadas de significado foi a com o icônico fotojornalista Alceu Feijó, falecido em 2020, aos 94 anos. Ambos foram colegas no Parobé, e Feijó também foi modelo vivo em obras pintadas pelo campo-bonense. "Na parede da sala dos meus pais, ambos falecidos, está o que chamamos de uma mini galeria Scheffel, com obras presenteadas ao longo dos anos por este amigo tão especial", conta uma das filhas do jornalista, Aurea Feijó. "Scheffel esteve presente em minha vida. Quando nos encontrávamos, eu me punha em posição de ouvinte atenta a toda sua sabedoria". A prova de sua paixão pelo belo está traduzida em seus próprios versos, eternizados em sua autobiografia: "Amor se faz / mesmo sem arte / Arte não se faz / mesmo sem amor".

* Felipe Reis é jornalista formado pela Universidade Feevale, de Novo Hamburgo. Nascido e criado no Vale do Sinos, trabalha desde 2016 como repórter.