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Publicada em 04 de Junho de 2023 às 19:20

Rio Grande do Sul tem Pampa e Mata Atlântica

Característica do Pampa, região dos Campos de Barba de Bode, na área de Cruz Alta, já não conta mais com tanta vegetação nativa

Característica do Pampa, região dos Campos de Barba de Bode, na área de Cruz Alta, já não conta mais com tanta vegetação nativa

/Gerhard Overbeck/Arquivo Pessoal/JC
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Paula Sória Quedi
Paula Sória Quedi
Do bioma Pampa, passando pela Mata Atlântica e chegando à costa gaúcha, o Rio Grande do Sul tem uma diversidade enorme de espécies da flora e da fauna, muitas delas ameaçadas de extinção. A integração entre os diferentes ecossistemas presentes no Estado significa um meio ambiente equilibrado, com desenvolvimento sustentável, diversificação de atividades produtivas e uso adequado dos recursos.
Do bioma Pampa, passando pela Mata Atlântica e chegando à costa gaúcha, o Rio Grande do Sul tem uma diversidade enorme de espécies da flora e da fauna, muitas delas ameaçadas de extinção. A integração entre os diferentes ecossistemas presentes no Estado significa um meio ambiente equilibrado, com desenvolvimento sustentável, diversificação de atividades produtivas e uso adequado dos recursos.

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Para que isso ocorra, no entanto, são necessários trabalhos de pesquisa. É preciso se debruçar sobre a diversidade que o Rio Grande do Sul oferece para entender as formas de ajudar a natureza e a vida das pessoas.
A preservação, seja de áreas nativas, mamíferos, insetos e vegetais, é tema de diferentes pesquisas acadêmicas e projetos de organizações que trabalham pela manutenção ambiental, catalogando, estudando habitats, avaliando o impacto das mudanças climáticas e promovendo ações de educação ambiental.
Em território gaúcho, essa simbiose tem como fio condutor o bioma Pampa, cujas paisagens naturais únicas, compostas por serras, planícies, morros rupestres e coxilhas, o colocam como um patrimônio cultural. O grosso do Pampa está localizado na Serra do Sudeste, porção mais montanhosa, que começa em Caçapava do Sul, se estende por Canguçu, Piratini, Encruzilhada e vai até Candiota e Hulha Negra (ver mapa).
O Pampa é o bioma brasileiro que mais perde vegetação nativa no Brasil. Entre 1985 e 2021, conforme dados do MapBiomas, a área teve a maior transformação proporcional: de 61,3% para 46,3%. Os campos nativos são plenamente compatíveis com a atividade pecuária, porém, vêm sendo convertidos para o cultivo agrícola, especialmente de soja e os plantios de eucalipto e pinus. Nesses 37 anos, as áreas de agricultura passaram a ocupar 41,6% do bioma.
O encontro do Pampa com a Mata Atlântica ocorre na região Central do Estado, onde forma uma das áreas mais ricas em biodiversidade do Rio Grande do Sul. É lá, na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), que a engenheira florestal Ana Paula Rovedder coordena o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Recuperação de Áreas Degradadas (Neprade) - vinculado ao Departamento de Ciências Florestais -, uma área ainda pouco explorada, mas necessária para os processos de restauração e de recomposição dos ecossistemas de ambos os biomas e para mitigar consequências das mudanças climáticas.
"Não existe uma cerca que segura a relação do Pampa com a Mata Atlântica. O que se faz em um e no outro é sistêmico. Então, não adianta botarmos limites, a natureza não obedece nossas limitações cartográficas. Em Santa Maria tem essa riqueza muito grande de encontro dos biomas, que gera todo um conjunto de fauna e flora muito específico. No Norte a gente vê a Mata Atlântica, se a gente olha para o Sul, enxerga o Pampa. Nas áreas naturais encontramos a mescla de espécies dos dois biomas tanto florestais, arbustivas, quanto herbáceas", explica a pesquisadora, também uma das fundadoras da Rede Sul de Restauração Ecológica. 

Mata Atlântica mantém apenas 13,5% da área original em solo gaúcho

Vegetação das dunas no litoral gaúcho, de Torres, no Norte, até o Chuí, no Extremo Sul, está dentro do domínio Mata Atlântica

Vegetação das dunas no litoral gaúcho, de Torres, no Norte, até o Chuí, no Extremo Sul, está dentro do domínio Mata Atlântica

Paulo Brack/Arquivo Pessoal/JC
Hoje, resta muito pouco da floresta que existia originalmente no Rio Grande do Sul: são apenas 13,5% de área de Mata Atlântica preservada, de acordo com dados do MapBiomas. Por isso, são necessárias ações de monitoramento e recuperação do bioma, além de fortalecer a legislação que a protege. A agricultura é apontada como a principal causa do desmatamento.
No Brasil, o bioma já perdeu quase 90% de sua área original - conforme dados de 2022 do Atlas dos Remanescentes Florestais, elaborado pela Fundação SOS Mata Atlântica e pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) - e, agora, precisa ser reconstituído, para proteger espécies, serviços ambientais e evitar a falta d'água.
De acordo com o levantamento, em 2021/2022 houve uma queda de 7% no desmatamento em relação ao detectado em 2020/2021 (21.642 hectares), porém, a SOS Mata Atlântica avalia que ainda está em um patamar elevado - cerca de 55 hectares perdidos por dia, o equivalente a 77 campos de futebol.
"No momento que degrada um tipo de ecossistema, a gente sempre tem reflexos nos ecossistemas adjacentes, pois eles não são separados. Os fluxos de água ultrapassam os limites de um ecossistema para outro, a fragmentação da paisagem, por exemplo, implica em processos de alterações e redução, muitas vezes, em processo de perda de espécies nativas", avalia o engenheiro ambiental Gerhard Overbeck, professor associado no Departamento de Botânica do Instituto de Biociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs).
Outro dado importante foi divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no dia 24 de maio. A pesquisa Contas de Ecossistemas: Espécies ameaçadas de extinção no Brasil (2022) mostra que a Mata Atlântica se destaca tanto pelo maior número quanto pela alta proporção de espécies ameaçadas. Em 2014, das 9.042 espécies avaliadas, 2.016 (22%) estavam ameaçadas. Em 2022, das 11.811 avaliadas, 2.845 (24%) estão ameaçadas de extinção.
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E mesmo que a maior porção de Mata Atlântica esteja localizada do Centro para o Norte gaúcho, o bioma ocorre também na transição entre os ecossistemas marinhos e continentais e se estende pelos 620 quilômetros de costa, onde as dunas abrigam espécies únicas, como o tuco-tuco. O roedor, cuja pelagem esbranquiçada permite que se camufle no bege da areia, é exclusivo da América do Sul e é uma das espécies ameaçadas pela perda de habitat. "Apesar de parecer pobre, de ter poucas espécies, as que ocorrem naquele tipo de vegetação são exclusivas dali", explica o professor do Departamento de Botânica da Ufrgs, Paulo Brack.
 

Os biomas gaúchos

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Pampa
O Pampa tornou-se o sexto bioma brasileiro em 2004, a partir de normativa do IBGE e do Ministério do Meio Ambiente. É o único bioma brasileiro restrito a apenas um estado brasileiro - também se estende pela Argentina e pelo Uruguai, ocupando, uma área de 750 mil quilômetros quadrados (km²). No Rio Grande do Sul, sua área é de 178.243 km², aproximadamente 63% do território gaúcho e 2,07% do nacional.
Embora uma das principais características do Pampa sejam as planícies, o bioma também possui formações de serras, coxilhas e morros rupestres. Em todas essas formações, predominam campos nativos, com vegetação campestre - gramíneas, herbáceas e árvores de pequeno porte -, mas também há a presença de matas ciliares, matas de encosta, matas de pau-ferro, formações arbustivas, butiazais, banhados e afloramentos rochosos.
Hoje, as espécies de flora e fauna que compõem o Pampa somam 12.500, entre plantas, animais, fungos e outros microorganismos.
 
Mata Atlântica
A Mata Atlântica é um dos grandes biomas brasileiros, juntamente com a Amazônia, Caatinga, Cerrado, Pantanal e Pampa. É composta por florestas nativas e ecossistemas associados - como restingas, manguezais e campos de Altitude - e é considerada uma das áreas mais extraordinárias em diversidade no planeta, principalmente devido à riqueza de flora e fauna. O bioma abrange cerca de 15% do território nacional, em 17 estados - vai do Sul da Bahia até o Rio Grande do Sul, onde se estende do Centro para o Norte. Também está presente em todo o Litoral gaúcho, de Torres até o Chuí. Originalmente, ocupava mais de 1,3 milhão de km² no Brasil, mas hoje restam apenas 12,4% da floresta que existia originalmente.
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Os campos do Pampa têm vocação para a pecuária

Campos naturais, vegetação nativa característica do bioma Pampa, permite que a pecuária se desenvolva, preservando a paisagem

Campos naturais, vegetação nativa característica do bioma Pampa, permite que a pecuária se desenvolva, preservando a paisagem

/Gerhard Overbeck/Arquivo Pessoal/JC
O Pampa do escritor pelotense Simões Lopes Neto (1865-1916), do menino que imitava o som do tuco-tuco e do quero-quero já não é tão misterioso quanto as histórias narradas há mais de 100 anos. Hoje, graças a pesquisadores, universidades e organizações ligadas ao meio ambiente, sabe-se que o Pampa, para além de planícies de campos a se perder de vista, possui uma riqueza enorme que inclui outros diversos ambientes, como florestas, banhados e butiazais. Sua área cobre 2,3% do território brasileiro, mas contém 9% da biodiversidade atualmente conhecida do País.
O Brasil possui seis biomas - Amazônia, Caatinga, Cerrado, Mata Atlântica, Pampa e Pantanal -, sendo o Pampa o único bioma restrito a apenas um estado, mas presente também em parte dos territórios da Argentina e do Uruguai. O reconhecimento ocorreu em 2004, quando entrou para o Mapa de Biomas Brasileiros a partir de normativa do IBGE e do Ministério do Meio Ambiente. Até então, as paisagens eram consideradas como campos sulinos. A publicação Contas de Ecossistemas, do IBGE, inclui como bioma, também, o Sistema Costeiro-Marinho. O levantamento considera que, atualmente, são reconhecidas no Brasil um total de 50.313 espécies de plantas e 125.251 de animais.
Especificamente sobre o bioma gaúcho, o mais recente estudo, "12.500 e contando: biodiversidade do Pampa brasileiro", indica que as espécies de flora e fauna que o compõem são 12.500, entre plantas, animais, fungos e outros microorganismos. A pesquisa, publicada na revista internacional Frontiers of Biogeography, em fevereiro, nasceu de um esforço coletivo de mais de 120 pesquisadores de 70 instituições de pesquisa e foi liderada pelo professor associado no Departamento de Botânica do Instituto de Biociências da Ufrgs, Gerhard Overbeck, juntamente com os pesquisadores de pós-doutorado Bianca Ott Andrade e William Dröse.
A biodiversidade no Brasil está muito associada a ambientes florestais - cujo papel para a manutenção do equilíbrio ambiental é inquestionável. "Regiões campestres eram poucas consideradas, no entanto, a gente sabe que são muito ricas em espécies. Então, compilamos informações existentes, mas que não estavam facilmente disponíveis, para poder apresentar dados robustos sobre a biodiversidade do bioma Pampa. A ideia surgiu justamente quando fui perguntado sobre qual era essa biodiversidade e ela é extremamente alta", explica Overbeck, enfatizando que a vegetação nativa característica permite que a pecuária se desenvolva preservando a paisagem.
No decorrer do levantamento de campo, os pesquisadores encontraram em Quaraí, na Fronteira-Oeste, o recorde de 56 espécies de plantas em um único metro quadrado. "É uma biodiversidade muito grande, e as pessoas não se dão conta disso, porque, ao verem de longe, os campos parecem homogêneos, não parecem ter muitas flores, até porque tem o pastejo em cima, mas o ambiente é rico. Então, em pouco mais de 2% da superfície do País, a gente compilou 9% da biodiversidade atualmente conhecida".
Para o engenheiro ambiental, isso comprova que os campos são ambientes ricos, cuja biodiversidade não fica restrita aos grupos mais conhecidos - como mamíferos, aves, árvores -, e abarca, também, pequenos organismos e insetos, ignorados ou pouco estudados. Entre os resultados da pesquisa, surpreendeu a alta presença de algas e fungos encontrados no Pampa. "O papel dos fungos, por exemplo, é extremamente importante nos processos ecossistêmicos. Reciclagem de nutrientes, e tudo o mais, pouco entendido muitas vezes, associações com plantas, pouco estudados ainda, mas esses organismos todos têm um papel muito grande."
O número de angiospermas - cujas principais características são a presença de flores e frutos - no Pampa aumentou em mais de 500 espécies em comparação com as listas anteriores. A riqueza de espécies de briófitas - musgos são um exemplo - e algas teve um acréscimo de mais de 60%. Além disso, apenas 12% das espécies de fungos listadas no estudo também estão presentes na lista da flora e da fauna no Brasil.
Quem não vive em regiões características do Pampa, tende a crer que a perda de biodiversidade não afeta tanto sua vida. Porém, tanto o Pampa quanto o bioma Mata Atlântica prestam uma série de serviços ecossistêmicos essenciais como, por exemplo, na recarga dos aquíferos, ou seja, para a água que chega às torneiras das casas dos gaúchos. "O que sai num riacho, numa nascente, depende também do ambiente em volta. Então, como é que funciona? Chove, a água infiltra no solo e em algum momento vai sair de novo no aquífero", explica Overbeck.
A seca que atingiu o Estado no período 2022-2023, com problemas de abastecimento em quase 300 municípios gaúchos, e as ondas de calor estão associadas às mudanças climáticas. Esse desequilíbrio ambiental que o mundo vive é consequência da degradação dos ecossistemas, de ações humanas que não levam em conta o impacto que isso traz. Brack vê o problema, em grande parte, como relacionado à destruição da Mata Atlântica, dos tipos de vegetação, além da compactação do solo e da ausência de vegetação, uma vez que essas ações diminuem a infiltração da água e a alimentação do lençol freático e de nascentes. "Esse é um problema gravíssimo, que nós estamos tendo cada vez mais. Então, temos que associar a vegetação com a água."
E como os ecossistemas estão interligados, o que é degradado em um ponto reflete em outro. "Certamente estamos sofrendo com isso aqui no Pampa. Isso está impactando nós como seres humanos, mas também todo o uso da terra. A gente sabe que algumas espécies vão mudar a sua área de distribuição com as mudanças climáticas, por exemplo".
Os campos também têm um papel importante na estocagem de carbono no solo. Geralmente, quando as pessoas pensam em vegetação e carbono, pensam em árvores, mas os campos do Pampa são essenciais para a manutenção da qualidade do ar. Então, a preservação do Pampa é essencial para manter esses fluxos em funcionamento.
"Há uma série de problemas no Pampa que passam batidos. Parece que a sociedade só leva em conta a degradação quando há desmatamento numa área, supressão de florestas. Mas se está ocorrendo a conversão de um campo em outro uso, não. Isso talvez porque muita gente até considere que um campo é algo que já foi degradado, que o natural seria uma floresta, mas não é o caso, esses campos aqui são naturais. E como o estudo mostra, são sistemas muito ricos em biodiversidade", argumenta Overbeck.
Além dos campos nativos predominantes no Pampa, há, também, matas ciliares, de encosta, de pau-ferro, formações arbustivas, butiazais, banhados, afloramentos rochosos, entre outros. Proporcionalmente, hoje, o bioma possui uma perda de vegetação nativa muito maior do que na Amazônia. Por isso, Overbeck defende que se olhe mais para o Rio Grande do Sul. "O Pampa é um ecossistema nativo que tem uma vocação."
 

A conservação não é inimiga da economia

Ambiente dos campos conserva uma gama gigantesca de flora e de fauna

Ambiente dos campos conserva uma gama gigantesca de flora e de fauna

Gerhard Overbeck/Arquivo Pessoal/JC
Para apoiar estratégias de conservação, conhecer a biodiversidade nunca foi tão importante como no atual momento de mudanças climáticas, de aceleração na alteração da distribuição de diversidades biológicas e de perdas de espécies. Além disso, esse conhecimento é um importante ponto de partida para propor gestão de terras, algo tão caro à cultura gaúcha, que tem na pecuária, além da questão econômica, uma tradição. Ao contrário de outros biomas, como a Amazônia ou o Cerrado, onde é preciso desmatar para criar gado, no Pampa a vegetação nativa é um pasto natural. Isso permite que a pecuária se desenvolva preservando a paisagem.
Várias atividades podem ser desenvolvidas em paralelo à manutenção tanto do Pampa quanto da Mata Atlântica. A própria produção de carne, em cima do campo nativo, é um serviço ecossistêmico importante, desde que se respeite o manejo, com determinado número de animais por área, e praticando o rodízio de locais para pasto. "No Pampa, temos uma situação muito feliz, pois podemos ter manejo e produção de carne mantendo essa vegetação nativa, não precisa suprimir", explica o pesquisador na área de Botânica e Ecologia Vegetal na Ufrgs, Paulo Brack. A retirada do gado dos pastos poderia ocasionar justamente o contrário. "Sem a pecuária, geralmente, essa formação tende a virar outro ecossistema. O que queremos é que esse sistema seja preservado", afirma a engenheira florestal Ana Paula Rovedder, observando que o ambiente dos campos conserva uma gama gigantesca de flora e de fauna. "São centenas de espécies de vegetais campestres. As gramíneas, que formam aquele tapete dos campos, as touceiras... mas também há bromélias raríssimas."
Mesmo aqueles sistemas de produção econômicos mais intensivos podem se adaptar bem às exigências ambientais, às normativas, e interagir com harmonia com a conservação da fauna e flora e outros recursos naturais do Pampa. "A pecuária é uma atividade econômica, mas ela também é uma reguladora da manutenção do campo nativo. Então, não preconizamos nenhum radicalismo em relação a um ou a outro sistema de produção. O que defendemos é que o meio ambiente enquanto direito previsto na constituinte e um direito das gerações atuais e das culturas, seja respeitado. Então, isso tem de valer para todos os sistemas de produção", ressalta a pesquisadora do Neprade, em Santa Maria.
O Pampa, a Mata Atlântica e a costa têm potencial para o desenvolvimento sustentável do turismo, um pilar econômico pouco explorado no RS, mas também para o fomento de outras atividades que não impactam na degradação do ambiente. "Temos tudo para trazer turistas do mundo inteiro para conhecer a riqueza da Mata Atlântica, principalmente as florestas aqui do litoral, que são locais belíssimos. Então, temos vocação para desenvolvermos uma economia associada aos nossos biomas, em especial a Mata Atlântica", argumenta Brack.
A Mata Atlântica é um ambiente muito brasileiro e tem um alto grau de endemismos, que são espécies que só pertencem a ela, só ocorrem naquele sistema. Brack conta que em 2020, ele e outros colegas publicaram um estudo sobre frutas nativas do RS, na qual foram identificadas, em consultas bibliográficas e experimentação de campo, 213 variedades. A maioria das espécies é constituída por árvores que ocorrem em ambientes florestais, distribuídas ao longo de todo o Estado. "São alimentos para o ser humano e nenhuma delas está na nossa economia, como araçá, cambucá, jabuticaba, sete-capotes, pitanga e guabiroba. Muitas delas, no entanto, são usadas em outros países", destaca o doutor em Ecologia, lamentando, ainda, o fato de essa riqueza alimentícia ser economicamente pouco explorada.
"Não são só árvores, temos também os maracujá, plantas como Bromélias, que dão frutos também alimentícios. Se formos para esse lado, poderíamos ter uma riqueza de plantas ornamentais da Mata Atlântica, poderíamos exportar para o mundo inteiro uma produção de Bromélias e orquídeas e trazer os turistas para cá, fazer ecoturismo. Só que o RS está muito atrasado. Diria que está atrasado em relação a várias partes do Brasil, em relação ao turismo que poderíamos fazer, por exemplo, na região no Morro da Borússia, caminhadas, trilhas ecológicas etc."
 

Coalizão pelo Pampa debate o uso sustentável da terra

Pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) realizam levantamento da vegetação em área do Bioma Pampa

Pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) realizam levantamento da vegetação em área do Bioma Pampa

/Gerhard Overbeck/Arquivo Pessoal/JC
O Pampa é o bioma brasileiro que mais tem perdido áreas de campo de florestas, segundo os últimos dados apresentados pelo Relatório Anual de Desmatamento no Brasil (RAD), elaborado pelo MapBiomas - rede colaborativa, formada por ONGs, universidades e startups de tecnologia. Entre 1985 e 2021, 3,4 milhões de hectares de diferentes tipos de campos deram lugar para a agricultura e silvicultura, o que representa uma perda de 29,5% de vegetação.
O gaúcho gosta tanto de ter orgulho das suas raízes, festejar o 20 de Setembro, com danças, poesia, música, vestimentas, mas têm dificuldade em perceber que ao suprimir campo e floresta, ao homogeneizar tudo, está perdendo a própria herança cultural. "E o que seria do gaúcho sem o Pampa? No momento em que o gaúcho pampeano pecuarista, que sabe interagir com o campo desaparece, esse legado histórico não vai se manter", enfatiza Ana Paula, pesquisadora do Neprade/UFSM, uma das 19 organizações e instituições que compõe a Coalizão pelo Pampa, um coletivo de entidades, instituições e grupos de pesquisa que trabalham há décadas com as questões ambientais e produtivas do bioma.
O que uniu essas organizações em 2021 foi o objetivo de fomentar o desenvolvimento pautado pela sustentabilidade, além de dar uma resposta em um momento de desintegração da pauta ambiental dentro dos órgãos de fiscalização. "O que nós fizemos foi nos unir em torno de um coletivo único para fortalecer essa fala e dar visibilidade. A sociedade precisa nos conhecer enquanto coletivo, mas também a sociedade precisa conhecer melhor o Pampa em si", argumenta.
Em termos proporcionais, o Pampa foi o bioma mais desmatado, com um crescimento de 92,1% de perda florestal em 2021 em relação ao ano anterior. As florestas representam 11% do bioma, com os campos nativos abrangendo a maior parte do restante. Quando se fala em desmatamento, porém, a primeira imagem que vem à mente é a Amazônia, e Overbeck destaca a necessidade de se voltar mais o olhar para o Pampa. "A gente tem que olhar o que está acontecendo aqui, que não se refere apenas à conversão de áreas do Pampa. Temos o problema de invasões biológicas, espécies exóticas invasoras. No Pampa, o capim-annoni, no Litoral, a expansão do Pinus sobre ambientes naturais. Um grave problema pouco trabalhado."
Atualmente, a porção do Pampa mais preservada fica na serra do Sudeste e na parte da campanha, onde estão os solos mais rasos, pois essas são as regiões onde há maior dificuldade de implementar o uso da terra de forma mais intensiva, justamente pela restrição do relevo. "As áreas onde temos os solos mais profundos e férteis foram largamente convertidas, toda a região dos Campos de Barba de Bode, que fica um pouco mais a Norte do Estado, na região de Cruz Alta, ou nas várzeas dos grandes rios também. Lá já não existe mais tanto campo nativo porque foi transformado em lavouras", explica Overbeck.
Tanto Ana Paula, quanto Overbeck e Brack defendem um maior regramento ambiental sobre o avanço da agricultura tradicional e da silvicultura sobre o Pampa. "Na Coalizão pelo Pampa, estamos debatendo, mostrando para a sociedade gaúcha que há uma tendência de afrouxamento das regras ambientais, e quem vai perder é a sociedade", argumenta a coordenadora do Neprade/UFSM.
O afrouxamento das leis ambientais ocasiona um declínio das áreas naturais. "A destruição do habitat nos banhados, nas florestas, na Mata Atlântica, na zona costeira, na caatinga, no cerrado, ameaça aves de extinção e outras espécies de animais", alerta Dimas Gianuca, coordenador de Projetos da BirdLife International.
E esse declínio acaba por trazer consequências como, por exemplo, para a recarga de aquíferos, a manutenção de água nos mananciais e algumas espécies de insetos, que têm um importante papel de controle biológico em relação a pragas, agindo para controlar populações de outros insetos, inclusive, ou de fungos, e auxiliando na produtividade agrícola. "Hoje, se a gente produz carne, soja, milho, celulose, é porque ainda temos recursos naturais", enfatiza Ana Paula, que também é uma das idealizadoras da Rede Sul de Restauração Ecológica - parte da Coalizão pelo Pampa.
Para Overbeck, também pesquisador da Rede Campos Sulinos, que integra a Coalizão, é preciso focar muito mais na divulgação e no ensino sobre os ecossistemas gaúchos. "É a nossa casa, a base da nossa qualidade de vida", ressalta.
 

Unir técnicas e trabalhar a restauração ecológica em um momento de perda

Cactáceas da Mata Atlântica correm sério risco de extinção devido ao extrativismo predatório

Cactáceas da Mata Atlântica correm sério risco de extinção devido ao extrativismo predatório

RB Schenato/Neprade/Divulgação/JC
A Mata Atlântica abrange cerca de 15% do território nacional, em 17 estados. É o lar de 72% dos brasileiros e concentra 80% do PIB nacional, além de produzir 50% dos alimentos consumidos no País. Dela dependem serviços e atividades essenciais como abastecimento de água, regulação do clima, agricultura, pesca, energia elétrica e turismo. No RS, originalmente, o bioma cobria 52% do território. Hoje, conforme dados de 2022 do Atlas dos Remanescentes Florestais, restam 13,5% de áreas remanescentes, com alto grau de fragmentação em relação à sua cobertura vegetal original.

Em Santa Maria, região onde ocorre o encontro da Mata Atlântica com o Pampa, desde 2011 o Neprade se debruça sobre os ecossistemas, desenvolvendo pesquisas com foco na restauração ecológica e na recuperação de áreas degradadas. “A recuperação de áreas degradadas é uma parte da ciência que trabalha técnicas para resolver problemas ambientais em áreas específicas, em passivos ambientais. Dentro dessa grande área, trabalho, mais especificamente com o que chamamos de restauração ecológica, que é a ciência de facilitar o retorno das condições de um ecossistema que foi degradado”, explica Ana Paula Rovedder, doutora em Ciência do Solo.

Desde o começo da década de 2000, essa foi uma área que começou a receber cada vez mais visibilidade e valorização, em um nível nacional e mundial. Muito dessa valorização advém de um debate científico sobre as mudanças climáticas que hoje já atingem um outro patamar, e, segundo Ana Paula, já podem ser classificadas de “emergências climáticas”. “Estamos num momento de consequências das mudanças climáticas. Então a percepção da necessidade de se restaurar ecossistemas naturais, não apenas se restaurar, mas se conservar os ativos ambientais, ganhou maior visibilidade, maior valorização.”

Tanto é que o Brasil vive a Década da Organização das Nações Unidas (ONU) da Restauração de Ecossistemas (2021-2030). A medida é um chamado global à ação e seu objetivo é prevenir, deter e reverter a degradação dos ecossistemas em todo o mundo. “Nos anos anteriores, passamos nos preparando como Neprade e participando de outros outros coletivos nacionais e estaduais para darmos conta desse momento, que é tão caro para quem dedica a vida à restauração de ecossistemas.”

Ana Paula vê tanto na Mata Atlântica quanto no Pampa potencial para o desenvolvimento sustentável, mas isso passa pela diversificação de atividades produtivas e pela pelo uso sustentável dos recursos de fauna e flora. Um dos trabalhos do Neprade nos últimos oito anos é sobre os múltiplos usos de espécies nativas de ambos os biomas. “Em uma área degradada que estava em regeneração natural, levantamos 70% das espécies com usos medicinais comprovados na farmacologia Internacional. Em remanescentes em melhor estado, esse percentual de de uso medicinal tende a aumentar. Depois, evoluímos para saídas de campo, nos associando a produtoras de plantas medicinais, fazendo uma série de oficinas para mostrar esse potencial.”

O trabalho desenvolvido pelo Neprade busca os usos múltiplos da flora e da fauna dos dois biomas como forma de educação ambiental. A pesquisadora argumenta que é uma forma de a sociedade conhecer os seus recursos, já que ao não ter noção do que possui, necessariamente não saberá o valor de uso deles. “Então, uma sociedade assim, tende a não valorizar e a perder, a extinguir. Estamos em uma tendência de perda do que a gente chama de erosão genética, extinção regional, muito acelerada.”

A recuperação de áreas florestais torna-se, assim, fundamental para a regenaração dos biomas e, consequentemente, para a mitigação das mudanças climáticas. Iniciativas internacionais já apontam a Mata Atlântica, por exemplo, como uma das prioridades mundiais para restauração florestal, combinando sequestro de carbono e proteção da biodiversidade e da água.

Na Mata Atlântica, correm sério risco de extinção, por exemplo, o Gato Palheiro, os peixes de campos úmidos - muito impactados pelo extrativismo, para uso em aquários - e as cactáceas, devido ao extrativismo predatório. Ana Paula explica que muito do comércio de cactos nativos no Rio Grande do Sul ainda se dá dessa forma: “as pessoas vão aos locais e coletam”.

Atualmente, o Neprade integra um programa, que é o Plano de Ação Territorial (PAT) - políticas federais que são aplicadas regionalmente -, ainda em fase de desenvolvimento, para a conservação de espécies ameaçadas da Campanha Gaúcha e Serra do Sudeste. “Preparamos esse plano de ação junto com o Ministério do Meio Ambiente, com vários colegas, muitos deles integrantes da Coalizão pelo Pampa. Vamos iniciar a sua aplicação testando técnicas de restauração de habitats para uma série de espécies em extinção.”

No PAT, Ana Paula irá coordenar a busca por técnica de restauração e a aplicação começará em habitats com uma série de espécies em extinção. A lista começou com 160
espécies e culminou em 36 de fauna e 125 de flora, que coabitam com cerca de 16 espécies ameaçadas de flora e 14 de fauna. O plano irá favorecer as ameaçadas e todas essas que vivem no entorno. O projeto já está aprovado pela Secretaria Estadual de Meio Ambiente (Sema) e terá parceria de uma empresa do setor privado e de universidades. A ideia é que seja colocado em prática nos próximos meses.

No Pampa, faltam técnicas adequadas para a restauração ecológica dos campos

Overbeck diz que existe entrave à restauração ecológica dos campos, o que se dá pela falta de técnicas adequadas para recuperá-los

Overbeck diz que existe entrave à restauração ecológica dos campos, o que se dá pela falta de técnicas adequadas para recuperá-los

Gerhard Overbeck/Arquivo Pessoal/JC
No Pampa, uma das reclamações de Overbeck é justamente em relação à limitação da restauração ecológica dos campos, o que se dá pela falta de técnicas adequadas para recuperá-los. "Começa pelo fato de não haver sementes para comprar. A gente não sabe qual a maneira de recuperar esses campos, ou seja, essa degradação que a gente está causando hoje, ela tem efeitos graves, sem no momento ter as técnicas para recuperar."
Ele explica que em ambiente florestal é mais fácil, se faz o plantio de árvores, se sabe "mais ou menos como funciona", porém, para os campos, é um grande desafio. Há um Plano Nacional da Vegetação Nativa que prevê a recuperação de 300 mil hectares de áreas degradadas no Pampa até 2030. "A gente tá muito longe disso, tanto em alcance quanto em relação às técnicas disponíveis."
As gramas, os capins e todas as outras plantas produzem sementes, porém, segundo o pesquisador, um dos entraves é a falta de maquinário para colhê-las. "Estamos fazendo o experimento com isso. Precisamos também de pessoas qualificadas, que conheçam as espécies para saber quais são as mais indicadas, mas é muito interessante que muitas das espécies dominantes do campo, elas têm uma estratégia mais de persistência do que de produção de semente para manter as suas populações". O campo tem uma resiliência muito baixa a distúrbios. Se lavrado, e depois abandona, não retorna da maneira como era antes. "Muitas vezes, vai voltar uma área com muitas espécies invasoras. Então é uma grande lacuna no conhecimento técnico, que vai complicar muito o alcance dessas metas de restauração", salienta.
 

Situação da Mata Atlântica no Brasil

No Brasil, conforme o Atlas, o desmatamento (91%) está concentrado em cinco estados: Minas Gerais, Bahia, Mato Grosso do Sul, Santa Catarina e Paraná. Nos três primeiros, o desmatamento é resultado da expansão - em grande escala - da agricultura e da pecuária.
Outros oito estados registraram aumento no desmatamento (Alagoas, Bahia, Espírito Santo, Mato Grosso do Sul, Paraíba, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Sergipe) e nove mostraram redução (Ceará, Goiás, Mato Grosso, Pernambuco, Piauí, Paraná, Rio Grande do Norte, Santa Catarina e São Paulo).

Os dados também revelam que apenas 0,9% das perdas se deu em áreas protegidas, enquanto 73% ocorreram em terras privadas, o que, segundo a SOS Mata Atlântica, reforça que as florestas vêm sendo destruídas, sobretudo para dar lugar a pastagens e culturas agrícolas, além da especulação imobiliária - nas proximidades das grandes cidades e no litoral - que também é apontada como outra das causas principais.

Paulo Brack explica que a área de Mata Atlântica no Litoral Norte é uma região que forma um corredor ecológico fantástico de espécies mais tropicais. A Lei 11.428/2006 contempla inclusive as dunas como Mata Atlântica. “Então é uma zona bastante sensível do ponto de vista da perda dessas condições altamente seletivas, que só ocorrem naquela faixa”, explica, lamentando o fato de os empreendimentos imobiliários na região muitas vezes não respeitarem a distância da linha de dunas frontais - de 300 metros em áreas rurais e 60 em áreas urbanas.

“O que a gente vê é uma conurbação entre Cidreira e Torres. Praticamente tudo está virando área urbana, e deveria haver um mosaico - mescla de áreas urbanas com naturais -, até para a recarga de aquiferos. Porque grande parte da água que abastece aqueles condomínios, vem do subsolo ou vem das lagoas, e a contaminação dos lençóis freáticos resultante dessa urbanização muito grande, da falta de saneamento, é um dos maiores problemas.”

Ainda em relação a dados da Mata Atlântica, a pesquisa Contas de Ecossistemas: Espécies ameaçadas de extinção no Brasil (2022) indica que 43% das espécies ameaçadas vivem no bioma, que possui o maior histórico de ocupação e também de perda de área nativa, com mais espécies declaradas extintas: oito, segundo o IBGE, sendo a mais recente a perereca-gladiadora-de-sino.

Em seguida, aparece o cerrado que, com 7.385 espécies avaliadas, teve 1.199 consideradas em risco (16,2% do total). Outros biomas com mais de 10% da vida selvagem ameaçada entre aquelas espécies avaliadas são a caatinga (3.220 ou 14,9%) e o Pampa (229 ou 13,7%).

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