O samba-canção produzido na Porto Alegre da segunda metade do século XX não deixou somente uma coleção de músicas ainda hoje cantaroladas pelo pessoal de cabelos brancos e redescobertas por jovens talentos. Há também uma galeria de personagens incríveis, com itinerários pessoais e profissionais dignos de livro, antes que caiam no esquecimento. Dentre essas figuras está a do cantor, compositor, empresário e agitador cultural Rubens Santos, que trocou o Rio de Janeiro pelo Rio Grande do Sul em meados da década de 1940.
Nascido em São João de Meriti (Baixada Fluminense) e criado na então capital federal com os seis irmãos, ele ainda buscava afirmação nos palcos, rádios e estúdios quando o trabalho como crooner de orquestra o levou a Buenos Aires em 1946. Uma escala em Porto Alegre durante o retorno teria motivado a decisão de "deserdar" do navio, tamanho o encanto com a cidade e seus microfones receptivos a talentos forasteiros. Outro relato cita a mesma viagem, porém sozinho e com o dinheiro acabando na capital gaúcha. Acrescente-se, ainda, uma versão do próprio artista sobre o desembarque já sob contrato com a Rádio Difusora.
O fato concreto é que Rubens logo se enturmou e obteve visibilidade em seu novo ambiente. Espetáculos. Transmissões. Concursos. Festivais em cineteatros. Agitos carnavalescos. Já em 1947, seu nome aparecia em destaque (com direito a foto e elogios) em anúncios e notícias dos principais jornais. Um cenário cultural em que já brilhavam colegas como Lupicínio Rodrigues (1914-1974), com quem manteria uma longeva relação pessoal e profissional, marcada por iniciativas direta ou indiretamente ligadas à composição popular, dentre outros desdobramentos.
Em texto publicado na Revista do Rádio de agosto de 1955, o editor José Braz elogiaria o alto astral e o desprendimento do sujeito hiperativo que adotara a cidade quase dez anos antes: "Seus méritos de compositor são indiscutíveis. Como amigo, Rubens Santos é uma casa cheia de alegria e sinceridade. Alguém já o encontrou pela rua sem o seu sorriso lhe enfeitando o semblante? É um cicerone que apresenta criações de sua autoria e de colegas gaúchos em festivais, bailes, rádios e boates, sem recompensa financeira de espécie alguma".
Na origem do tipo irrequieto que incrementava a agenda festiva da cidade estava um garoto habituado ao trabalho desde os 5 anos e cujos primeiros passos na música foram dados na cantoria das serestas, blocos de Carnaval e terreiros de umbanda do Morro do Borel, no bairro carioca da Tijuca. "Depois vieram os programas de calouros no rádio, acompanhado por regionais, orquestras", contou em entrevista concedida à historiadora gaúcha Márcia Ramos de Oliveira para a dissertação de mestrado Lupicínio: a Cidade, a Música, os Amigos (1995), que resultou em livro de mesmo título em 2013. E tem mais:
"Eu era moleque de subúrbio, sem roupa para vestir. Nunca fui ao colégio, aprendi a ler sozinho e escrevo com alguns defeitozinhos, mas os meus versos são certos. E entendo bastante de História, agricultura... Sou diplomado na melhor escola, que é a do mundo, onde você só aprende o que deseja. Jamais fui ocioso. Trabalhei com entregas, carreguei sacos na estiva, instalei antena, trabalhei em fundição, oficina de geladeira. Achei que o caminho melhor e mais fácil seria cantando. Passei em todos os programas de calouros, fui corista no Cassino da Urca, cantei em rádios, gravei discos. Não posso me queixar da sorte".
Mais de cinco décadas de protagonismo cultural
Rubens Santos no Clube dos Cozinheiros, diante do cartaz que se tornou folclórico na boemia da Capital (1968)
/ACERVO MARCELLO CAMPOS/REPRODUÇÃO/JCCompositor extremamente produtivo e cantor de recursos suficientes para dar o recado em sambas, boleros, sambas-canção e outros gêneros, Rubens Santos não precisou de muito tempo na cidade para se tornar amigo íntimo de Lupicínio Rodrigues - em uma confraria formada por "camaradinhas" como o Johnson, Demosthenes Gonzalez, Hamilton Chaves e Antoninho Onofre. Essa afinidade evoluiria para uma igualmente prolífica colaboração empresarial e musical.
Primeiro foi a sociedade, desde 1949, em ao menos seis empreendimentos frequentados pela fina-flor da boemia. Lupi atuava mais como um chamariz, nem sempre presente, devido a compromissos de carreira ou ao hábito de frequentar a concorrência como cliente. Cabia a Rubens o papel principal de administrador, garantindo ordem e rentabilidade a um esquema sob risco permanente de prejuízo pelos 'penduras' da turma e outras bagunças típicas de artistas que passavam para o outro lado do balcão.
A saga teve entre seus destaques o Vogue Music Bar (1957), localizado na avenida Farrapos e que fez história como uma das pioneiras boates de Porto Alegre, na concepção "moderna" do termo. Igualmente antológico foi o Clube dos Cozinheiros (1966), na rua Garibaldi: no cardápio, um ótimo arroz-de-carreteiro e "canjas" musicais a cargo dos donos e de alguns dos mais festejados cantores e instrumentistas da cidade - aplaudidos com estalares de dedos em vez de palmas, para que a falta de isolamento acústico não causasse problemas com a vizinhança.
Em entrevista de 1969 ao jornal Diário de Notícias, Rubens comentou a presença de uma placa no interior do Clube, com a frase "Quem fala quando alguém faz música coloca a própria ignorância na vitrina - Provérbio chinês", na verdade uma invencionice do amigo, jornalista e também compositor Hamilton Chaves. "A desatenção é uma falta de respeito que não se admite aqui dentro. Quem não gostar, que vá para outro local (...)".
No depoimento concedido à historiadora Márcia Ramos de Oliveira na década de 1990, Rubens enalteceu o fato de que alguns dos endereços boêmios comandados junto com Lupicínio viviam cheios, além de atraírem gente famosa de todo o País. "Todos os artistas que vinham do Rio de Janeiro ou São Paulo para fazer shows em Porto Alegre procuravam essas casas, porque o Lupi era uma atração. Esses locais eram abertos e fechados por vários motivos. Às vezes, era o preço do aluguel. Ou então a vizinhança achava ruim o barulho."
A sociedade Rubens-Lupicínio
Charge feita nos anos 1960 mostra os amigos e sócios Lupicínio Rodrigues e Rubens Santos
/ACERVO MARCELLO CAMPOS/REPRODUÇÃO/JC1949 - Churrascaria Galpão do Lupi
rua João Alfredo (Cidade Baixa) e depois na avenida Júlio de Castilhos (Centro)
rua João Alfredo (Cidade Baixa) e depois na avenida Júlio de Castilhos (Centro)
1957 - Boate Vogue Music Bar
avenida Farrapos (bairro São Geraldo)
avenida Farrapos (bairro São Geraldo)
1957 - Churrascaria Jardim da Saudade
avenida Coronel Marcos (bairro Ipanema)
avenida Coronel Marcos (bairro Ipanema)
1964 - Boate Casa de Samba
avenida Praia de Belas (bairro Menino Deus)
avenida Praia de Belas (bairro Menino Deus)
1966 - Bar e restaurante Clube dos Cozinheiros
rua Garibaldi (bairro Floresta)
rua Garibaldi (bairro Floresta)
1968 - Bar e Restaurante Batelão
avenida Cristóvão Colombo (bairro Floresta)
avenida Cristóvão Colombo (bairro Floresta)
Parceria musical
Além da parceria em dezenas de composições, Rubens Santos e Lupicinio Rodrigues foram sócios em vários bares e espaços da boemia porto-alegrense
/ACERVO MARCELLO CAMPOS/REPRODUÇÃO/JCAutor ou coautor de um punhado de sambas e sambas-canção que trouxera do Rio ao aportar na capital gaúcha (dois dos quais interpretados pelo próprio em disco de 78 rotações), Rubens Santos também uniu sua assinatura à de Lupicínio em mais de 30 composições. O fato de poucas serem atualmente lembradas é compensado pela quantidade, que faz do amigo e sócio um recordista dentre os colaboradores do rei da dor-de-cotovelo. A parceria teve como ponto de partida Minha História, gravada pelo argentino-carioca Carlos Galhardo em 1954.
O currículo da dupla já havia sido acrescido, na época, pelo trabalho de Rubens como fiscal da Sociedade Brasileira dos Autores, Escritores e Compositores de Música (Sbacem), sob o comando regional de Lupicínio desde 1946. Ou seja: havia também uma relação de patrão e funcionário. Encarregado de verificar o efetivo pagamento de direitos autorais em bares, boates e restaurantes da cidade, o carioca "naturalizado" gaúcho arranjava tempo para continuar criando música, inclusive sozinho e com outros chapas.
Parte dessa produção acabou inserida, da década de 1960 em diante, em elepês coletivos (coletâneas carnavalescas, registros ao vivo de festivais etc.) ou individuais, hoje só disponíveis em sites como o YouTube, graças a pesquisadores e aficionados pela música da Velha Guarda. Em tempos anteriores à expansão dos editais de financiamento à cultura, abrir a própria carteira e correr o chapéu entre empresas e órgãos públicos acabaram por notabilizar Rubens também como um sujeito imparável, que fazia acontecer nas mais diversas frentes.
Sócio de gravadora
Rubens Santos (em foto dos anos 1960) teve prolífica carreira como compositor, com parte do repertório registrado em disco
/ACERVO MARCELLO CAMPOS/REPRODUÇÃO/JCNão bastassem os serviços até então prestados à cena cultural de Porto Alegre, Rubens Santos abriu em 1967 um novo capítulo em sua trajetória: a criação da Sul-Brasileira Edições Musicais Ltda. (Sulbem), em empreitada com Lupi, o violonista Paulo Santos e o músico, pesquisador e dirigente sindical Hardy Vedana. O lance perdurou até o início da década seguinte, dedicando-se ao registro e divulgação da obra (inclusive por meio de partituras) de compositores locais, em um mercado de amplo domínio por grandes empresas sediadas no eixo Rio-São Paulo.
A firma durou menos de dez anos, deixando como legado os selos fonográficos CTG e CSB, responsáveis por suprir a lacuna desde a Casa A Elétrica (1913-1924), única gravadora gaúcha até então. Sem estúdio, o CSB (sigla de "Casa de Samba Batelão") se especializou em discos ao vivo de qualidade técnica duvidosa, mas relevantes pelo testemunho sonoro. No catálogo, títulos como 1º Festival Sul-Brasileiro da Canção Popular (1967), Ensaio de Carnaval no Clube dos Cozinheiros (1968), Zilah Machado & Cidinho Trio (1970) e, por último, As Aparências Enganam (1980), do próprio Rubens.
"Essa iniciativa foi fundamental para uma geração gaúcha em que poucos músicos conseguiam gravar", sublinha o pesquisador Diego Rosa. "É o caso dos discos do dois primeiros Festivais Sul-Brasileiros da Canção Popular, quando músicos dos anos 1940 e 1950 se encontraram com uma nova geração que despontava. Ali estão o único registro do conjunto Canta Povo e o primeiro do cantor e compositor Raul Elwanger, por exemplo. Outros importantes nomes tiveram suas gravações iniciais pelo selo CSB, como a cantora Zilá Machado e o violonista Jessé Silva."
Agitador cultural
Em 1993, recebendo homenagem do então governador Alceu Collares
/ACERVO MARCELLO CAMPOS/REPRODUÇÃO/JCApós a morte de Lupicínio Rodrigues, em 1974, a preservação de seu legado teve no múltiplo parceiro de quase 30 anos um porta-voz dedicado. Missão também assumida por cantores locais como Zilah Machado, Johnson e Lourdes Rodrigues, mas com um diferencial no caso de Rubens Santos: a ênfase tanto no repertório tradicional quanto no resgate de peças inéditas. Sem mágoa por Lupi jamais ter gravado qualquer composição do camaradinha, este tirou da gaveta - em shows e discos - um série de pérolas da dobradinha.
Da mesma forma que fizera em seu primeiro LP (Assim é a Vida, de 1963), Rubens incluiu três peças da parceria nas 12 faixas de cada um dos seus três últimos álbuns. Foi assim com As Aparências Enganam, em 1980 (Samba do Feijão, Maria da Noite, A Prova do Crime), Esses Moços, de 1984 (Não Faça Promessa, Beijo Fatal, 40 Anos) e Mistério, de 1993 (Serenata, Tem Navio no Porto, Conselho). O hiperativo embaixador lupiciniano se encarregou, ainda, de diversos espetáculos-tributo, conforme detalha o músico e pesquisador Arthur de Faria em seu livro Lupicínio: Uma Biografia Musical (2024):
"Em 1977, Rubens esteve à frente de Assim Foi Lupicínio, primeiro show coletivo em memória do amigo, no Teatro Presidente, em Porto Alegre. O sucesso se repetiria em maior escala em 1996, ao encabeçar o espetáculo Lupicínio às Pampas, em temporada de quatro dias no Sesc Pompéia, em São Paulo. No palco, ele e o diretor Zuza Homem de Mello conversavam sobre Lupi enquanto as atrações se alternavam. Vitor Hugo, Luiz Melodia, Paulo Moura com Renato Borghetti, Adriana Calcanhotto e, é claro, o próprio Rubens."
Adeus, camaradinhas
Rubens Santos (em foto de show realizado em 1996): "A morte é irreversível, mas irei sob protesto"
/ACERVO MARCELLO CAMPOS/REPRODUÇÃO/JCAs décadas de 1980 e 1990 marcaram a fase de maior visibilidade na carreira do veteraníssimo artista, inclusive na imprensa. Sempre envolvido em projetos e apresentações em bares e casas noturnas da Velha Guarda, ele também pisava com desenvoltura em espaços nobres como o Theatro São Pedro, o Renascença e outros palcos dentro e fora do Estado. Isso, sem contar o passatempo como pintor de quadros abstratos. Tamanha disposição não se devia somente à boemia de hábitos saudáveis, sem cigarro ou bebida: apertos financeiros impediam Rubens de parar. "Não faço música por dinheiro, mas porque gosto", alegava.
Sensibilizada, a Câmara de Vereadores aprovou em 1998 um projeto do prefeito Raul Pont para que Rubens recebesse pensão vitalícia de 1,5 salário-mínimo (equivalente ao piso de um assistente administrativo municipal), por serviços prestados à Capital - mesma razão pela qual ele recebera o título de Cidadão de Porto Alegre, em 1991. "É um presente para toda a vida... o coração está na base do para e não para!", emocionou-se ao lembrar que a Secretaria da Cultura de Porto Alegre bancara a produção de seu último disco, Mistério, com direito a edições em LP e CD - mais uma prova do carinho e prestígio na cidade que o recebera mais de 50 anos antes.
Vida e obra embalaram, no início de julho de 2000, um longo e faceiro depoimento ao projeto Vozes do Rádio, desenvolvido por professores e alunos da Faculdade de Jornalismo da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (Pucrs). "Sou otimista e realista. Não sei quanto tempo vou durar, então não tenho medo. A morte é um negócio irreversível, mas irei sob protesto", brincou. Foi sua última vez diante de um microfone: no dia 27 daquele mês, a turma recebeu a notícia da morte do entrevistado, no Instituto de Cardiologia, devido a uma embolia pulmonar após receber três pontes-de-safena.
A comunidade cultural de Porto Alegre compareceu em peso ao velório na Câmara de Vereadores, seguido de sepultamento no Cemitério João 23. Nas rodas de conversa, a homossexualidade do artista (fato sabido pelos mais chegados) foi pauta vencida por assunto bem mais interessante: a idade. Afinal, ele alardeava ter 90 anos, uma década a mais que a data de nascimento indicada na certidão de óbito - 5 de dezembro de 1921. Arthur de Faria dá a letra: "Diferente de muita gente que tenta parecer jovem diminuindo a idade, o Rubens costumava mentir que era mais velho, só para ouvir o pessoal dizer que ele estava muito bem conservado".
Discografia de intérprete
Detalhe da capa do LP 'As Aparências Enganam...', lançado por Rubens Santos em 1980
/CSB/REPRODUÇÃO/JC1945 - "A Teresa Tem Razão" / "Clube Dos Bacanas" - 78 rpm (Continental)
1945 - "Para o Bonde" / "Carnaval Da Vitória" - 78 rpm (Continental)
1963 - "Minha História" / "Triste Final" - 78 rpm (Philips)
1963 - "Assim é a Vida" - LP, Philips
1980 - "As Aparências Enganam" - LP (CSB)
1984 - "Esses Moços" - LP (Discoteca)
1993 - "Mistério" - LP/CD (Nova Trilha/Prefeitura de Porto Alegre)
* Marcello Campos é formado em Jornalismo, Publicidade & Propaganda (ambas pela PUCRS) e Artes Plásticas (UFRGS). Tem seis livros publicados, incluindo as biografias de Lupicínio Rodrigues, do Conjunto Melódico Norberto Baldauf e do garçom-advogado Dinarte Valentini (Bar do Beto). Há quase duas décadas, dedica-se ao resgate de fatos, lugares e personagens porto-alegrenses. Contato: portonoitealegre@gmail.com.