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reportagem cultural

- Publicada em 15 de Dezembro de 2022 às 18:57

Liberato Vieira da Cunha está de volta à praça com novo romance

Após quase uma década sem publicações, Liberato Vieira da Cunha está de volta ao prelo com seu novo livro, O Inventor da Eternidade

Após quase uma década sem publicações, Liberato Vieira da Cunha está de volta ao prelo com seu novo livro, O Inventor da Eternidade


/TÂNIA MEINERZ/JC
Geraldo Hasse, especial para o JC
Geraldo Hasse, especial para o JC
De volta ao mercado literário após nove anos sem lançamentos, o escritor Liberato Vieira da Cunha antecipou excepcionalmente para a próxima terça-feira, 20 de dezembro, a estreia em Porto Alegre de seu novo romance, O Inventor da Eternidade, a ser lançado brevemente no Brasil e em Portugal pela Almedina-Minotauro, editora fundada em 1955 em Coimbra e que recentemente abriu uma filial em São Paulo. Como explicou dias atrás em sua página no Facebook, o escritor convenceu seus novos editores, que estão republicando toda sua extensa obra literária, de que a cidade em que vive se esvazia entre o Natal e o Carnaval - muita gente vai para o litoral ou o interior; não seria aconselhável deixar o lançamento para janeiro ou fevereiro. Ansioso por colocar o novo romance nas mãos de seus leitores (as leitoras são maioria), ele promete autografar a partir das 18h30min daquele dia na Livraria Santos, Galeria Casa Prado, rua Dinarte Ribeiro, 148, junto à Praça Maurício Cardoso, no bairro Moinhos de Vento, em Porto Alegre.
A história desse terceiro romance de Liberato se passa em 1984, no final da ditadura militar no Brasil, quando oficiais da linha dura, alguns em altos postos, planejam prolongar o regime de exceção por mais 20 anos. No apogeu de seu percurso intelectual, o respeitado professor universitário de estética Santelmo Cimbres vê-se envolvido em um episódio de perseguição política e se refugia num vilarejo do interior do Rio Grande do Sul, habitado em sua maioria por descendentes de imigrantes europeus.
Pior do que o risco de prisão e suas temidas consequências, ele descobre ter uma doença terminal. Num ambiente de tensão e medo, toma conhecimento de um extraordinário mural feito por um artista alemão que, durante a II Guerra, se escondeu no mesmo local, fugindo de perseguidores nazistas. O trabalho artístico está oculto nas ruínas do que teria sido uma missão jesuítica. De Roma vem um cardeal aparentemente interessado na ruína histórica... E não falta um romance para lembrar que ninguém vive sem amor, mesmo onde o ódio parece predominar. Desse cruzamento de artes produzidas em séculos distantes, vem o título do livro, "inspirado pelo contraste entre a perenidade da arte e a finitude humana, da qual é agudamente consciente o personagem principal", conforme a síntese do autor em resposta ao Jornal do Comércio.
Herdeiro, portador e usuário de um dos sobrenomes mais antigos e conhecidos da genealogia sul-riograndense, Liberato Vieira da Cunha disse ao JC que o seu novo romance foi recomendado à editora portuguesa pelo escritor e professor de literatura Deonísio Da Silva, catarinense de Siderópolis que estudou em Porto Alegre e há décadas vive e trabalha no eixo Rio-São Paulo. Primeiro brasileiro a ler O Inventor da Eternidade, Deonísio Da Silva enviou à redação o seguinte comentário:
"Liberato Vieira da Cunha torna a demonstrar ao público leitor do Brasil e de Portugal neste romance a maestria com que vem construindo uma obra já consagrada, e que mereceu premiações entre nós e no exterior, dentre elas o título de Chevalier des Arts et des Lettres da França. Acho que o Brasil Meridional continua a fazer uma das melhores prosas da literatura brasileira contemporânea. Sempre tive apreço pelos ficcionistas do Sul, meu terrum, e estou muito contente por ter tido o privilégio de ler o original em primeira mão, fruto da mútua confiança que Liberato e eu temos. O romance vai sair em todo o mundo lusófono, mas as principais referências para a leitura desse mundo que o português criou ainda são Portugal e o Brasil."

Sem máscara na rua

Liberato Vieira da Cunha começou a escrever O Inventor da Eternidade há mais de 15 anos

Liberato Vieira da Cunha começou a escrever O Inventor da Eternidade há mais de 15 anos


/TÂNIA MEINERZ/JC
O Inventor da Eternidade poderia ter saído antes, mas se atrasou um pouco pela pandemia e muito mais pelo perfeccionismo do autor. Liberato começou-o em 2005, quando resolveu colocar no papel, com a máscara da ficção, lembranças remotas de coisas ouvidas na mais tenra infância. Ou, seja, ele ouviu que numa vila chamada Segredo, hoje município ao norte de Cachoeira, viveu um desertor alemão que sobrevivia graças às suas habilidades artísticas. Tudo o mais, ou quase, foi sendo inventado, até que o autor se deu por satisfeito. Aqui, ele adianta ao JC um parágrafo d'O Inventor da Eternidade:
"Ando frágil e distraído, Beatrice - disse Santelmo. - Venho pensando no que foi minha vida, ou no que me resta de vida. Penso ainda assim que cérebro nenhum, o mais potente dos computadores, o mais tirano dos governos poderão alcançar as profundezas em que mergulho. Pensar tem sido para mim, por estes dias, semanas e meses, uma busca de mim mesmo, não como sou hoje, mas como um jeito de iluminar, distraído, uma infinitude que não foi feita para mim."
Mesmo tendo passado uma década e meia cuidando do último romance e sem ter feito nenhum lançamento desde 2013, Liberato adverte que nunca parou de escrever muitas outras coisas, tanto que tem um novo livro pronto, Trem Noturno Para Cachoeira, contos e crônicas evocando sua querida terra natal, onde nasceu em 1945.
Primogênito do jornalista, advogado, deputado estadual e secretário da Educação Liberato Salzano Vieira da Cunha, falecido em 1957 num acidente aéreo em que morreu também sua mulher (Jenny, professora de francês), Liberato terminou de ser criado nos altos da rua Duque de Caxias em Porto Alegre pelos avós do lado materno (família Figueiredo) com a ajuda da avó do lado paterno (Salzano). O mesmo aconteceu com a irmã Miriam Cunha, professora que mora em Florianópolis; o irmão caçula Eduardo, artista em Porto Alegre, é o autor da pintura reproduzida na capa do novo livro. A outra irmã, Bernardette, faleceu aos 30 anos no Rio. Pai de Marcelo, publicitário, e Lúcia, psicanalista, o setentão Lib tem um neto e duas netas.
Estudou no Colégio Anchieta e formou-se em Direito na Ufrgs. Após trabalhar por três anos como advogado em um escritório estabelecido na Rua da Praia, se convenceu de que seu futuro estava na imprensa (pela sobrevivência) e na literatura (por compulsão). Começou no Diário de Notícias, onde trabalhou de 1966 a 1969, percorrendo de baixo para cima a hierarquia da redação - de repórter a secretário. Depois passou para o Correio do Povo, no qual trabalhou por 15 anos divididos basicamente em duas grandes fases: correspondente na Alemanha, morando na Berlim Ocidental, onde fez pós-graduação em jornalismo; e editor do caderno de domingo, onde escreviam veteranos como Alberto André e outras figuras históricas da imprensa gaúcha. À Zero Hora, dedicou 20 anos, trabalhando especialmente como correspondente nos Estados Unidos.
Tendo viajado de avião, automóvel, barco e trem por várias cidades do mundo, já escreveu em crônicas de jornal reunidas em vários livros que suas cidades favoritas são Paris, Laguna e Cachoeira do Sul, onde passava as férias escolares na juventude. Recentemente, foi convidado (e aceitou) a filiar-se à Academia Cachoeirense de Letras.
No Facebook, onde escreve textos breves e brilhantes, Liberato confirma quase diariamente que é, antes de tudo, um romântico que cultiva – pela ordem – a beleza das mulheres, o eterno frescor da natureza e a saudade de tempos pretéritos. Gosta de outras coisas, como cinema, mas sua maior paixão são os livros: no apartamento na Duque de Caxias, tem 5 mil livros guardados em armários envidraçados. Muito desse estoque foi adquirido na Feira do Livro da Capital, que frequenta desde a primeira, quando tinha 11 anos. Em 2022, catando aqui e ali ao longo da quinzena mais badalada do Portinho, comprou um total de 85 volumes, entre eles uma coleção de Scott Fitzgerald, um dos seus escritores prediletos.
 
 

Detalhe da capa de 'O Inventor da Eternidade', novo livro de Liberato Vieira da Cunha

Detalhe da capa de 'O Inventor da Eternidade', novo livro de Liberato Vieira da Cunha


Almedina-Minotauro/DIVULGAÇÃO/JC
Ele conta que, estando em Paris, nunca deixou de frequentar os cafés onde se sentavam os norte-americanos da Geração Perdida, entre eles Scott e Ernest Hemingway. Outro dos seus favoritos é John dos Passos, a quem entrevistou quando ele foi hóspede de Erico Verissimo em Porto Alegre nos anos 1960. A matéria saiu em uma página inteira do Diário de Notícias. Num texto evocativo publicado recentemente, Liberato lembrou que deu uma acidentada carona urbana aos dois romancistas no seu primeiro carro, um Dauphine. Com eles, relembrou uma velha lição, colhida numa frase do pai sobre democracia e cultura: uma não existe sem a outra.

Na Feira de Porto Alegre ele lançou todos os seus livros, menos O Inventor. Seu primeiro romance, As torrentes de Santaclara, foi o título mais vendido no ano de 1993. A editora Mercado Aberto teve de fazer mais duas edições por causa da procura de leitores. Com 608 páginas, trata de um crime que aconteceu durante uma enchente do rio Jacuí. Em 2004, o romance O Homem que Colecionava Manhãs esteve entre os dez melhores livros publicados no Brasil naquele ano. Foi elogiado em O Globo pelo crítico Vilson Martins. No jornal literário Rascunho, ganhou uma página inteira assinada pelo romancista Luiz Antonio Assis Brasil.

Até hoje ele não esquece o quanto era agradável caminhar pela Feira em companhia de Mário Quintana. Após o expediente do dia, os dois colegas, cujas mesas de trabalho estiveram juntas por 15 anos no Correio do Povo, saíam a perambular pela Praça da Alfândega. O famoso poeta parecia uma criança dentro da Feira, de acordo com a evocação do amigo. A dupla ficava até a última hora. Uma das boas coisas da quinzena eram as reuniões de amigos nos bares dirigidos por Dirceu Russi, que montava um boteco no centro da Feira do Livro. Naquele ambiente, um grupo de parceiros das palavras escritas inventou um livro no formato eletrônico em que cada um redigia um capítulo. Sabe-se lá onde foi parar essa colcha de retalhos.

Quarenta anos na ficção

Detalhe da capa de Miss Falklands, primeira obra de Liberato Vieira da Cunha

Detalhe da capa de Miss Falklands, primeira obra de Liberato Vieira da Cunha


/GERALDO HASSE/ESPECIAL/JC
O jovem Lib estreou como cronista no Jornal do Povo, que publicava aos domingos uma página intitulada Nova Geração, onde se destacavam textos de Paulo Gouveia da Costa, poemas de Pedro Port e redações variadas de outros habitantes da então chamada Capital do Arroz. Pelo que Liberato recorda, nenhum dos outros colaboradores do jornal cachoeirense levou às últimas consequências o que, naquele tempo, era tratado como vocação literária. Ele, sim, sempre tratou de ir fundo na arte de escrever. De tanto fazê-lo, com o apoio de 1001 leituras, tornou-se um perfeito ginete das palavras. Sem dúvida, foi no JP fundado em 1929 que ele começou a angariar sua coleção de fãs, hoje espalhada por todo Rio Grande do Sul.
Seu primeiro livro de narrativas curtas (contos e crônicas), Miss Falklands, foi publicado em 1983 pela Martins Livreiro, editora de Porto Alegre que costumava apostar em autores novos, especialmente nativos. O título homenageia uma linda mulher que, veraneando na Serra, parece esnobar o narrador, o que no final se revela uma sutil forma de conquista. Miss Falklands é um volume de apenas um centímetro de espessura que, embora tenha na capa um desenho elegante do artista gráfico Nelson Faedrich, costuma desaparecer nas estantes ocupadas por livros mais encorpados, como os de Sergio Faraco ou Rafael Guimaraens, entre outros prolíficos escritores do Sul.
Quem assinou o prefácio do livro de estreia de Liberato foi o veterano jornalista (e cronista) Carlos Reverbel (1912-1997), que se declarou comovido por ter a oportunidade de apresentar o livro do colega 33 anos mais novo, então seu companheiro na redação do Correio do Povo. "Figurar ao seu lado, no pórtico deste livro, é uma honra que me surpreende e comove", escreveu Reverbel, consagrado desde o final dos anos 1940 como o "redescobridor" do genial contista pelotense João Simões Lopes Neto (1865-1916).
 

Um mestre da crônica

Em um tempo no qual, para obter projeção, escritores e cronistas tinham como praxe irem ao Rio de Janeiro, Liberato Vieira da Cunha seguiu vivendo em Porto Alegre

Em um tempo no qual, para obter projeção, escritores e cronistas tinham como praxe irem ao Rio de Janeiro, Liberato Vieira da Cunha seguiu vivendo em Porto Alegre


/TÂNIA MEINERZ/JC
Por sua elegância, as crônicas de Liberato Vieira da Cunha têm nível equivalente ao do mineiro Paulo Mendes Campos, um dos campeões do gênero literário mais apreciado pelos leitores brasileiros. No entanto, ao contrário do famoso cronista cachoeirense de Itapemirim (ES) Rubem Braga, o gaúcho de Cachoeira do Sul é quase desconhecido fora do Rio Grande do Sul, onde publicou uma dezena de livros, além de ter seu nome em antologias ao lado dos Verissimo, de Sergio Faraco e Moacyr Scliar, entre outros gigantes da literatura sulina.
No livro As Cem Melhores Crônicas Brasileiras, organizado pelo repórter (e cronista de O Globo) carioca Joaquim Ferreira dos Santos, editado em 2005 pela Objetiva, do Rio, Liberato não consta. A maioria é de cronistas do Rio, seguidos de vários mineiros, alguns paulistas e outros tantos nordestinos. O mais festejado é o capixaba Rubem Braga, com quatro crônicas escolhidas. Na lista constam seis gaúchos, sendo um com residência e temática carioca (João Saldanha); os outros são Luis Fernando Veríssimo (4 crônicas), Caio Abreu (2), Mario Quintana (1), Moacyr Scliar (1) e Martha Medeiros (1), a única cronista gaúcha entre um magro elenco feminino: Rachel de Queiroz, Elsie Lessa, Ligia Fagundes Telles e Danuza Leão.
"É sabido que no Rio há muitas panelinhas", comenta Liberato, recorrendo a uma velha gíria gaúcha para se referir ao bairrismo carioca. Segundo ele, para ganhar algum destaque no cenário literário nacional, era praxe que o escritor fosse morar no Rio. Aí sua chance de aparecer se multiplicava. Sem a morada na ex-capital federal, que ainda não perdeu os buenos aires de capital cultural, é possível que não obtivessem reconhecimento cronistas como os mineiros Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino, Otto Lara Rezende e Paulo Mendes Campos. Certa vez o baiano Ubaldo Ribeiro reconheceu que, sem a mudança para o Rio, teria permanecido como cronista de província.
Entrementes, não se pode dizer que o apreço aos forasteiros seja simplesmente um viés bairrista dos cariocas. Tanto nas artes como nos esportes e na política, os habitantes do Rio costumam acatar e promover pessoas chegadas de outros estados do Brasil. O gaúcho Leonel Brizola e o paulista Jair Bolsonaro são exemplos extremos desse modo de escolher.

Sucesso internacional

Pouco conhecido no restante do Brasil, Liberato Vieira da Cunha coleciona honrarias e traduções em outros países

Pouco conhecido no restante do Brasil, Liberato Vieira da Cunha coleciona honrarias e traduções em outros países


/TÂNIA MEINERZ/JC
No caso de Liberato, cuja timidez não o autoriza a reclamar do fraco reconhecimento em outras capitais brasileiras, deu-se algo especialmente diverso: as musas o ajudaram a se tornar um dos mais internacionais cronistas gaúchos. Seus contos e crônicas ganharam traduções no Uruguai, Argentina, Peru, Colômbia, Espanha, França, Alemanha e Itália. Sua obra foi estudada em universidades brasileiras e do exterior: Frei Universität (Berlim), Universität Hamburg, Universität Eichstät e Mulhouse.
Do seu currículo consta em primeiro lugar que ele é Cavalheiro das Artes e das Letras da República Francesa. Entre suas premiações figuram troféus literários e jornalísticos. Ganhou duas vezes o prêmio Açorianos e sete vezes o da Associação Riograndense de Imprensa (ARI). E mais o da Sociedad Interamericana de Prensa, além de honrarias na Itália. Nem precisaria tanto para merecer um lugar no prestigioso banco de cronistas salvos do esquecimento pelo Instituto Moreira Salles, do qual é curador o jornalista mineiro (também cronista e contista) Humberto Werneck, que mora em São Paulo. Para um escritor, as medalhas mais valiosas são mesmo aquelas concedidas pelos leitores, no dia-a-dia.

Livros de Liberato Vieira da Cunha

O Homem que Colecionava Manhãs esteve entre os melhores do País em 2004

O Homem que Colecionava Manhãs esteve entre os melhores do País em 2004


/TÂNIA MEINERZ/JC
Com raras exceções, todos os livros de Liberato são encontrados em sebos por preços altamente convidativos. Eis o cartel do escritor:
Miss Falklands, Martins Livreiro, 1983 (contos e crônicas)
Um Hóspede na Sacada, Editora Sulina, 1985
A Mulher de Violeta, Sulina, 1990
As Torrentes de Santaclara, Mercado Aberto, 1993
(romance, 608 páginas)
Um Visto para o Interior, Artes & Ofícios, 1996
A Morte do Violinista, Mercado Aberto, 1997
A Companhia da Solidão, L&PM, 2000
Tratado das Tentações, L&PM, 2002
O Homem que Colecionava Manhãs, Objetiva, 2004 (romance)
O Silêncio do Mundo, AGE, 2013
O Inventor da Eternidade, Almedina-Minotauro, 2022
 

Gente boa de ler

Uma crônica de Geraldo Hasse
Um dia desses, dando tratos à bola da literatura, escalei automaticamente, meio sem querer querendo, uma seleção gaúcha de escritores ou, melhor, 11 craques da ficção, que começa na crônica, passa pelo conto, cresce como novela e se espalha como romance. Para tanto usei meus critérios de leitor e jornalista, sem consultar a estante ou ouvir especialistas no assunto. Confesso: comecei bem, mas me enrolei nas bolas.

De primeiro veio à tona, por ordem alfabélica, o seguinte rol: Alcy Cheuiche, Aldyr Garcia Schlee, Altair Martins, Carlos Moraes, Cyro Martins, Darcy Azambuja, Dyonélio Machado, Erico Verissimo, João Simões Lopes Neto, Josué Guimarães, Lourenço Cazarré, Luis Fernando Verissimo, Luiz Antonio de Assis Brasil, Moacyr Scliar, Renato Modernell, Sergio Faraco...

Tendo chegado a 16 nomes, precisaria cortar cinco para ser fiel à escalação do futebol. Cortar não, colocar no banco de reservas... Deixando em campo os já falecidos, teria de pôr na reserva os mais jovens, ou veteranos ainda na ativa e teoricamente capazes de melhorar seu handicap. Portanto, foram apeados do time titular os mais jovens: Altair Martins, Lourenço Cazarré, Renato Modernell, Alcy Cheuiche e...

...antes de indicar o último candidato ao banco, veio à minha mente parcamente iluminada o nome de Mario Quintana. Como pude deixar de fora tamanha figura humana e literária? Toca arranjar um lugar para o glorioso poeta já falecido... Em consequência, foi mandado para o banco o respeitável romancista Assis Brasil. E ainda era preciso sacar da seleção mais um entre os dois últimos vivos: LF Verissimo ou Sergio Faraco. Didi ou Nilton Santos? Sorteio? Par ou impar? Duelo de bisnaga d’água? Uma partida de xadrez? Um jogo de dominó? Torneio tipo Quem Sabe Mais?

Prevaleceu o critério de antiguidade. Ou, seja, sendo o último a fazer 80 anos, o indicado para sair do time titular foi Sergio Faraco. Começaram as vaias, felizmente amenizadas porque ficou no time titular o Verissimo, escalado na extrema esquerda mas autorizado a driblar pra dentro, entrar na área e cavar penais, caso lhe faltasse acesso aos pedais. Tudo certo para o início do jogo?

Mas que jogo?!, pergunto, já me arrependendo de ter começado essa seleção maluca. Alguém da tribuna de honra berra o nome de Alcides Maya, o primeiro gaúcho a ser aceito na Academia Brasileira de Letras, há mais de 100 anos. Ah, não!, se entrar o Maya vai ter de entrar o Meyer, o augusto. E o Apolinário POA? E o Qorpo Santo? E o Reynaldo Moura? E o Gladstone Mársico? E o José Clemente Pozenato?

E surge mais um impasse: alguém na minha cachola adverte que, costeando o alambrado do futebol, fiz uma seleção machista. Nenhuma mulher no time!? Não vai dar certo... Pelo menos a Claudia Tajes, ouço alguém dizer. E por que não a Maria Carpi? Sim, mas nesse caso eu não poderia deixar de lado o Carlos Nejar, pois não? E como posso ter esquecido Ramiro Barcellos? E o Aureliano Figueiredo Pinto? E a Lila Ripoll?

Tentando resolver esse imbróglio, dou uma espiada na estante e quase desanimo ao correr os dedos sobre outros nomes que não podem ser esquecidos: Tabajara Ruas, que elabora ficções brilhantes em torno de figuras históricas e até filmes faz; Luiz Sergio Metz, o Jacaré, que morreu cedo mas deixou um livro espetacular – “Assim na Terra”; Caio Abreu, cuja sensibilidade o tornou uma lenda em Porto Alegre e São Paulo; e tem ainda, finalmente – espero --, um cronista que até merece uma retranca expressa, já que faz parte de...

...UMA HISTÓRIA BEM ANTIGA

Em algum momento do final do século XX comprei num sebo de Sampa um livro de crônicas de Liberato Vieira da Cunha, meu conterrâneo cachoeirense. Li-o e o guardei. De vez em quando o relia. Agora, tantas casas depois, reencontrei “Miss Falklands”, o livrinho, literalmente imprensado entre volumes mais espaçosos numa fileira meio escondida da estante – livros arrumados pelas cores das capas, segundo o critério visual da minha filha adolescente. Abro-o e, mais uma vez, me encanto com a fluência do Liberato Vieira da Cunha. Felizmente o reencontrei a tempo de colocá-lo na minha seleção de ficcionistas. Ele merece.

Se alguém achar que estou sendo bairrista, procure em sebos algum livro do inesquecível Liberato; ou, pra chegar de vereda até ele, dê uma lida em seus bilhetes no Facebook. Verdadeiro cavaleiro das letras, ele pode ser tomado como exemplo de elegância e concisão em aulas de língua portuguesa. Algo semelhante se pode dizer de outros escritores que exibem seu talento no FB. Caso de Sérgio Faraco: não é um gentleman? Aí aparece outra evidência irrefutável: salvo uma ou outra exceção (que sinceramente desconheço), os escritores são gente boa, humanistas etc.

Dito isto, não perguntem como ficou minha seleção de escritores gaúchos. Morreu na casca. Fracassou por excesso de autores. Daí eu ter pensado que, para não jogar a ideia fora, a solução mais sensata seria separar os autores por gênero. Romancistas para um lado. Contistas pra outro. Poetas pra cá. Cronistas mais pra lá. Poderíamos montar um time de polivalentes, aqueles que brincam nas onze e não fazem feio. Também caberia fazer uma lista dos críticos literários, de cinema e de teatro. Outra dos historiadores. E mais uma de ensaístas, com Raymundo Faoro no topo. A dos jornalistas autores de livros como Caco Barcellos, Carlos Wagner, Eduardo Bueno, Elmar Bones, Euclides Torres, José Antonio Pinheiro Machado, José Antonio Severo, Juarez Fonseca, Juremir Machado, Luiz Claudio Cunha, Nei Duclós, Rafael Guimaraens, Walter Galvani e outros – essa lista seria tão longa quanto a BR-290, que começa em Osório e acaba em Uruguaiana.

Para concluir o que se afigura como inventário, deveríamos escalar também os ilustradores, os fotógrafos e todos aqueles que produzem imagens. Imagino o time dos cartunistas capitaneado pelo Edgar Vasques posando para um fotógrafo (Kadão Chaves, por exemplo) e a seleção dos fotógrafos(as) retratada pelo Santiago. Por fim, precisaríamos listar o pessoal da música, do teatro e das artes plásticas. Com tudo isso, resolveríamos o problema de ter excluído as mulheres da seleção inicial de escritores. Dito isto, jogo a toalha e fujo dessa raia de areia encharcada, deixando a pista livre para os aportes de outros comentaristas. Como diria um jornalista, eis aí uma pauta pra mais de metro.
* Geraldo Hasse é jornalista. Nascido em Cachoeira do Sul, formou-se em Pelotas. Escreveu uma dezena de livros sobre agricultura, economia, história e meio ambiente. É autor de biografia sobre o escritor e professor Darcy Azambuja.