Quando o amigo, dramaturgo e escritor Julio Zanotta me comunicou que havia decidido morrer, eu estava esquentando minhas mãos numa xícara de café perto da janela da cozinha, observando as luzes de neon dos pubs irlandeses refletirem na calçada molhada. A mensagem que o Júlio enviou do outro lado do oceano naquela noite de 4 de setembro de 2024 foi difícil de engolir como o café mais amargo do mundo.
"Ano passado tive um câncer de próstata que curei com quimioterapia. Há duas semanas, descobri que o câncer se espalhou pelo fígado, pulmões e avança sobre outros órgãos. Não vou me tratar dessa vez. Fiquei muito feliz com a notícia. Enfim vou morrer. Talvez até escreva um manual, algo como A alegria de morrer". Foi assim que Julio Zanotta iniciou aquela conversa no Whatsapp - com o humor e a picardia de sempre.
Quando retornei a Porto Alegre e fui visitá-lo no apartamento onde ele vivia na rua Felipe Camarão, ele realmente estava trabalhando - entusiasmado - no tal manual. Só que o projeto tinha se transformado num documentário sobre a própria morte que estava filmando com o seu filho, o cineasta Bernardo Zanotta. A morte seria apenas o gran finale para aquele homem acostumado a transformar a vida em arte.
De fato, o dramaturgo nascido em Pelotas em 1950 fez jus àquela frase de Friedrich Nietzsche - "a tarefa própria da vida é a arte" - que contém a ideia de que devemos explorar as possibilidades da existência da mesma maneira que um pintor explora as possibilidades duma tela em branco ou um ator explora as possibilidades do palco. Zanotta vivia como se estivesse fazendo arte e fazia arte como se estivesse vivendo a vida. No final das contas, eram a mesma coisa.
O resultado dessa filosofia de vida foi uma biografia tão sinuosa quanto aquelas estradas à beira da Cordilheira dos Andes. Aliás, suas mais de 50 peças de teatro, seis novelas, mais de 80 contos e outras obras ainda inéditas refletem muito bem sua existência cheia de curvas perigosas, subidas íngremes até o topo do mundo, e descidas vertiginosas até o fundo do poço. As centenas de personagens criados pelas mãos de Julio Zanotta também vivem experiências burlescas, engraçadas e exuberantes em diferentes cenários: apartamentos de luxo, bairros da periferia, mundos distópicos e episódios históricos sanguinários.
Entre os êxitos de Zanotta, estão a criação de um dos maiores grupos de teatro do Rio Grande do Sul - o Ói Nóis Aqui Traveiz - fundado junto com o ator Paulo Flores nos anos 1970; e a criação da livraria Ao Pé da Letra, que o levou à presidência da Câmara Riograndense do Livro nos anos 1990, quando pôde modernizar a Feira do Livro de Porto Alegre. Entre os seus fracassos, estão os dois exílios no Peru causados pelas críticas à ditadura militar (1964-1985); e as duas overdoses decorrentes do vício em metanfetaminas injetáveis nos anos 1960. Talvez o caminho do excesso realmente leve à sabedoria, como escreveu aquele poeta inglês do século XVIII, William Blake.
Por outro lado, Júlio Zanotta também colocava em prática coisas que aprendia nas obras literárias. Às vezes, após ler alguma obra inspirada nos aventureiros do século XIX, dirigia o seu Jeep Cherokee com tração nas quatro rodas pelo interior do estado, em busca dos lugares mais verdejantes, selvagens e inóspitos. Uma vez, enquanto passávamos um fim de semana num sítio no meio do mato, que ele possuía em Riozinho, ele me explicou como fazia para escolher o destino.
“Toda vez que chego numa encruzilhada, escolho o pior caminho, porque as estradas ruins normalmente levam aos lugares de natureza exuberante”, ele gargalhava ao explicar sua metodologia tão caótica e cheia de significado quanto aqueles poemas dadaístas feitos com palavras sorteadas ao acaso.
Ao longo do mês de novembro, a saúde de Julio Zanotta se deteriorou. Ele acabou falecendo na noite do dia 19 daquele mês. Para além dos sucessos dignos de aplauso e dos erros difíceis de serem perdoados - cometidos por todas as pessoas fiéis ao próprio coração - o amigo, escritor e dramaturgo impactou quem o conheceu. Uma dessas pessoas foi o coveiro que o sepultou no Cemitério João XXIII. O trabalhador funerário foi entrevistado pelo autor durante as filmagens de A Alegria de Morrer e, mesmo estando de folga no dia da morte de Zanotta, fez questão de ir ao cemitério para acomodá-lo no seu jazigo.
Notoriedade com o Ói Nóis Aqui Traveiz

Julio Zanotta deixou centenas de textos, entre peças de teatro, novelas e contos - incluindo obras ainda inéditas
/GILBERTO PERIN/DIVULGAÇÃO/JCA dramaturgia de Julio Zanotta ganhou notoriedade após a fundação de um dos maiores grupos de teatro do Rio Grande do Sul, o Ói Nóis Aqui Traveiz, que encenou as duas primeiras peças do dramaturgo em 1978 - as sátiras A Divina Proporção e A Felicidade Não Esperneia Patati Patatá. O grupo começou a ser gestado quando Zanotta e o ator Paulo Flores se conheceram em uma oficina no Teatro de Arena ministrado por Aderbal Júnior.
"Na oficina, eu dei para o Aderbal Júnior uma peça minha que estava publicada (em uma coletânea). Ele pegou o texto como tema de aula. E tinha um malucão lá que era o Paulo Flores", Zanotta relata em uma entrevista anexada à dissertação do pesquisador da Ufrgs Rafael da Silva, que estudou as quatro primeiras peças do dramaturgo - publicadas em um volume intitulado Teatro Lixo.
Depois de concluída a oficina, Zanotta escreveu a segunda peça que seria usada pelo Ói Nóis Aqui Traveiz. E, com esses dois textos nas mãos, procurou o ex-colega Paulo Flores para montá-los. O ator, que já tinha experiência como diretor, comenta o que chamou a sua atenção nas peças apresentadas a ele.
"Os textos se aproximavam de uma linguagem surrealista. Nessa época, eu estava muito influenciado pelo que se chamou de 'teatro pânico', do espanhol Fernando Arrabal. Então, as peças do Julio estavam próximas dessa linguagem e abriam muitas possibilidades para a atuação dos atores", analisa Flores.
As duas peças formaram o primeiro espetáculo do Ói Nóis Aqui Traveiz, que estreou à meia-noite de 31 de março num espaço próprio na rua Ramiro Barcelos. O espetáculo chamou atenção não só da crítica e do público, mas também das agências de repressão da ditadura. Os atores chegaram a ser espancados por agentes do regime militar.
O pesquisador de teatro Rafael da Silva explica a configuração da montagem. "Foi colocada uma pilha de lixo no meio do espaço. O espaço foi cercado com arame farpado. O público ficava entre o arame farpado e a parede, em bancos bem toscos. Entre as duas peças, havia um intervalo, quando o grupo lia um manifesto escrito pelo Julio. Na estreia, foi um manifesto contra a ditadura. Mas depois, eles leram também o Manifesto Teatro com Pedras nas Veias."
Paulo Flores lembra das últimas frases do manifesto. "Pedras nas veias para não fazer convenções ao esteticismo burguês nem aos pregões do teatro palavra. Pedra nas veias para ir um pouco adiante na cultura de resistência, para ousar opor-se".
Para o pesquisador da Ufrgs, "a genialidade do Júlio Zanotta está no fato de que ele não romantiza a violência", apesar de trabalhar com uma espécie de estética da violência. "Embora não tenha sido uma pessoa em situação de rua, ele foi usuário de drogas pesadas nos anos 1960. Nessa época, ele entendeu uma coisa: a rua é um lugar violento. E, quanto mais difícil a vida da pessoa, mais ela tende a ter reações violentas. Ninguém está livre de cometer atos agressivos em uma sociedade pautada pela violência", analisa Rafael da Silva.
O diretor da Companhia Espaço em Branco, João de Ricardo, era amigo de Julio Zanotta e conheceu a maior parte da dramaturgia do autor - desde os primeiros trabalhos até os textos mais recentes. Inclusive, João de Ricardo organizou uma leitura dramática de oito horas na Casa Baka em homenagem ao dramaturgo. Ele relaciona a extensa obra de Zanotta ao teatro do absurdo e aos textos teóricos de Antonin Artaud.
"Os textos dele apresentam os conflitos de uma maneira que obriga os espectadores a refletirem para, então, se posicionarem. O Julio não apresenta os elementos de uma maneira óbvia: esse personagem representa o bem; esse, o mal. Isso tem a ver com o teatro da crueldade do Artaud. Então, é uma obra muito desafiadora por não ser óbvia, por ser difícil de encenar, por causa da pornografia", avalia o diretor da companhia Espaço em Branco - que trabalha em uma montagem inspirada num texto inédito de Zanotta, chamado Destruição e Colapso da Cidade de Porto Alegre.
Duplo exílio no Peru

Encenação de A Divina Proporção/A Felicidade Não Esperneia Patati Patatá (1978)
/ACERVO PESSOAL JULIO ZANOTTA/REPRODUÇÃO/JCA perseguição por causa da obra artística e das ideias políticas levaram Júlio Zanotta a se exilar no Peru duas vezes durante a ditadura militar brasileira (1964-1985). A primeira experiência como expatriado foi durante os 'anos de chumbo', em decorrência da militância no movimento estudantil em 1973. A segunda aconteceu perto do processo de redemocratização, logo após o autor ser espancado no seu próprio apartamento por causa de sua peça As Cinzas do General.
O primeiro exílio aconteceu na época em que Zanotta estudava filosofia na Pucrs. Ele se envolveu com o movimento estudantil organizado no campus da universidade. Quando a repressão começou a perseguir os estudantes, ele fugiu para o Peru, porque, segundo o próprio autor, "a ditadura estava matando os opositores naquela a época."
O segundo exílio ocorreu após a encenação da peça As Cinzas do General. O espetáculo estreou no Teatro Um, localizado no mesmo local onde o Ói Nóis Aqui Traveiz apresentou seus primeiros trabalhos. Zanotta acabou "herdando" o prédio, porque o aluguel ainda estava no seu nome. A fiadora era a sua mãe.
A Polícia Federal acusou o autor de fazer apologia às drogas. A justificativa era que, em uma cena de Cinzas do General, uma personagem defendia a legalização da maconha. Zanotta chegou a contratar um advogado para a sua defesa. Em uma entrevista concedida a Rafael dos Santos, ele conta que depôs na sede da polícia, ouvindo os gritos de uma pessoa que estava sendo torturado na sala ao lado.
Entretanto, após sua filha de seis anos ser ameaçada por agentes da ditadura, e ele ser espancado dentro do próprio apartamento, o dramaturgo e a companheira da época, a atriz Lisaura Andrea Souto, saíram do País usando passaportes falsos. Só que, dessa vez, em vez de se juntar à resistência armada peruana, o autor e a companheira montaram uma peça chamada Marília, que apresentaram em diversos países da América do Sul. O autor só voltou ao Brasil em 1983.
Obras inéditas

A Alegria de Morrer traz 'máximas' elaboradas por Zanotta para uma boa morte
/ALAN MENDONÇA E BERNARDO ZANOTTA/DIVULGAÇÃO/JCApesar de ter publicado uma caixa com dez volumes com sua obra de teatro completa, seis novelas e outros títulos esparsos, Julio Zanotta deixou pelo menos três obras inéditas: uma coletânea de contos intitulado O Caralho Voador; um romance de viagem, cujo título ainda não tinha sido escolhido pelo autor; e um romance inacabado chamado Destruição e Colapso da Cidade de Porto Alegre.
Os mais de 80 contos que compõem O Caralho Voador foram escritos durante nove meses em que o autor morou isolado em uma cabana no meio da mata atlântica em Trancoso (BA), após voltar do exílio em 1983. O próprio Zanotta conta que foi uma época de solidão e escassez. "Eu tinha que caminhar 11 quilômetros para ir até os Correios para enviar uma carta. Depois, levava mais de um mês para resposta chegar", ele recordou uma vez. Algumas histórias desse volume foram adaptadas para o teatro.
Já o romance de viagem é baseado no diário mantido pelo autor durante a turnê da peça Marília entre 1981 e 1983. Trata-se de um texto escrito e dirigido por Zanotta e encenado pela sua companheira da época, Lisaura Andrea Souto. O espetáculo foi montado no Peru, Colômbia, México e outros países da América do Sul. O livro é uma espécie de On The Road sul-americano, no qual Zanotta relata as dificuldades da viagem, o contato com culturas locais e a ânsia de encontrar um significado profundo para a vida.
Destruição e Colapso da Cidade de Porto Alegre é um romance que vinha sendo escrito desde os anos 1970. O escritor sempre voltou a esse manuscrito de tempos em tempos. Nesse caso, o título é autoexplicativo: narra a vida dos porto-alegrenses enquanto a cidade vai sendo arrasada por desastres climáticos. A família tem planos de publicar essas obras no futuro.
A Alegria de Morrer deve sair em 2026, diz filho e diretor

Bernardo Zanotta: 'Terminamos nossa relação sem nenhum remorso sobre o que poderia ter sido e não foi'
/THAYNÁ WEISSBACH/JCSó uma pessoa nada convencional como o dramaturgo e escritor Júlio Zanotta convidaria o filho, o cineasta Bernardo Zanotta, para dirigir um documentário sobre sua própria morte. Mas foi graças à personalidade única de Júlio que o documentário A Alegria de Morrer começou a ser filmado. Após a morte do autor, Bernardo continua trabalhando no filme, que provavelmente deve ser lançado em 2026. Nesta breve entrevista ao Jornal do Comércio, Bernardo Zanotta relata como recebeu a ideia do documentário, o que os espectadores poderão esperar do filme e o que aprendeu durante as filmagens com seu pai.
Jornal do Comércio - Como você recebeu a ideia do documentário?
Bernardo Zanotta - Em 2024, quando o pai descobriu que o câncer tinha se espalhado por outros órgãos, ele me disse que queria organizar o arquivo dele. Eu, que estava morando em Amsterdã (Holanda), comprei uma passagem para Porto Alegre. A ideia era passar duas semanas com ele, ajudando a organizar o arquivo e filmar umas entrevistas com ele. Ele disse que ficaria feliz.
JC - O roteiro foi do Julio Zanotta?
Bernardo Zanotta - Um dia depois de comprar a passagem ao Brasil, quando acordei, ele tinha me mandado um roteiro - que é desse filme chamado A Alegria de Morrer - sobre o processo de morte dele. Ele até falou: vem para cá, organiza uma equipe, vamos fazer esse filme, e nós vamos tirar um sarro dessa história toda. A partir disso, construímos um roteiro cinematográfico, propriamente.
JC - Como o filme está estruturado?
Bernardo Zanotta - Basicamente, o texto tem oito máximas bastante sugestivas. Por exemplo, como escolher um cemitério aprazível? Como construir seu próprio caixão? Filmamos durante oito dias que passamos juntos, intensamente. Havia dias que ele não conseguia sair da cama. Então, usamos o tempo (em que ele estava bem) para filmar situações diferentes: fomos a uma funerária conversar com os agentes, fomos ao cemitério conversar com os coveiros.
JC - Um dos coveiros foi o que enterrou o Julio, certo?
Bernardo Zanotta - Curiosamente, um dos coveiros, o Giovani, acabou enterrando ele, de fato. Mas, quando conseguimos a permissão para filmar lá, não tínhamos ideia que o pai seria enterrado lá. Filmamos lá porque foi onde conseguimos permissão. O pai conversou bastante com ele. Eles falaram sobre o filho do Giovani, que era traficante de drogas e acabou morto. O próprio Giovani sepultou o filho. O pai sempre teve esse carisma, as pessoas contavam coisas para ele. Ele e os coveiros ficaram amigos naquele dia.
JC - O que você aprendeu nesse processo de filmagens com o Julio?
Bernardo Zanotta - O que ele me deixou como herança imaterial foi o teatro, o cinema a literatura. Terminamos nossa relação sem nenhum remorso sobre o que poderia ter sido e não foi. Até porque toda a vida dele foi muito inspiradora. A maneira de ele ser acabou sendo mais relevante que qualquer paternalidade burguesa. A literatura sempre foi a coisa mais importante para ele. Não havia pressão social que o fizesse mudar isso. Isso foi uma coisa que eu passei a respeitar bastante com o processo de morte dele, ainda mais nas semanas que trabalhamos juntos.
Para conhecer a obra
Teatro Lixo: Essa livro, editado pela Editora Mercado Aberto em 1996, contém as quatro primeiras peças escritas por Julio Zanotta. As duas primeiras foram encenadas na estreia do grupo Ói Nóis Aqui Traveiz - A Divina Proporção e A Felicidade não Esperneia Patati Patatá. O terceiro texto - A Libertação do Diretor-Presidente - foi encenado no Teatro Renascença em 1979. E o quarto - As Cinzas do General - estreou no Teatro Um em 1980.
Milkshakespeare: Trata-se do primeiro volume da coleção Teatro de Julio Zanotta, um box com as obras completas para o teatro, editados pela Editora Giostri em 2022. A obra brinca com a lenda de Sir William Stanley, que teria sido o verdadeiro autor das obras de Shakespeare. A obra venceu o Prêmio Funarte de Dramaturgia em 2003 e o Prêmio Açorianos em 2023.
Pisa Leve: Essa novela distópica publicada pela editora Giostri em 2021 conta a história do cirurgião Dr. Beiramar, filho do famoso traficante. Após ser contratado para trabalhar em um hospital da capital gaúcha, o médico especializado em medicina robotizada tenta se divertir numa cidade em pleno colapso.
* Marcus Meneghetti é jornalista formado pela UFRGS. Possui pós-graduação em Artes da Escrita pela Universidade Nova de Lisboa. Além de repórter, trabalha como editor freelancer de obras literárias.