Porto Alegre,

Anuncie no JC
Assine agora

Publicada em 04 de Novembro de 2025 às 19:46

Milei ganha força para aprofundar reformas e reacende debate sobre efeitos na economia brasileira

Bloco libertário ampliou sua presença no Congresso e assegurou maioria relativa na Câmara e no Senado

Bloco libertário ampliou sua presença no Congresso e assegurou maioria relativa na Câmara e no Senado

LUIS ROBAYO/AFP/JC
Compartilhe:
Gabriel Margonar
Gabriel Margonar
A vitória expressiva do partido La Libertad Avanza, do presidente Javier Milei, nas eleições legislativas de meio de mandato na Argentina, realizadas no final de outubro, recoloca o país em um novo ciclo político e econômico. Com 40,8% dos votos, o bloco libertário ampliou em três vezes sua presença no Congresso e assegurou maioria relativa tanto na Câmara quanto no Senado. O resultado, interpretado como um voto de confiança ao projeto de reformas de Milei, abre caminho para medidas mais duras de ajuste fiscal, liberalização e redução do Estado - e acende o alerta sobre os reflexos desse rumo no Brasil.
A vitória expressiva do partido La Libertad Avanza, do presidente Javier Milei, nas eleições legislativas de meio de mandato na Argentina, realizadas no final de outubro, recoloca o país em um novo ciclo político e econômico. Com 40,8% dos votos, o bloco libertário ampliou em três vezes sua presença no Congresso e assegurou maioria relativa tanto na Câmara quanto no Senado. O resultado, interpretado como um voto de confiança ao projeto de reformas de Milei, abre caminho para medidas mais duras de ajuste fiscal, liberalização e redução do Estado - e acende o alerta sobre os reflexos desse rumo no Brasil.
A eleição representou mais do que um alívio para os mercados. O peso argentino, que vinha em trajetória de desvalorização, saltou 10% em um único dia, refletindo a expectativa de estabilidade e o anúncio de um novo pacote de apoio de US$ 40 bilhões do governo norte-americano. A ajuda havia sido condicionada à vitória do aliado de Donald Trump e funcionou como um selo de confiança para investidores que temiam um colapso cambial em caso de derrota do governo. A valorização, no entanto, foi mais um suspiro de alívio do que um sinal de mudança estrutural, avalia o economista André Cunha, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs).
Para o professor, a economia argentina vive um “momento menos pior”. A inflação, que ultrapassava 200% ao ano em 2023, foi reduzida para a faixa dos 30% com o apoio do FMI, cortes profundos de gastos e um rígido controle cambial. O custo da política de contenção, porém, foi uma recessão intensa, com queda no consumo, aumento do desemprego e enfraquecimento da rede de proteção social. “O grande desafio é saber se há sustentabilidade de médio e longo prazo ou se é apenas mais um momento ilusório de retomada”, observa. “O que vem agora é a tentativa de implementar reformas mais duras nas relações de trabalho e na seguridade social.”
A agenda de Milei mira uma flexibilização ampla das leis trabalhistas, desregulação de setores e reforma previdenciária. Mesmo sem maioria absoluta, o avanço do partido no Congresso garante base suficiente para negociar alianças e bloquear eventuais tentativas de impeachment. Ainda assim, Cunha lembra que vulnerabilidades seguirão. “A Argentina continuará um país caro em dólares, pois precisa manter a moeda valorizada para conter a inflação. Isso limita a competitividade externa e aprofunda desigualdades”, diz. “É melhor termos 45 milhões de argentinos de classe média com boa capacidade de consumo do que apenas um terço da população em condições afluentes".
João Jung, professor de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (Pucrs), vê o resultado como parte de um movimento mais amplo na América do Sul, de retorno do pêndulo político para a direita. Ele destaca que, apesar das tensões ideológicas, a vitória de Milei tende a, paradoxalmente, moderar o discurso do governo. “A partir do momento em que um governo se torna governo, precisa encontrar uma narrativa de continuidade. O Milei combativo do início dá lugar a um presidente que busca governabilidade, e isso implica conciliação”, avalia.

"Brasil e Argentina não são uma escolha; são uma condição"

Na política externa, Jung aponta um alinhamento quase automático de Buenos Aires a Washington. Em fóruns internacionais, a Argentina tem votado em sintonia com os Estados Unidos, o que se reforça com o apoio financeiro anunciado após as eleições. “O país busca retorno econômico por meio dessa aproximação política, ainda que isso limite sua autonomia”, diz. Em relação ao Brasil, o professor ressalta que, mesmo com divergências ideológicas, os dois países mantêm uma relação de interdependência inevitável. “Brasil e Argentina não são uma escolha; são uma condição um do outro. Por mais que haja desencontros políticos, há vínculos sociais e econômicos que obrigam a cooperação.”
Essa interdependência se reflete no comércio bilateral. Apesar das turbulências políticas e cambiais, o fluxo comercial entre os dois países aumentou no último ano: as exportações brasileiras para a Argentina cresceram 43%, e as importações, 2,4%, resultando em superávit próximo de US$ 3 bilhões para o Brasil. O desempenho contrasta com a queda nas trocas com os Estados Unidos - impulsionadas pelo tarifaço -, o que, segundo Jung, reforça o papel da Argentina como válvula de escape para a indústria brasileira.
No curto prazo, o cenário tende a ser favorável ao Brasil. A alternativa, lembra André Cunha, seria uma nova crise cambial argentina, que afetaria diretamente exportações e cadeias industriais. Setores como o automotivo e o de bens de consumo, fortemente integrados entre os dois países, ganham algum fôlego com a estabilização momentânea. O turismo também se beneficia: o peso valorizado estimula viagens de argentinos ao litoral brasileiro, especialmente no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina.
O futuro, contudo, segue incerto. A sustentabilidade das reformas dependerá da entrada contínua de dólares e do humor dos investidores externos. “Enquanto os mercados estiverem eufóricos, ganha-se tempo”, resume Cunha. “Mas, se faltar confiança, o quadro pode se reverter rapidamente, pois há fundamentos econômicos pouco sólidos”.
Para Jung, a tendência é de redução da instabilidade política, ao menos no curto prazo. “Com a nova configuração legislativa, o governo passa a ter maior blindagem, mas ainda precisará negociar. A oposição peronista permanece forte, embora fragmentada”, avalia. “Há espaço para uma trégua relativa, e isso pode ser positivo para toda a região".
Ambos os especialistas convergem em um ponto: a sobrevivência do Mercosul depende da cooperação entre Brasília e Buenos Aires. Mesmo que Milei volte a ameaçar o bloco, uma ruptura é vista como improvável. “O Mercosul não existe sem a Argentina nem sem o Brasil”, afirma Jung. “Seria um suicídio econômico. Por mais que o discurso liberal se aproxime de uma lógica de mercado comum, não há incentivo real para o país sair”, finaliza. 
A vitória nas urnas, portanto, devolveu a Milei uma sobrevida política. Se conseguir moderar o ritmo do desmonte social e entregar resultados econômicos minimamente estáveis, o presidente pode chegar ao fim do mandato com chances reais de reeleição. Se repetir o padrão histórico argentino de ciclos curtos de euforia e colapso, no entanto, o país voltará ao ponto de partida - e o Brasil, mais uma vez, sentirá os efeitos desse movimento pendular que, há décadas, dita o compasso da economia do Cone Sul.

Notícias relacionadas