O automóvel segue como item essencial na rotina dos gaúchos, mas a relação com o carro deixou de ser guiada por status e passou a ser definida pela calculadora. Uma pesquisa encomendada pelo banco BV à Consumoteca mostra que 44% dos consumidores do Sul priorizam a economia de combustível na hora da compra - índice superior à média nacional (37%). Além disso, 31% optam por modelos com mais de três anos de uso, proporção quase duas vezes maior do que a observada em outras regiões.
O levantamento ouviu 2 mil pessoas em todas as regiões do País, entre 5 e 9 de junho de 2025. Segundo a pesquisa, a decisão mais racional está ligada ao perfil de consumo local, marcado por planejamento financeiro e valorização de bens duráveis. Com alta taxa de motorização e um território em que o automóvel ainda desempenha papel central na mobilidade, o carro permanece indispensável - mas dentro dos limites do orçamento.
Essa mudança aparece na prática. No Rio Grande do Sul, o mercado de seminovos e usados segue aquecido: em setembro, foram 105,6 mil unidades comercializadas, volume 2,9% superior ao registrado no mês anterior e 11,2% acima do mesmo período do ano passado. O desempenho acumulado do ano também mostra alta, com crescimento de 13,1% no Estado, segundo dados da Fenauto. Entre os veículos vendidos, os modelos com 4 a 8 anos de uso registraram avanço de 11% na comparação anual, enquanto os mais antigos (13 anos ou mais) cresceram 12,6% no mesmo intervalo.
Para o economista Gustavo Inácio de Moraes, professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (Pucrs), além dos fatores econômicos, há um componente cultural e geracional em transformação. “Os jovens cresceram com aplicativos e com a lógica do compartilhamento. A posse do carro deixou de ser sinônimo de liberdade. Ter carro envolve seguro, manutenção, impostos, depreciação. Quando se coloca tudo na ponta do lápis, ele raramente se paga para quem roda pouco”, afirma.
Moraes destaca um cálculo orientativo próprio: para quem percorre menos de 30 quilômetros por dia, o transporte coletivo ou por aplicativo tende a ser mais vantajoso do que manter um veículo próprio. “O carro só se justifica para quem depende dele no trabalho ou realiza deslocamentos longos diariamente. O grande vilão é a depreciação: o carro começa a perder valor no momento em que sai da loja”, diz.
No caso do Rio Grande do Sul, fatores regionais reforçam essa tendência. O uso de motocicletas é menor em comparação a regiões mais quentes e planas, como o Nordeste, e a concentração populacional em áreas urbanas com oferta de transporte coletivo - como no caso da Região Metropolitana, que conta com o Trensurb - facilita alternativas ao automóvel próprio.
Redefinação do mercado
Para as revendas, a mudança no perfil do consumidor já é regra. “A decisão de compra ficou mais racional. O cliente compara custo-benefício, consumo, manutenção e desvalorização antes de fechar negócio”, afirma Rodrigo Dotto, presidente da Associação dos Revendedores de Veículos Automotores do Estado (Agenciauto-RS). Ele observa que veículos com três anos ou mais têm se tornado a escolha dominante: “Com o mesmo valor de um carro de entrada novo, é possível adquirir um modelo mais completo, confortável e com boa tecnologia. O seminovo deixou de ser plano B”.
Ainda, com o setor aquecido, o cenário tornou-se competitivo: o aumento no número de lojas pressionou margens e exige gestão mais profissional. “Hoje é preciso comprar bem, precificar certo e vender rápido. O mercado segue ativo, mas com rentabilidade menor. A competitividade tem feito o setor amadurecer”, afirma Dotto.
Outro ponto importante é que a taxa de juros para financiamento não acompanhou a queda da Taxa Selic. Mesmo com a redução da taxa básica, os juros do financiamento se mantêm praticamente iguais - tanto para carro novo quanto para usado.
"Hoje, o que define a taxa não é mais o tipo de carro, e sim o perfil do cliente, o valor de entrada e até o padrão e o score da própria loja. Lojas com boa reputação e histórico sólido conseguem oferecer taxas melhores", finaliza.
A Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) foi procurada para comentar os efeitos da mudança no comportamento de consumo sobre a indústria e as vendas de veículos zero quilômetro, mas não se manifestou.