Em um Rio Grande do Sul entre o real e o imaginário, o escritor Erico Verissimo recompôs a história do Estado a partir da fictícia cidade de Santa Fé, onde, no dia 20 de dezembro de 1909, retornava de Porto Alegre o doutor Rodrigo Terra Cambará, graduado em Medicina na Capital. Caso o autor optasse em relatar as vivências da personagem durante os estudos, certamente o descreveria em passeios pela já famosa Rua da Praia — renomeada Rua dos Andradas —, passando pela já inaugurada Óptica Foernges, que em 2025 celebra seus 130 anos.
O ano era 1895. A Rua da Praia, fundada em 1772 havia tido o calçamento concluído no ano anterior e os gaúchos encaminharam ao fim a Revolução Federalista — que terminaria oficialmente em agosto. Nesse contexto, Carlos Foernges decidiu levar a este local histórico de Porto Alegre um bazar de variedades, incluindo o comércio de ourivesaria, prataria e joalheria. Assim, a primeira sede, ainda localizada no número 1.504 da Rua dos Andradas, foi inaugurada no dia 1º de abril de 1895.
O prédio verde de três andares com as iniciais do fundador (C.F.) ao topo chama atenção na quadra localizada entre as ruas Marechal Floriano Peixoto e Vigário José Inácio. Isso porque é a única loja com arquitetura remanescente do século XIX no local. A quantidade de estabelecimentos, aliás, conserva uma tradição da Rua da Praia, que desde o princípio possuía uma função comercial.
As memórias do local são lembradas por Bruno Foernges, de 88 anos, neto do fundador da óptica e que deixou a profissão de dentista para se dedicar à empresa familiar. "Eu me lembro que vinha aqui com o pai, a gente abria a loja e depois ia até os Correios pegar as correspondências e depois voltava de ônibus. Também vinha para cá aos finais de semana caminhar na Rua da Praia. Minha mãe também vinha passear. De noite, íamos ao cinema e na saída caminhávamos olhando as vitrines, as lojas ainda estavam todas abertas, com tudo iluminado", comenta.
Alguns dos comércios da época ele recorda perfeitamente. Entre eles, os vizinhos da Óptica: a Casa Lira e o Bazar Abelheira. Neste último, lembra de comprar bolinhas de gude quando jovem. Hoje, ambos foram substituídos por outros empreendimentos em edifícios mais altos e modernos.
Rua da Praia em 1880, 28 anos após sua construção
Acervo do Museu Julho de Castilhos/Divulgação/JC
A Óptica Foernges, a Era Vargas e a Segunda Guerra Mundial
Em 1942, a Segunda Guerra Mundial estava a pleno vapor na Europa. Nesse contexto, o Brasil, sob o governo do gaúcho Getúlio Vargas, decidia ingressar no conflito apoiando os Aliados (grupo formado por França, Grã-Bretanha, Estados Unidos e União Soviética) na batalha contra o Eixo (Alemanha, Itália, Japão). Por isso, iniciou uma espécie de repressão governamental contra imigrantes das nacionalidades adversárias, proibindo, inclusive, que falassem seus idiomas originais.
O Rio Grande do Sul, marcado pela imigração de alemães e italianos, acompanhava os ânimos da política varguista. E, em Porto Alegre, o impacto foi visto no comércio, que ainda buscava se recuperar da enchente de 1941, a segunda maior do Estado, superada apenas pela de 2024.
Naquele ano, um quebra-quebra generalizado irrompeu na Rua da Praia, gerado pela ira de populares contrários aos estabelecimentos dos alemães e italianos — ou geridos por seus descendentes. O movimento iniciou pela confeitaria Woltmann e nas Casas Lyra, com uma expansão posterior. A Óptica Foernges estava na rota. Entretanto, uma figura apaziguou os ânimos e protegeu a óptica: o comandante da Brigada Militar Walter Peracchi Barcellos, que se tornaria governador do Estado em 1966.
"Começaram a apedrejar, destruir e roubar todas as empresas com nome alemão. E o Peracchi Barcellos veio a cavalo com uma tropa, colocou aqui na frente (da loja) e não deixou ninguém apedrejar. É algo que (meus familiares) falavam muito. Temos que agradecer a ele por ter feito isso aqui na nossa empresa", relembra Bruno.
Do pioneirismo às inovações contemporâneas
Em 1908, a Foernges decidiu dar um passo adiante. O fundador da empresa, Carlos Foernges, enviou seu filho mais velho, João Felipe, à Alemanha. Lá, o sucessor estudou óptica, ramo no qual o país europeu se destacava. No retorno, trouxe, além do conhecimento, os equipamentos necessários para montar um dos primeiros laboratórios ópticos do Brasil.
"O tio João fez o laboratório, meu pai também fez vários cursos na Alemanha. Era e ainda é um grande centro óptico, uma referência", relembra Bruno. Seu sucessor, o filho Guilherme Foernges, de 46 anos, complementa: "imagina, mandar para a Europa naquela época era muito diferente de hoje, as viagens eram de navio. Isso já mostra o afinco pelo negócio".
O pioneirismo é evidente: a Foernges foi a primeira a produzir óculos produzidos com receita médica na Região Sul do País. Até então, os clientes das ópticas compravam lentes com o grau pré-estabelecido. A produção sob medida é até hoje o carro-chefe da empresa. "Foi um marco, porque se alguém tivesse que fazer algo com receita médica, tinha que ir a São Paulo ou a Buenos Aires, eram os dois centros que tinham essa possibilidade", observa Guilherme.
Com o tempo, o mundo se reinventou. Os materiais dos óculos se tornaram mais leves e os negócios se adaptaram à contemporaneidade. No início dos anos 2000, já com Guilherme à frente do negócio, a Foernges também passou por uma grande mudança: deixou de vender relógios e joias, focando na venda de armações de óculos e na fabricação de lentes.
Para se atualizar das tendências atuais, o dirigente viaja a feiras internacionais, principalmente as de Milão e Paris. "Nesses lugares, você consegue buscar alguns produtos exclusivos, que a gente traz com importação direta, sem precisar passar por um fornecedor. E isso traz vantagem competitiva", avalia.
Atualmente, a Foernges está entre as óptica na preferência dos gaúchos, conforme apontou a edição de 2025 da pesquisa Marcas de Quem Decide. E é possível ver essa realidade no cotidiano, conforme comenta Guilherme: "A gente atende, às vezes várias gerações dentro da loja. Já vi três gerações juntas comprando, você vê o avô, o filho e o neto que está começando a usar o primeiro óculos e isso é uma coisa muito forte. A gente se emociona".